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Decisão do STF e a lei do abuso de autoridade: combinação perigosa?­

Agenda 06/05/2023 às 11:00

A Justiça se enfraquece com a insegurança das prerrogativas da magistratura, como visto na decisão que assegurou a liberdade até o trânsito em julgado da decisão condenatória.

A decisão do Supremo Tribunal Federal, em 7 de novembro de 2019, pela invalidação da prisão de execução provisória da pena, após decisão condenatória em segunda instância, mas ainda questionada em instâncias superiores, não surpreendeu ninguém e especialmente os juristas. Pode ter agradado ou desagradado a muita gente, é verdade, conforme a decisão se afine com sua própria visão do mundo e das leis. Mas (i) o resultado já era esperado e (ii) desde que Luhmann evidenciou, na década de 1960, com sua obra legitimação pelo procedimento1, que o Direito abriu mão da correção das decisões (algo impossível de garantir) e substituiu pela lisura do procedimento decisório, não haveria o que questionar, fosse qual fosse o resultado.

A Suprema Corte norte-americana, em 1986, decidiu que era crime a prática de atos homossexuais (Bowers & Hardwick)2. Em 2003, no caso Lawrence versus Texas (539 U.S. (2003)), reverteu a decisão. Proclamou que adultos voluntariamente podem se engajar em práticas homossexuais sem ofender o devido processo substantivo. Tais atos estão ao abrigo da disposição principiológica maior dentro da ordem constitucional norte-americana.

Outro exemplo, vindo da mais antiga e primeira democracia constitucional ocidental, contribui para essas reflexões: o caso do aborto. Em Roe & Wade3, de 1973, a Suprema Corte chamou para si a responsabilidade de apaziguar o confuso ambiente jurídico federal a respeito do tema e lançou a nação inteira num ambiente de absoluta segurança jurídica, clara e bem explicitada, no tocante ao polêmico ponto. Se o fez bem, cientificamente, moralmente, correta ou incorretamente, muitos questionam. Mas desde então o Direito esclareceu às cidadãs norte-americanas quando podem, quando podem menos e finalmente quando não podem de jeito nenhum fazer um aborto. A partir de 1973, os republicanos tentam, a cada renovação de ministro na Corte, um reversal (revisão daquela decisão). Até agora não conseguiram, embora tenham estado na Casa Branca por muitos mandatos presidenciais e tenham indicado muitos dos atuais integrantes do tribunal. Isso quer dizer o quê? Que uma mudança de posição de uma Corte é algo com que os sistemas democráticos convivem e onde até pode ser buscada legitimamente.

Tudo normal, então? Só aparentemente.

Há ao menos três aspectos que merecem um olhar especial. Não se trata de criticar a decisão, em si, de nosso mais alto tribunal. Mas de analisá-la sob óticas diferentes, não atinentes ao conteúdo, algumas das quais se conjugam a outros fatores para construir um cenário preocupante para a magistratura e para os jurisdicionados.

Em primeiro lugar, vale considerar que não se tratou de uma decisão simples. Seis a cinco não é um placar confortável para uma decisão de tanto impacto social e jurídico. Não é por acaso que as decisões da Suprema Corte norte-americana só ganham efeito vinculante quando alcançam ao menos seis dos nove votos possíveis. A divisão do STF revela um hard case, um daqueles casos em que o quadro normativo em exame pode mesmo derrubar o intérprete. Evidencia-se, aí, na linha do vetusto pensamento kelseniano, que a construção do sentido (norma) em que deve ser tomada a proposição legislativa pode transformar-se num tremendo exercício de ginástica mental, referido antológica e analogicamente por Ayres Brito numa situação assemelhada.

Acrescente-se a isso que a divisão dos senhores ministros, quanto ao entendimento, não foi aleatória. A linha de meio de campo está num ponto do tempo que põe numa banda os “mais experientes” (permita-se a classificação) e na outra os “menos experientes”. A ilação que se impõe é que ou não se fazem mais juristas como antigamente ou os tempos estão exigindo novas visões jurídicas. As mutações da realidade, tão massacrantes e desestabilizadoras, envolvendo inclusive a hiperconectividade tecnológica do mundo e a amplificação decorrente da participação democrática nos processos em geral, tem mesmo potencial para desatualizar paradigmas (Kuhn) e estruturas pessoais de decisão. Não é por acaso que as escolas de magistratura ganharam um papel fundamental, há alguns anos, na reciclagem continuada dos senhores magistrados. Todos os dias há algo novo para aprender. E as visões de ontem já podem não ser pertinentes para hoje.

É possível pensar, portanto, que há uma tendência clara de renovação de visões no STF mas que, por circunstâncias institucionais e temporais, o país ainda terá de conviver sob a égide de visões que estão perdendo sentido e operatividade. Porque algo funcionou na década de 70, por exemplo, não quer dizer que continua servindo hoje. Só num nível muito abstrato, principiológico, pode-se trabalhar com essas tentativas de não evolução da estrutura operativa do Direito.

Tem-se de dizer, ainda, neste ponto, que os juízos de generalização que têm sido externados por muitos, qualificando o STF disso e daquilo, pecam seriamente.

Em segundo lugar, é preciso falar de segurança jurídica. Nos exemplos dados dos EUA, da questão dos homossexuais e do aborto, evidencia-se uma preocupação com o papel da Suprema Corte em relação à geração de segurança jurídica.

A decisão de Bowers & Hardwick (homossexuais), de 1986, foi revertida em 2003, 17 anos depois. Parte substancial da corte havia sido renovada e a matéria era candente. Do ponto de vista sociológico havia uma transformação imensa desde os movimentos do fim da década de 60. Portanto, pode-se afirmar que, fosse com os mesmos justices, fosse com outros, era natural uma revisão das diretrizes interpretativas a respeito. As visões normativas precisavam ser atualizadas.

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O caso do aborto é também emblemático em sentido contrário (no caso, de fixidez e permanência da norma). Embora os republicanos venham tentando há décadas uma reversão da decisão, vasculhando passado e pensamento dos indicados para a Suprema Corte, não obtiveram êxito até agora. Transformados em Justices, os juristas analisam as questões com olhos diferentes dos habituais. Vestem a toga, abrem mão de seus pontos de vista pessoais e a decisão se mantém até os dias atuais. Errado, certo? Pode-se discordar a respeito. Mas ninguém pode dizer que a Corte não tem garantido segurança jurídica às cidadãs norte-americanas. Elas sabem com precisão se estão, com seus atos, no lado do direito ou do crime.

Mas a segurança jurídica não significa fixidez normativa, é claro. Embora a mesma constituição norte-americana esteja em vigor desde 1787, com poucas emendas, seu texto, pela via dos intérpretes, ganhou sempre muitos sentidos, sempre atualizados para atender à evolução da realidade. Sob ela, negros tiveram negado seu acesso aos tribunais porque não eram pessoas (caso Dred Scott v. Sandford, de 1857), grandes figuras políticas tiveram seus escravos (Washington), controlar a natalidade foi crime, assim como o aborto, dependendo do Estado da Federação, a segregação racial imperou longamente em vários Estados, mesmo após a abolição da escravidão.

Manejando o mesmo texto constitucional, os intérpretes foram atualizando os sentidos e suas próprias visões às novas exigências da sociedade. Uma atitude de grandeza dos juristas que Holmes, papa dos realistas, respondendo à clássica pergunta sobre o direito (O que é o Direito? Kelsen, Hart, Dworkin...) animou-se a responder que o Direito é o que os tribunais dirão que ele é.

Tais movimentos de atualização normativa (o direito tem de ser dúctil) não podem significar insegurança jurídica. Quem dá o sentido às normas não pode ter um comportamento errático: ontem era, hoje não é, amanhã será de novo. Este é um cenário de insegurança que não se coaduna com cortes que têm, inclusive, o poder de vincular todo o sistema, com suas decisões, para gerar uniformidade de tratamento e segurança no trato dos cidadãos pelo Estado. Talvez essa seja uma crítica válida ao STF, não pelo conteúdo da decisão, em si, mas pela mutabilidade da norma sem que o texto legislativo mude e sem que a própria composição da corte mude.

Em terceiro lugar, tem-se de considerar o cenário em que o STF entrega a decisão: período de vacatio legis da denominada lei de abuso de autoridade. E este é um ponto especial.

Ficou bem evidente, na decisão e nas explicações dos ministros, que cada caso será um caso, que os juízes de origem precisarão analisar e decidir os pedidos de liberdade de quem está em cumprimento provisório de pena.

A conjugação desses dois fatores pode contribuir para um cenário explosivo em termos de insegurança jurídica, para jurisdicionados e para a própria magistratura.

Nunca, em tempo algum, a ideia de prerrogativas (que são os instrumentos assecuratórios da independência e da imparcialidade dos magistrados) ganhou tanta relevância.

Os cidadãos brasileiros precisam entender o que são prerrogativas e fazer tudo para que seus juízes as tenham em abundância. Não há democracia onde as prerrogativas da magistratura não estão bem asseguradas. Quando o juiz, além de considerar o caso, precisa levar em conta as conseqüências para ele mesmo da decisão que vai proferir (ou seja, suas prerrogativas não o resguardam mais), não há mais juiz no processo. Há apenas um arremedo de processo para legitimar a imposição das visões de quem tem o poder de fato.

Quando os pais da primeira constituição ocidental consideraram a situação dos juízes, resolveram não lhes dar o controle das armas, mas cercá-los das garantias (prerrogativas) para poderem exercer seu papel de poder com independência e imparcialidade. Os papers ditos Federalistas 78 a 81, de Hamilton, são uma carta exuberante dos zelosos cuidados dos inspiradores da Constituição de 1787 com a magistratura, para dotá-la das prerrogativas consideradas indispensáveis ao exercício imparcial, independente e seguro do mister central das democracias – o de julgar e decidir.

Do acesso ao cargo, passando pela vitaliciedade e chegando à questão da manutenção financeira, tudo é extensa e pragmaticamente examinado. No início do Paper 79, Hamilton4 escreve a célebre frase a respeito do sustento dos juízes: “No transcurso geral da natureza humana, um poder sobre a subsistência de um homem implica um poder sobre a sua vontade.” [grifo no original, trad. livre] E continua preocupado com a independência dos poderes: “E não devemos nunca esperar ver realizada na prática uma completa separação entre poder judicial e legislativo em qualquer sistema que deixe o primeiro dependente de recursos pecuniários ocasionalmente garantidos pelo segundo.”[trad. livre]

O enfraquecimento das prerrogativas são, ou serão em breve, uma preocupação central dos magistrados. Quem quer uma magistratura enfraquecida? Juízes sem prerrogativas interessam a quem? Somente aos criminosos. Ao cidadão de bem interessa magistrados cercados de todas as garantias para entregar o direito segundo o direito, não segundo a vontade dos poderosos de plantão.

O que tem isso a ver com sustento do juiz, pinçado de Hamilton e transcrito acima? A resposta é: tudo! O mesmo dinheiro arranjado por meios escusos pode ser, e será, certamente, mobilizado para infernizar os magistrados, na alma e no bolso. Um poder de reduzir as condições de subsistência de um homem é também um poder sobre a sua vontade, como adverte claramente Hamilton.

Portanto, quando se conjuga o esmaecimento das prerrogativas da magistratura com a decisão de garantir liberdade aos criminosos até o trânsito em julgado de uma decisão condenatória, as conseqüências para o enfraquecimento do Poder Judiciário e sua capacidade de promover a justiça são imensas.

A sociedade precisa mobilizar-se para dar aos juízes a força que precisam ter para promover, via imposições legais independentes e fiáveis, a sociedade almejada pelos cidadãos de bem, onde os bons tenham preferência sobre os maus. Só juízes com prerrogativas revigoradas poderão matizar, em parte, os efeitos da decisão do STF.

Portanto, a quem interessam juízes sem prerrogativas? Não é aos cidadãos de bem.


Notas

1 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. De Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília:UnB, 1980.

2 PEREIRA, S. Tavares. Devido processo substantivo (Substantive due process). Florianópolis:Conceito Editorial, 2007. p. 142. (Bowers v. Hardwick, 478 U.S. 186 (1986)).

3 ORTH, John V. Due processo of law: a brief history. Lawrence: University of Kansas Press, 2003. p. 78.

4 HAMILTON, Alexandre et. Alii. The Federalist. Chicago: Encyclopedia Britannica, 1952. p. 233.

Sobre o autor
S. Tavares-Pereira

Mestre em Ciência Jurídica pela Univali/SC e pós-graduado em Direito Processual Civil Contemporâneo. Autor de "Devido processo substantivo (2007)" e de <b>"Machine learning nas decisões. O uso jurídico dos algoritmos aprendizes (2021)"</b>. Esta obra foi publicada em inglês ("Machine learning and judicial decisions. Legal use of learning algorithms." Autor, também, de inúmeros artigos da área de direito eletrônico, filosofia do Direito, direito Constitucional e Direito material e processual do trabalho. Várias participações em obras coletivas. Teoriza o processo eletrônico a partir do marco teórico da Teoria Geral dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Foi programador de computador, analista de sistemas, Juiz do Trabalho da 12ª região. e professor: em tecnologia lecionou lógica de programação, linguagem de programação e banco de dados; na área jurídica, lecionou Direito Constitucional em nível de pós-graduação e Direito Constitucional e Direito Processual do Trabalho em nível de graduação. Foi juiz do trabalho titular de vara (atualmente aposentado).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, S. Tavares-. Decisão do STF e a lei do abuso de autoridade: combinação perigosa?­. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7248, 6 mai. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103898. Acesso em: 22 dez. 2024.

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