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Discriminação lícita e ilícita nas relações de trabalho

Agenda 11/12/2023 às 18:33

Um restaurante francês que dá preferência para a contratação de um chef francês realiza espécie de discriminação justificada, segundo os critérios da qualificação ocupacional de boa-fé (QOBF).

1. INTRODUÇÃO

A igualdade e a não discriminação são direitos humanos de primeira dimensão ou geração amplamente assegurados em âmbito internacional (art. 2º Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, 1º e 7º Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 26 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, art. 2º Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, art. 1º Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica, art. 3º Protocolo de São Salvador), como corolário da dignidade humana.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 representa um marco importante na história da ordem jurídica pátria, especialmente por ter sido a primeira a garantir de maneira explícita o direito à não discriminação (art. 3º, IV). Antes dela, outras constituições brasileiras já mencionavam o princípio da igualdade perante a lei, mas não abordavam de forma específica o tema da não discriminação.

Assim, a CF/88, cujo vetor axiológico central é a proteção do ser-humano e de sua dignidade (art. 1º, III), garante o direito à não discriminação e igualdade (art. 3º, IV, art. 5º, caput), assegurando a igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I), bem como proibido a discriminação em matéria de trabalho e emprego (art. 7º, XXX).

Com a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil assumiu um compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, onde todos os indivíduos são reconhecidos e valorizados independentemente de suas diferenças (art. 3º).

Ademais, a igualdade é um princípio fundamental para a construção de uma sociedade democrática. Isso porque a democracia se baseia na ideia de que todos os cidadãos devem ter as mesmas oportunidades e direitos, independentemente de sua origem, raça, gênero ou classe social. Quando a igualdade é garantida, os indivíduos têm acesso aos mesmos recursos e oportunidades, o que significa que todos têm a possibilidade de desenvolver seu potencial e contribuir para o bem-estar coletivo. Além disso, a igualdade é essencial para a justiça social, uma vez que garante que ninguém seja discriminado ou excluído injustamente. Por essas razões, a igualdade é um valor central para a democracia e deve ser buscada constantemente, tanto no plano individual quanto no coletivo.

Sintetizando essa ideia, uma das formulações do imperativo categórico kantiano tem a seguinte dicção: toda pessoa, todo ser racional existe como um fim em si mesmo, e não como meio para o uso arbitrário pela vontade alheia.

2. ACEPÇÕES DO DIREITO À IGUALDADE

O termo "igualdade" é complexo e multifacetado, e seu significado tem evoluído ao longo dos anos. Por essa razão, o direito à igualdade pode ser entendido de diversas formas, dependendo do ponto de vista adotado. Em geral, podemos dizer que a igualdade se refere à ausência de discriminação e à garantia de que todos os indivíduos sejam tratados de forma justa e equitativa. No entanto, essa noção de igualdade pode variar de acordo com o contexto social, político e cultural em que se encontra.

Por exemplo, a igualdade pode ser entendida como uma questão de igualdade de oportunidades, igualdade de resultados ou igualdade de direitos. Além disso, a noção de igualdade pode ser influenciada por fatores como a raça, o gênero, a classe social e a orientação sexual. Por essa razão, é importante reconhecer a diversidade de significados associados à igualdade e considerá-los em nossas lutas por justiça social e igualdade de direitos.

A Constituição Federal de 1988 contempla as três dimensões da igualdade: formal (art. 5º), material (art. 3º, I, III) e como reconhecimento (art. 3º, IV).

A igualdade formal é uma dimensão da igualdade que se refere ao tratamento igualitário de todos os cidadãos perante a lei. Segundo o artigo 5º, caput, da Constituição Federal, "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Isso significa que não pode haver privilégios ou tratamentos discriminatórios com base em características como raça, gênero, orientação sexual, religião, entre outras. A igualdade formal é uma garantia fundamental para a proteção dos direitos individuais e da cidadania, pois assegura que todos sejam tratados da mesma forma pela lei.

Já a igualdade material se refere à isonomia, ou seja, à igualdade substancial, que reconhece as desigualdades sociais e busca tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Essa dimensão da igualdade demanda a redistribuição de poder, riqueza e bem-estar social para garantir que todos tenham acesso a oportunidades e condições mínimas de vida digna. A igualdade material é uma dimensão importante da justiça social, que busca superar a desigualdade e a exclusão social.

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Por fim, a igualdade como reconhecimento se refere ao respeito devido às minorias, suas identidades e diferenças, sejam elas raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras. Essa dimensão da igualdade visa eliminar preconceitos e estereótipos que possam levar à exclusão e à discriminação, garantindo a dignidade e o respeito à diversidade cultural e social. A igualdade como reconhecimento é uma dimensão importante para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, que valorize e respeite as diferenças e as pluralidades existentes na sociedade.

3. TIPOS DE DISCRIMINAÇÃO NO TRABALHO

3.1 DISCRIMINAÇÃO LÍCITA

Em quem pese o direito à não discriminação (ilícita), nem todas as modalidades de discriminação são ilícitas, havendo aquelas que são protegidas pelo direito (discriminações lícitas), como é o caso das ações afirmativas e das qualificações ocupacionais de boa-fé.

Consoante se demonstrará, tais práticas são perfeitamente compatíveis com os direitos humanos e fundamentais, pois amplamente justificadas em um contexto específico, com respaldo do ordenamento nacional e internacional.

3.1.1. Ações Afirmativas

As ações afirmativas consistem em políticas públicas ou privadas que conferem uma vantagem competitiva a membros de grupos em alguma medida socialmente marginalizados, como forma de correção de distorções históricas (art. 5º Conv. 155 OIT, “core obligation”; art. 1º, 5, Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, com status constitucional, aprovada pelo rito do art. 5º, §3º, CF/88, art. 5º Diretiva 2000/43/CE). Trata-se de medidas temporárias, com o objetivo de acelerar a efetivação da igualdade, não devendo ser mantidas uma vez alcançada a igualdade almejada.

Como exemplos, podem ser citadas as reservas de vagas em empresas para pessoas com deficiência (art. 93 da Lei 8.213/91, Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência – Convenção de Nova Iorque de 2007 (ratificada e aprovada com quórum especial do art. 5º, §3º, CF/88 – status de emenda à Constituição, Art. 5), para aprendizes (art. 429 da CLT), bem como o percentual reservado em vagas de concursos públicos para pessoas negras (Lei 12.990/2014; Estatuto da Igualdade Racial – Lei 12.288/2010, Art. 1º, VI; Convenção interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, Art. 1º, 5), bem como a reserva de vagas em Universidade para egressos de escolas públicas (Lei 12.711/2012).

Além disso, é possível a instituição de medidas afirmativas por empresas privadas, como é o caso do programa de trainee da Magazine Luíza, com fundamento no Art. 1º, VI, da Lei 12.288/2010.

Por sua vez, a jurisprudência é pacífica em reconhecer a constitucionalidade das medidas afirmativas e sua compatibilidade com o princípio da igualdade e não discriminação. Nesse sentido, o STF reconheceu a constitucionalidade da atos administrativos que versavam sobre cotas raciais na UnB (ADPF 186) e do ProUni que concedia Bolsas para egressos de escolas públicas (ADI 3.330).

Assim, as ações afirmativas têm sido adotadas como uma forma de acelerar a obtenção da igualdade e combater a discriminação histórica de grupos minoritários ou vulneráveis. Sem essas medidas, poderia levar décadas ou mesmo gerações para que houvesse uma mudança significativa na igualdade de oportunidades no mercado de trabalho e na sociedade em geral.

É importante destacar que as ações afirmativas não são uma forma de discriminação reversa, mas sim uma forma de garantir a igualdade de oportunidades e o acesso aos direitos fundamentais que foram negados a grupos minoritários ao longo da história. Além disso, essas políticas não são uma solução definitiva, mas sim um passo importante na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, em que todos tenham as mesmas oportunidades e direitos.

3.1.2. Qualificação Ocupacional de Boa-fé (QOBF)

Por sua vez, as Qualificação Ocupacional de Boa-fé (QOBF) ou Bona Fide Occupational Qualification (BFOQ) são requisitos razoáveis e proporcionais exigidos para determinados trabalhos que, embora produzam o efeito de limitar o acesso a tais trabalhos, revelam uma finalidade lícita que se pretende alcançar. Exemplo, uma restaurante francês que dá preferência para a contratação de um chef francês, ou a exigência de ator negro para interpretar o Pelé. Possui ampla previsão normativa (por exemplo, Art. 1º, 2, Conv. 111 OIT e Diretiva 2000/43/CE, art. 4º).

A qualificação ocupacional de boa-fé (QOBF) é uma exceção legal que permite a discriminação no emprego com base em certas características, desde que essas características sejam consideradas essenciais para o trabalho em questão. A justificativa para essa exceção é que, em alguns casos, certas características pessoais podem ser fundamentais para o desempenho da atividade profissional e, portanto, não é razoável exigir que as empresas contratem pessoas que não possuem essas características. Por exemplo, a contratação de um ator para interpretar um personagem específico em um filme pode exigir uma característica específica, como idade, altura ou habilidade física. No entanto, é importante ressaltar que a QOBF é uma exceção limitada e deve ser interpretada de forma restritiva, de modo a evitar a discriminação arbitrária e ilegal.

O caso Dothard v. Rawlinson (433 U.S. 321 1977) é um exemplo de como a BFOQ pode ser aplicada na prática. Nesse caso, a Suprema Corte dos EUA decidiu que a exigência do sexo masculino na contratação de guardas para presídios masculinos de segurança máxima era lícita, pois as diferenças físicas entre homens e mulheres poderiam afetar a habilidade dos guardas em lidar com os presos e manter a ordem e segurança na prisão. É importante ressaltar que a BFOQ é uma exceção à regra geral de igualdade no acesso ao emprego e deve ser aplicada com cautela, de forma restrita e apenas em situações em que a característica pessoal exigida é essencial para o desempenho adequado da atividade profissional em questão.

3.2 DISCRIMINAÇÃO ILÍCITA

3.2.1 Discriminação direta

Já a discriminação ilícita (direta) consiste em toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão (art. 1º, 1, a, Convenção 111 da OIT, “core obligation”, ratificada pelo Brasil). Essa ideia consiste na forma direta de sua exteriorização.

A discriminação ilícita no ambiente de trabalho é uma prática que vai contra os valores sociais do trabalho (art. 1º, IV, CF), que são fundamentais para a busca pelo pleno emprego (art. 170, VIII, CF) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF). A Constituição brasileira de 1988 assegura o direito à igualdade e à não discriminação no trabalho (art. 7º, XXX) , e estabelece que o trabalho é um valor social indispensável para a realização da justiça social (art. 170, caput, e 193, caput).

A discriminação no trabalho pode limitar o acesso de grupos minoritários ou vulneráveis ao mercado de trabalho, prejudicando a promoção da igualdade de oportunidades e a busca pelo pleno emprego. Além disso, a discriminação no trabalho pode afetar negativamente a autoestima e a dignidade dos trabalhadores, gerando um ambiente laboral hostil e desrespeitoso. Por isso, é fundamental que as políticas públicas e empresariais promovam a eliminação de práticas discriminatórias, com medidas que visem à conscientização e à responsabilização por esse tipo de conduta ilegal. Somente assim poderemos construir uma sociedade mais justa e igualitária, onde o trabalho seja um valor social plenamente realizado em benefício de todos os trabalhadores.

3.2.2 Discriminação Indireta

Todavia, nem sempre a distinção ou a segregação ocorre de forma clara e explícita. Nesse sentido, a discriminação indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base em origem, raça, gênero ou outro critério injustamente desqualificante (Convenção Interamericana Contra toda Forma de Discriminação e Intolerância - art. 1º, 2; Diretiva 2000/43/CE, Art. 2, 2, b).

O caso Griggs vs. Duke Power Co. (EUA - 1971) é um importante precedente na luta contra a discriminação no acesso ao emprego. Na ocasião, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que as práticas de emprego da empresa Duke Power Co. eram discriminatórias de forma indireta, pois exigiam requisitos educacionais e de qualificação que não eram diretamente relevantes para a posição a ser preenchida, mas que excluíam desproporcionalmente pessoas de minorias raciais, especialmente afro-americanos. A decisão estabeleceu o princípio de que a discriminação indireta, também conhecida como discriminação por impacto ou efeito, pode ser considerada ilegal mesmo que não haja intenção explícita de discriminar. Esse princípio é fundamental para garantir que as políticas e práticas de emprego sejam avaliadas com base em seus resultados e possíveis efeitos discriminatórios, e não apenas em suas intenções declaradas.

3.2.3 Discriminação múltipla ou agravada e interseccionalidade

Poderá ocorrer ainda uma sobreposição de discriminações sobre a mesma pessoa, a chamada discriminação múltipla ou agrava, que ocorre quando há qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição baseada, de modo concomitante, em dois ou mais dos critérios discriminatórios, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais (Convenção Interamericana Contra toda Forma de Discriminação e Intolerância - art. 1º, 3).

A discriminação múltipla ou agravada ocorre quando uma pessoa sofre discriminação por mais de uma característica protegida, como raça, gênero, orientação sexual, idade, deficiência, entre outras. Por exemplo, uma mulher negra pode enfrentar discriminação por ser negra e por ser mulher ao mesmo tempo, e essa discriminação pode ser ainda mais agravada se ela também for LGBTQIA+ ou tiver uma deficiência.

Por sua vez, a interseccionalidade é um conceito que se refere à forma como essas diferentes formas de discriminação e opressão se cruzam e se interconectam. Isso significa que a discriminação não é apenas uma questão de uma única característica, mas sim de múltiplas identidades que se sobrepõem e se influenciam mutuamente.

A teoria da interseccionalidade surgiu como uma crítica ao feminismo branco tradicional, que muitas vezes não levava em conta as experiências de mulheres negras e outras mulheres de minorias étnicas. A ideia é que as mulheres não são todas iguais e que sua experiência de opressão varia de acordo com a intersecção de suas diferentes identidades.

Portanto, é importante reconhecer e combater a discriminação múltipla ou agravada e adotar uma abordagem interseccional para entender as diferentes formas de opressão que as pessoas enfrentam. Isso envolve ouvir e valorizar as vozes das pessoas de minorias e trabalhar para criar um ambiente mais inclusivo e justo para todas as pessoas, independentemente de sua raça, gênero, orientação sexual, idade, deficiência ou qualquer outra característica.

4. CONCLUSÃO

Em síntese, a discriminação lícita ou ilícita nas relações de trabalho é um assunto de grande importância e merece ser discutido e compreendido pela sociedade. Enquanto a discriminação lícita é permitida pela legislação trabalhista, a discriminação ilícita é proibida e constitui uma violação dos direitos humanos e trabalhistas. É fundamental que as empresas e organizações adotem políticas de igualdade e diversidade para evitar a discriminação e promover a inclusão de todas as pessoas, independentemente de suas características pessoais.

Por fim, é importante destacar que a luta contra a discriminação nas relações de trabalho é uma responsabilidade de todos, não apenas das empresas e organizações. Cada um de nós pode e deve contribuir para criar um ambiente de trabalho mais justo e igualitário, seja denunciando casos de discriminação, seja educando as pessoas sobre a importância da diversidade e da inclusão. Somente com a união e o esforço coletivo podemos erradicar a discriminação e construir uma sociedade mais justa e igualitária.

Bibliografia

  1. DELGADO, Mauricio Godinho Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores —Mauricio Godinho Delgado. — 18. ed.— São Paulo : LTr, 2019.

  2. Vale, Silvia Teixeira do. De Lacerda, Rosangela Rodrigues D. Curso de direito constitucional do trabalho / Silvia Teixeira do Vale,. -- São Paulo : LTr, 2021.

  3. LOPES, Otavio Brito. A discriminação indireta No mercado de trabalho. Gênero E Raça. Brasil. Ministério Público do Trabalho. 15 anos de Coordigualdade / Maria Aparecida Gugel [et al.]. — Brasília : Gráfica Movimento, 2018. Brasil. Ministério Público do Trabalho.

Sobre o autor
Leonardo Rodrigues Teófilo

Analista Judiciário - Área Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 7a Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEÓFILO, Leonardo Rodrigues. Discriminação lícita e ilícita nas relações de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7467, 11 dez. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103599. Acesso em: 22 nov. 2024.

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