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Stealthing: quais os reflexos jurídicos decorrentes dessa prática?

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Agenda 29/01/2023 às 12:20

CAPÍTULO 3 – ASPECTOS SOCIAIS PSICOLÓGICOS DECORRENTES DO STEALTHING

Mesmo já tendo falado de que o dano moral, pode ser comprovado em razão de abalo psicológico, o que resultaria em uma condenação pecuniária do autor, esse dano não se restringe apenas e tão somente a uma indenização, uma vez que mesmo diante de uma condenação a vítima sofrerá danos irreversíveis ao longo de sua vida, em razão disso, passa-se a discutir, de forma jurídica, como que autor e vítima são, ou deverão ser tratados, em nosso ordenamento jurídico.

3.1 – A GRAVIDEZ ORIUNDA DO STEALTHING

Já falamos acerca do tratamento jurídico que deve ser dado pelo nosso ordenamento jurídico em razão da transmissão do vírus HIV, mas como já dito, em razão do stealthing, pode-se falar também na gravidez e, por isso, no direito a autodeterminação do corpo, no direito de ter ou não filho (e aqui não se está a falar de aborto mas, de planejamento familiar) e, mais ainda, na possibilidade ou não de tomar a pílula do dia seguinte, direito esse inerente à mulher que, em razão de não saber ser vítima do stealthing, lhe seria cerceado pelo autor. A vítima dessa prática terá sua vida marcada por uma cicatriz eterna, terá que conviver com um filho que não era esperado, que não foi planejado e cujo pai não era uma pessoa com quem a vítima pretendesse constituir familiar.

Em tempo, é valido ressaltar que mesmo nos casos em que a vítima mantém uma relação perene com o autor, quer seja relação matrimonial, união estável ou namoro, estaria configurado o stealthing.

Pode-se então afirmar que o stealthing não decorre de uma relação sexual consentida com preservativo consumada com pessoa com quem ela não estabeleceu laços afetivos, mas sim a mera remoção da proteção sem o consentimento de uma das partes. É muito comum que casais recém formados ou até mesmo que já mantenham uma relação duradoura, mas que ou por ausência de confiança em seu par ou por preferir não usar outros métodos anticonceptivos, utilizam do preservativo como instrumento cautelar da gravidez ou da transmissão de doença.

A discussão vai além, não se sabe ao certo qual Artigo do Código Penal deva ser aplicado no caso concreto, mas o que se sabe é que o próprio Código Penal, em seu Artigo 128, II traz uma excludente de ilicitude quando nos referimos ao aborto:

“Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

Como já fora dito, é plenamente possível que o stealthing seja convolado em estupro, nos casos em que, durante o ato sexual, a vítima perceba que houve a remoção e, ao tentar interromper o ato, o autor da agressão, visando concluir o ato, se valha de violência ou grave ameaça, nesse cenário, caso ocorra a gravidez, estar-se-ia diante da excludente supra mencionada, se no caso concreto, o juiz aplicasse as penas do Artigo 215 do Código Repressor, na situação narrada, o aborto seria juridicamente inviável, transferindo o ônus para a vítima.

É possível percebe que a violência sofrida pela vítima não se restringe a sexual, mas também a violência psicológica, conviver com um filho não querido, oriundo de uma relação cunhada na fraude ou má-fé e ter o percurso da sua vida mudado, pois é cediço que a mulher após ter filho terá que dedicar um tempo extra aos cuidados habituais de uma criança e na situação em comento, a restrição que seria imposta ao agressor seria apenas o pagamento de pensão ao filho, a mãe, vítima do stealthing, não teria como buscar uma reparação pelos danos supra.

3.2 - OS DANOS PSICOLÓGICOS CAUSADOS PELA TRANSMISSÃO DO VÍRUS HIV

Dano psicológico diverso também sofreria o indivíduo vítima do stealthing que contraísse, através daquela relação o vírus da imunodeficiência humana ( HIV). O dano não, in casu, também acompanharia àquela vítima por toda a sua vida, visto que, não se tem a cura para esse vírus. O portador do HIV é discriminado pela sociedade. É muito comum vermos notícias de pessoas que perderam seus empregos pelo simples fato de terem contraído o vírus, o indivíduo conviver com algo que está além da sua vontade. Conviver com o vírus já é um obstáculo, mas conviver com o sofrimento psicológico que decorre do preconceito social deve fazer exsurgir o dever de reparar o dano nos exatos termos do Artigo 186 do Código Civil:

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Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Com a reparação, para a vítima surgirá a sensação de que o ato perpetrado gerou uma reprimenda, ainda que civil, e com isso, uma minoração da dor causada e para o autor do ilícito civil teremos então a figura que a doutrina elenca como “caráter pedagógico da sansão”, ou seja, se o indivíduo volta a lesionar o bem jurídico de outrem, ele deverá reparar o dano sofrido, essa reparação não é apenas material, mas também moral, dentro do gênero dano moral, temos a espécie dano psicológico.

3.3 ANÁLISE PSICOLÓGICA QUANTO A ORIGEM DO STEALTHING

Quando falamos em Direito, é necessário que se analise o autor, a vítima e o delito, a isso a doutrina denomina de criminologia, ou seja, a ciência que estuda as peculiaridades do delito perante a sociedade. Não há crime sem que haja uma razão de ser. O mesmo crime pode ter várias motivações.

Para a psicológica Bárbara S. Aguiar, o autor do stealthing trata-se de um indivíduo com a masculinidade extremamente adoecida pautada na misoginia onde o homem acredita na supremacia masculina de que ele tem aquele direito, aquele poder sobre o corpo daquela pessoa. Ou seja, vivemos em uma sociedade patriarcal. Nessa sociedade o homem é tido como o pilar, o centro, sem ele não há sociedade, esse suposto poder supremo que está contido no homem, faz com que ele creia que o corpo do outro, também lhe pertence e que em razão disso ele poderá praticar todo e qualquer ato que estes, lhe serão permitidos. O misógino em si, tem a convicção íntima de que a mulher é um ser desprovido de vontades e desejo, seu corpo só existe pois ele tem um único propósito, lhe dar prazer.

Essa relação de subjugação do outro indivíduo, trouxe para o mundo jurídico muitas outras discussões, a maior dela foi a criação da Lei Maria da Penha, tombada sob o número 11.340/2006, percebemos então que relacionamento abusivos sempre existiram e existirão. Até 2006 então, as violências sofridas pela mulher eram apenas a física e a patrimonial, com o advento dessa lei, surgiram outros tipos de violência, essas outras no campo psicológico e moral. A Lei Maria da Penha traz os seguintes tipos de violência:

Podemos perceber então que a Lei Maria da Penha trouxe outros tipos de violências além das que estávamos habituados. Merecem uma especial atenção as duas últimas que são a psicológica e sexual. Com a tipificação da violência psicológica, passou-se então a vislumbrar a seguinte situação, como se trata de um ilícito penal (e não apenas civil), o agente causador do dano está passível de indenização através da ação civil ex delicto, que é a ação reparatória da vítima de dano. O dano psicológico agora passou a ser quantificado monetariamente.

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Nesse diapasão, surge a violência sexual, não se admitia, até algum tempo, a possibilidade de a mulher ser vítima de crime sexual cometido por seu marido, até porque, a conjunção carnal era dever oriundo do casamento, a partir do momento que esse tipo de violência passou a ser admitida em nosso ordenamento jurídico, indiretamente a percepção social mudou, a mulher, mesmo casada, ela tem vontades que devem ser respeitadas.

Na esteira da análise psicológica, a Juíza Theresa Karina Barbosa. Há uma relação de subjugação em que a traição de tirar o preservativo expõe a vida e a integridade física da outra pessoa e cria uma relação de subordinação dentro da relação sexual com o fim de estabelecer uma dominação e inferiorizar a mulher o que enseja violência de gênero. Nesse sentido, é possível admitir então que, estar-se-ia diante de uma das formas de violência já mencionada na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), qual seja, a violência sexual.

Nessa miscelânia de direitos e, mesclando com a psicologia jurídica, há que falar na alteração unilateral de um pacto que fora previamente estabelecido, essa alteração unilateral esta eivada de dolo ou, no melhor dos mundos de fraude, portanto. Dessa forma, não é equivocado afirmar que o consentimento se tornou viciado a partir do momento em que o preservativo fora removido, ou seja, surge uma situação que não era esperada por que, originariamente consentiu. Como bem nos alerta Alexandra Brodsky, a conduta do stealthing, ao ser analisado por uma perspectiva jurídica, faz com que o interlocutor verifique a existência de violação à vontade e a autodeterminação em querer ou não ter relações sexuais sem preservativo e, desse modo, obrigando aquele indivíduo a consumar o ato de maneira diversa da que era originariamente pretendida e, se assim fosse, não lhe seria consentido.

Analisando o aspecto psicossocial dessa conduta, na relação sexual, o praticante do stealthing vê no sexo um ato de dominação, isso porque ele está mergulhado numa cultura machista e patriarcal onde o homem se vê detentor sobre o direito do corpo alheio, todavia, para aquele que ver no sexo um ato de prazer ou até mesmo de liberdade, pode entender que esse comportamento viola sua dignidade.

Para Tatiane Herreira Trigueiro (2017, pp. 3-4) em alguns dos casos, quando cessa a conduta ilícita, a vítima que até aquele momento estava sendo induzida em erro, toma conhecimento de que o ato fora perpetrado em desacordo com o que era desejado, ou seja, o uso do preservativo era condição indispensável para que houvesse a anuência, a partir daí, a vítima é tomada por sofrimento psicológico, um sentimento de impotência, de medo e de frustração.

Trigueiro aduz que, a prática do stealthing causa danos irreversíveis na esfera psicológica do indivíduo posto que, como consequência dessa conduta, ela se sente violada em sua dignidade humana, além de ter os outros espectros da sua personalidade violado como a dignidade sexual, física, moral e, além disso, sofre abalo nas relações interpessoais, passando, a partir daquele momento, não mais se relacionar ou relacionar-se com muitas ressalvar, a desconfiança permeará todas as suas relações vindoura. Em suma, sua qualidade de vida será esgarçada.

3.4 STEALTHING NO BRASIL

No Brasil, a prática do Stealthing já é uma realidade silenciosa. As pessoas não falam abertamente sobre isso por, apesar de terem a concepção de que essa prática é imoral e inescrupulosa, não vêem meios jurídicos de buscar uma reparação ou reprimenda.

Em pesquisa feita em campo pelo professor Pedro Pulzatto Peruzzo que é professor pesquisador da Faculdade de Direito da PUC – Campinas, realizada em março de 2018, através da plataforma Google Formulário, que se vale de mecanismos de anonimato para inquirir as pessoas que se dispõem em responder aos quesitos, os resultados foram alarmantes, na ocasião, foram entrevistas 279 mulheres das mais variadas orientações sexuais, classes sociais, raças e afins. Apesar de o termo stealthing ser oriundo dos Estados Unidos da América, 21% das mulheres que responderam entendem o caráter ilícito da conduta e, desse total, 13,6% dizem afirmar saber do que se trata tal instituo, além disso, dessas 279 entrevistadas, 9% afirmam já terem se submetidos ou sofridos a prática de stealthing, como se pode verificar no gráfico abaixo:

Gráfico 1: Conhecimento sobre o tema Stealthing

Fonte: Faculdade de Direito – PUC (2018)

Esse mesmo estudo foi realizado a posteriori, dessa vez, em abril de 2018, todavia, houve uma peculiaridade que não estava presente na primeira vez, antes de o questionário ser respondido, foi apresentado para essas mulheres o conceito e as características do stealthing, novamente através da plataforma do Google Formulário, o resultado permaneceu semelhante, 10% das 49 pessoas entrevistas afirmam já terem sido vítima dessa prática, porém, dessa vez um outro dado pôde ser extraído dessa pesquisa, 39.6% das pessoas que foram questionadas afirmam que conhecem pessoas, tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino que já foram vítimas dessa conduta, como se pode ver no gráfico seguinte:

Gráfico 2: Questionário Sócio – Cultural

Fonte: Faculdade de Direito – PUC (2018)

Falando ainda dos aspectos sociais e culturais, os professores Daniel Cerqueira e Danilo Santa Cruz Coelho (2014, p. 2) pontuam que, da mesma foram que os demais atos de dominação sexual, o stealthing também é oriundo de uma sociedade falocêntrica, é produto de uma cultura patriarcal que impera em nossa sociedade; Há uma falsa ideia de dominação do masculino sobre o feminino e essa análise não se esgota nas relações heterossexuais, mas também, na homoafetiva; desse modo, o homem é o principal protagonista da violência sexual.

Nessa esteira então, é possível afirmar que a violência sexual de forma geral faz com que mulheres cisgêneros, homens não heterossexuais ou transgêneros sejam subjugados a condição de coisas e, lhe sejam removido a dignidade da pessoa humana logo, o patriarcado nada mais é do que uma construção social que hierarquiza o homem sobre os demais indivíduos, principalmente às mulheres.

Nessa mesma enquete, foi aberto espaço para que os participantes pudessem expressar o seu sentimento após descobrirem que foram vítimas dessa prática, ao verificarmos os comentários, é possível extrair desses dados duas informações importante: A primeira de que essa prática de fato é corriqueira e a segunda, importante para a criminologia, é a de que, há uma lesão expressiva a bens jurídicos que deveriam ser tutelados pelo Estado, alguns dos comentários são os seguintes:

Por fim, o stealthing não se reduz apenas num mero fetiche sexual ou satisfação de desejos, além disso, o stealthing é uma forma se autoafirmação onde o homem, ao se determinar titular do corpo do outro e, sobre ele exercer quaisquer direito que ele julgue ser detentor, está reafirmando a construção social e a falsa ideia de patriarcado existente no Brasil.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Erivaldo Santos. Stealthing: quais os reflexos jurídicos decorrentes dessa prática?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7151, 29 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101555. Acesso em: 23 dez. 2024.

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