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Breves comentários sobre a Lei 14.562/2023 e o art. 311 do Código Penal

É cabível a responsabilização criminal da conduta caracterizada pela mera condução de veículo sem placa, já contemplada como infração administrativa?

Foi publicada, em 26 de abril de 2023, com vigência imediata, a Lei 14.562/23, que “altera o art. 311 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para criminalizar a conduta de quem adultera sinal identificador de veículo não categorizado como automotor”.

A novel legislação chamou a atenção dos profissionais especializados e da mídia em geral, suscitando dúvidas sobre seu alcance. Há vozes defendendo, por exemplo, que conduzir veículos sem placas “agora é crime”, ou que o art. 311 passou a ser “crime inafiançável”.

Porém, essas conclusões parecem extrapolar o novo texto normativo. A fim de facilitar a visualização e o entendimento, observe-se o seguinte quadro, com a redação anteriormente vigente e a redação atual:

REDAÇÃO ANTERIOR REDAÇÃO APÓS A LEI 14.562/23
Adulteração de sinal identificador de veículo automotor Adulteração de sinal identificador de veículo
Art. 311. Adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento: Art. 311. Adulterar, remarcar ou suprimir número de chassi, monobloco, motor, placa de identificação, ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, de semirreboque ou de suas combinações, bem como de seus componentes ou equipamentos, sem autorização do órgão competente:
Pena – reclusão, de três a seis anos, e multa. Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa.
§ 1º Se o agente comete o crime no exercício da função pública ou em razão dela, a pena é aumentada de um terço § 1º Se o agente comete o crime no exercício da função pública ou em razão dela, a pena é aumentada de um terço.

§ 2º Incorre nas mesmas penas o funcionário público que contribui para o licenciamento ou registro do veículo remarcado ou adulterado,

fornecendo indevidamente material ou informação oficial.

§ 2º Incorrem nas mesmas penas do caput deste artigo:

I – o funcionário público que contribui para o licenciamento ou registro do veículo remarcado ou adulterado, fornecendo indevidamente material ou informação oficial;

II – aquele que adquire, recebe, transporta, oculta, mantém em depósito, fabrica, fornece, a título oneroso ou gratuito, possui ou guarda maquinismo, aparelho, instrumento ou objeto especialmente destinado à falsificação e/ou adulteração de que trata o caput deste artigo; ou

III – aquele que adquire, recebe, transporta, conduz, oculta, mantém em depósito, desmonta, monta, remonta, vende, expõe à venda, ou de qualquer forma utiliza, em proveito próprio ou alheio, veículo automotor, elétrico, híbrido, de reboque, semirreboque ou suas combinações ou partes, com número de chassi ou monobloco, placa de identificação ou qualquer sinal identificador veicular que devesse saber estar adulterado ou remarcado.

§ 3º Praticar as condutas de que tratam os incisos II ou III do § 2º deste artigo no exercício de atividade comercial ou industrial:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 4º Equipara-se a atividade comercial, para efeito do disposto no § 3º deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino, inclusive aquele exercido em residência.

A intenção primária do legislador, como já revelado na ementa da nova lei, foi ampliar o escopo do tipo penal, abrangendo outros objetos materiais além do veículo automotor.

Isso porque o art. 96, I, do Código de Trânsito Brasileiro classifica os veículos, quanto à tração, em: a) automotor; b) elétrico; c) de propulsão humana; d) de tração animal; e) reboque ou semirreboque.

Em razão dessa distinção, os tribunais, corretamente, decidiam que a adulteração de sinal identificador de reboques ou semirreboques era atípica:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE ADULTERAÇÃO DE SINAL IDENTIFICADOR DE VEÍCULO AUTOMOTOR. TESE DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR ATIPICIDADE FORMAL. SUPOSTA ADULTERAÇÃO DA PLACA DE VEÍCULO SEMIRREBOQUE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. DEMAIS TESES. PREJUDICIALIDADE. RECURSO PROVIDO.

1. A conduta imputada aos Recorrentes é formalmente atípica, pois não se amolda à previsão do art. 311, caput, do Código Penal, já que, nos termos do art. 96, inciso I, do Código de Trânsito Brasileiro, existe diferença entre veículos automotores - previsto no tipo penal - e veículos semirreboques, de modo que, em atenção ao princípio da legalidade, é de rigor o trancamento da ação penal quanto ao delito em análise.

2. As teses relacionadas à prisão preventiva estão prejudicadas, devido ao reconhecimento do trancamento da ação penal em favor dos Recorrentes e, ainda, porque foram soltos em 15/05/2018 - conforme consta no sítio eletrônico da Corte de origem.

3. Recurso ordinário provido, a fim de trancar a ação penal deflagrada em desfavor dos Recorrentes, em razão da atipicidade formal da conduta que lhes foi atribuída na denúncia.

(STJ, 6ª Turma, RHC 98.058/MG, rel.ª Min.ª Ministra Laurita Vaz, j. em 24/9/2019, DJe de 7/10/2019.)

Assim, preencheu-se esse vácuo existente na legislação anterior, de modo que passou a ser típica a adulteração de sinal identificador de veículos elétricos, híbridos, reboques, semirreboques ou suas combinações.

Apesar de o tipo já conter interpretação analógica (“ou qualquer sinal identificador”), foram especificados outros objetos sobre os quais pode recair a conduta (monobloco, motor, placa de identificação), além de ser inserido um elemento normativo (“sem autorização do órgão competente”).

Esse elemento, embora formalmente novo, já estava implicitamente contido na redação anterior, pois a alteração de sinal identificador com autorização do órgão de trânsito não lesiona o bem jurídico (a fé pública).

O núcleo suprimir, agora presente no tipo, tem o sentido de retirar, destruir, eliminar. A simples conduta de conduzir o veículo sem placa de identificação não se amolda ao crime, pois o caput pune a supressão do sinal identificador, e não a condução do veículo.

Uma vez flagrado o condutor conduzindo veículo sem placa – e havendo previsão legal no sentido de que aquele veículo deveria estar emplacado – tem-se, a priori, a infração administrativa do art. 230, IV do Código de Trânsito Brasileiro.

Já a nova forma equiparada do § 2º, III, que efetivamente traz o verbo conduzir, limitou-se ao caso de “sinal identificador veicular que devesse saber estar adulterado ou remarcado”, com eloquente silêncio quanto a “suprimido”.

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Neste ponto, é de se destacar que suprimir não é o mesmo que estar ausente. A supressão pressupõe uma conduta, ação voluntária do agente (ex.: retirar as placas do veículo), não se confundindo com fatos da natureza (ex.: placa que é arrancada em razão de forte correnteza).

A anterior supressão voluntária é fato de difícil comprovação e, assim sendo, forçoso se admitir que um flagrante na forma tentada é, na prática, mais provável (ex.: indivíduo é flagrado quando tentava raspar o número do chassi) do que a hipótese trazida pelo § 2º, III do artigo em comentário.

Anote-se, ainda, que não houve alteração da pena da forma simples (que permanece sendo de reclusão, de três a seis anos, e multa), de modo que são completamente equivocados os boatos de que a conduta “agora é inafiançável”.

Além de a pena ser rigorosamente a mesma, o que torna ainda mais inusitado esse burburinho, há certa confusão entre ser o crime inafiançável e a possibilidade de concessão de fiança pelo Delegado de Polícia.

É certo que, nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima seja superior a quatro anos – como o art. 311, CP –, não pode a autoridade policial arbitrar fiança (art. 322, CPP). Porém, isso não torna o crime “inafiançável”, de modo que o juiz poderá, na audiência de custódia ou no curso da persecução penal, conceder a liberdade ao agente mediante o pagamento de fiança.

De se consignar, ainda, que a conduta prevista no art. 311 do Código Penal pode caracterizar, concomitantemente, a infração administrativa capitulada no art. 230, I do Código de Trânsito, onde se constata que “conduzir o veículo com o lacre, a inscrição do chassi, o selo, a placa ou qualquer outro elemento de identificação do veículo violado ou falsificado” é infração de natureza gravíssima.

Detalhe importante é que, para a autuação da infração administrativa aqui evidenciada, não é imperioso que se demonstre que o condutor do veículo tinha, ou deveria ter, prévio conhecimento da violação ou da falsificação – para a configuração do crime, sim.

Não se ignora que a condução de veículo sem placa funcione, muitas vezes, como verdadeiro estímulo a comportamentos indevidos no trânsito e, até mesmo, a práticas mais gravosas (ensejando crimes de trânsito em espécie ou crimes no trânsito).

Nesse particular, cabe, sim, aos órgãos/entidades de trânsito responsáveis o exercício de rigorosa fiscalização em relação à conduta em análise e, quando for o caso, da aplicação da medida administrativa de remoção (antecedente à aplicação da respectiva penalidade). Às forças policiais, atuação igualmente intransigente no tocante à possibilidade de configuração do crime previsto no art. 311 do Código Penal.

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O que não nos parece cabível, em razão dos princípios da subsidiariedade do Direito Penal e da intervenção mínima, é a responsabilização, na esfera criminal, da conduta caracterizada pela mera condução de veículo sem placa, já contemplada como infração administrativa com previsão de sanção nessa seara.

Quanto ao legislador, poderia ter aperfeiçoado ainda mais a norma, tornando-a mais razoável e até mesmo menos controversa, estabelecendo como qualificadora ou como causa de aumento de pena a utilização de veículo sem placa ou nas condições previstas no caput do art. 311 do CP para fins de cometimento de crimes diversos (situação deveras corriqueira), como, por exemplo, numa ocorrência de roubo ou de latrocínio onde o autor utiliza no deslocamento/fuga uma motocicleta sem placa ou com a placa adulterada – passando a previsão do dispositivo em questão à condição de crime subsidiário, aplicável de forma autônoma quando não se constituísse elemento de crime mais grave.

O CTB, aliás, assim já estabelece em relação aos crimes nele elencados, aduzindo em seu art. 298, II, ser uma das circunstâncias que sempre agravam as penalidades dos crimes de trânsito ter o condutor do veículo cometido a infração penal utilizando o veículo sem placas, com placas falsas ou adulteradas.

Portanto, o “novo” art. 311 do Código Penal, embora intensifique a repressão de condutas lesivas à fé pública, não possui a amplitude que alguns pretendem lhe emprestar, havendo espaço para aprimoramento do enfrentamento dessas condutas.

Sobre os autores
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULINO, Arnold Torres; PAULINO, Luís Carlos. Breves comentários sobre a Lei 14.562/2023 e o art. 311 do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7248, 6 mai. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/103916. Acesso em: 2 nov. 2024.

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