5. O CORPO COMO DIREITO DE PERSONALIDADE
O direito de personalidade é um direito subjetivo bastante abrangente, sendo respaldado explicita e implicitamente pelo Código Civil de 2002, e pela Carta Magna.
Leonardo Estevam de Assis Zanini, diz que os direitos de personalidade “são o mínimo essencial ao pleno desenvolvimento da personalidade de todos os seres humanos” (ZANINI, 2011. p. 94).
Em conhecença,
o primeiro direito de personalidade é o de adquirir direitos, pretensões, ações e exceções e de assumir deveres, obrigações, ou situações passivas em ação ou exceção. (...) Se a capacidade de direito é pressuposto do nascimento de direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções, o problema de existir, ou não, direito de personalidade como tal, direito-cerne, vem antes de se pensar em pressuposto. (...)
O direito à personalidade como tal é direito inato, no sentido de direito que nasce com o indivíduo. (...) O objeto do direito de personalidade como tal não é a personalidade: tal direito é o direito subjetivo a exercer os poderes que se contêm no conceito de personalidade; pessoa já é quem o tem, e ele consiste exatamente no ius, direito absoluto. (...) O direito de personalidade como tal não é direito sobre a própria pessoa; é o direito que se irradia do fato jurídico da personalidade. (...) Direitos da personalidade são todos os direitos necessários à realização da personalidade, à sua inserção nas relações jurídicas. (MIRANDA, 2000, p. 37-39).
Nas palavras de Gustavo Tepedino,
a personalidade humana deve ser considerada, antes de tudo como um valor jurídico, insuscetível, pois, de redução a uma situação jurídica-tipo ou a um elenco de direitos subjetivos típicos, de modo a se proteger eficaz e efetivamente as múltiplas e renovadas situações em que a pessoa venha a se encontrar, envolta em suas próprias e variadas circunstâncias. (TEPEDINO, 2003, p. 18).
O Código Civil de 2002, expressamente trata dos direitos de personalidades em capítulo próprio, nos artigos 11 a 21. Essa incorporação, ocorrida pelo Código em comento, não foi necessariamente uma surpresa para o ordenamento jurídico, uma vez que a Constituição Federal de 1988 já vinha tratando do assunto.
A título de ensinamento, o artigo 5°, inciso X da Carta Maior, trata de alguns dos direitos fundamentais e personalíssimos, que faz parte da personalidade da pessoa natural. Veja:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
“X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (BRASIL, 1988).
Desta forma, os direitos de personalidade podem ser classificados por intermédio dos direitos fundamentais subjetivos a cada ser humano, sendo considerados de personalidade a integridade física, intelectual e moral.
Maria Helena Diniz, inteligentemente leciona que,
os direitos da personalidade são os direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a sua integridade física (vida, alimentos, próprio corpo vivo ou morto, corpo alheio vivo ou morto, partes separadas do corpo vivo ou morto); a sua integridade intelectual (liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária); e a sua integridade moral (honra, imagem, recato, segredo profissional e doméstico, identidade pessoal, familiar e social) (DINIZ, 2015, p.118).
Essa classificação, origina-se do direito de proteção, fundamental para todos que possuem personalidade, inerente a cada um desde a sua concepção, sucedendo como base existencial.
Assim sendo, indispensável se torna os direitos fundamentais que buscam proteger a personalidade do homem. “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária” (BRASIL, 2002).
Vale ressaltar, que além de intransmissíveis e irrenunciáveis, os direitos de personalidade também possuem como característica a sua inalienabilidade, imprescritibilidade e vitaliciedade. Alguns direitos intercorrem até mesmo a morte, como, por exemplo, o que diz respeito à honra.
Os direitos em questão, são intransmissíveis, pois não podem passar de uma pessoa para outra, nasce e pertence individualmente a cada pessoa, podendo ser exercido apenas pelo seu titular, logo, consequentemente se torna irrenunciável, não sendo capaz de abandono.
São inalienáveis, mas passíveis de cessão (autorização do direito de imagem, por exemplo).
Imprescritíveis por não se extinguir pelo não uso, conseguindo ser defendido em qualquer momento, através do exercício da pretensão ao direito.
Por fim, vitalício, uma vez que adquirido através da existência (concepção), acompanha o homem até a morte, ou como já citado, além dela, quer seja, corpo vivo ou morto, a depender do direito defendido.
Destaca-se, ainda, que não somente a pessoa natural possui direitos fundamentais apoiado de personalidade e proteção. Em observância ao artigo 52 do Código Civil, “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade” (BRASIL, 2002).
Conforme muito bem dispõe Miguel Reale, “o importante é saber que cada direito da personalidade corresponde a um valor fundamental, a começar pelo do próprio corpo, que é a condição essencial do que somos, do que sentimos, percebemos, pensamos e agimos” (REALE, 2004).
Segundo o autor,
a pessoa, como costumo dizer, é o valor-fonte de todos os valores, sendo o principal fundamento do ordenamento jurídico; os direitos da personalidade correspondem às pessoas humanas em cada sistema básico de sua situação e atividades sociais, como bem soube ver Ives Gandra da Silva Martins (REALE, 2004).
Nesse sentido, o corpo estabelece o ser humano como homem singular, a ser formado pela vivência, o tornando único através de suas experiências e formação. Nesta senda, o ser passa a construir a sua própria personalidade, seja física, cultural ou religiosa.
Conquanto sejam iguais em direitos, são seres distintos, se estabelecendo pelo modo que vivem, pensam, inclusive pelo modo que dispõem do próprio corpo, trazendo o ser em si.
Compreende-se, portanto, que a pessoa deve ser designada tal como ela é, “com todos os predicados que integram a sua individualidade” (GONÇALVES, 2011, p. 100), seja de forma genérica (pessoa humana, gênero) ou em sua singularidade (individual).
Por conseguinte, a individualidade ofertada pela personalidade, remete autodeterminação humana, e essa traz a ideia da propriedade do corpo. No entanto, importante frisar que,
não há, pois, como confundir direitos da personalidade, que todo ser humano possui como razão de ser de sua própria existência, com os atribuídos genérica ou especificamente aos indivíduos, sendo possível a sua aquisição. Assim, o direito de propriedade é constitucionalmente garantido, mas não é dito que todos tenham direito a ela, a não ser mediante as condições e processos previstos em lei (REALE, 2004)
Pelo que ministra Maria de Fátima Freire de Sá,
[...] poder-se-á afirmar ser inaceitável tratar o corpo humano e a integridade física como direito de propriedade, já que, em sendo proprietário, o homem teria o amplo poder de disposição. Daí que a mutilação e a destruição do corpo humano resultariam autorizadas. [...]. Portanto, não há se confundir o direito à integridade física com o poder do proprietário, de dispor da coisa que lhe pertence. (SÁ, 2000, p. 77).
Ante o exposto, o corpo é um patrimônio de caráter existencial, não aderido a ele valor econômico, ou meio de lucratividade. É um negócio jurídico que integra os direitos de personalidade, por ser decorrido do direito fundamental, classificado como integridade física, cabendo ser defendido pelo ser humano, ao figurar o que lhe é próprio, e também ser garantido, pelo Estado, os meios de defesa.
Entrementes, o direito ao próprio corpo, é inerente à personalidade individual, participando de uma gama de direitos e possibilitando a própria existência do ser humano, sem o qual o mesmo não se representaria.
Nessa ótica, é o corpo que faz o ser humano, e dele que decorre a necessidade do direito de proteção, dos direitos fundamentais e, consequentemente, dos direitos de personalidade, reforçando que o corpo é um patrimônio meramente existencial, não confundido com lucratividade patrimonial, portanto, não é possível mensurar, economicamente, o cifrão de cada direito de personalidade.
Posto isto, o corpo é despido de valor econômico, é um meio de expressão humana e identidade pessoal que demanda proteção do Estado, não devendo ser visto como mercadoria, encontrando, dessa forma, alguns limites sobre o uso do corpo, mesmo, a primeira vista, sendo justo o autogoverno.
O Código Civil esclarece, em seu artigo 13,
(...) salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial (BRASIL,2002)
Por meio de análise, a liberdade e o autogoverno do corpo, é restritivo devido às limitações legislativas, em busca da concretização da dignidade da pessoa humana e bons costumes.
Saliente-se, a limitação de disposição do próprio corpo não é absoluta, mas remete ao que não pode ser feito ao corpo, pois a integridade física é tutelada pelo Estado.
A confirmar:
Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes (BRASIL, 2002).
Explana Ives Gandra da Silva Martins que,
o que contrariar, todavia, os bons costumes, nem por determinação médica poderá ocorrer, como seria o do transplante de órgãos genitais, se tal tipo de transplante possível fosse”, e arremata dizendo que “a lei civil vem apenas valorizar a dignidade da pessoa humana, vedando explorações indevidas por interesses vis ou desumanos (MARTINS, 2003, p. 60).
Ainda, de acordo com Maria Helena Diniz, “fácil é perceber que se protege não só a integridade física, ou melhor, os direitos sobre o próprio corpo vivo ou morto[...] mas também a inviolabilidade do corpo humano” (DINIZ, 2010, p. 130).
Assim, o direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988, apenas poderá ser exercido pela pessoa, no entanto, garantido, desde que, esteja conforme os termos previstos em lei, devendo respeitar alguns princípios, e até mesmo a mantença dos bons costumes considerados pelo Estado.
Todavia, assim como as restrições não são absolutas, os direitos e garantias individuais não possuem caráter absoluto, até mesmo os direitos básicos.
Contudo, é justo um direito que, ao mesmo tempo é garantido, seja também relativo/restrito? Justo, desde que, atenda aos bons costumes, a dignidade da pessoa humana, e não cause danos a outrem.
Além disso, deve atender a autonomia privada, no ponto de fazer o que a lei não proíbe. O respeito à dignidade da pessoa humana, que aqui se trata, reflete um Estado Social, beneficiando toda a coletividade, como nos casos de doação de material genético e/ou órgãos.
6. A DOAÇÃO E O DIREITO DE DISPOR DO CORPO
Inicialmente, a saber, o ser humano vive em busca de melhores condições de vida, e principalmente qualidade da mesma, não no que corresponde ao conforto voluptuário, mas sim a saúde física e mental, sem a qual a citada qualidade não seria possível. Não pelo tempo que se vive, mas como se vive.
Nada obstante, os ramos da saúde têm se fortalecido em busca de cura e tratamentos que realmente mostrem resultados eficazes aos pacientes. Neste ínterim, a doação não poderia ficar de fora, pois por meio desta, muitas vidas são propicias à continuidade.
Mediante os avanços alcançados pela doação, essa precisou ser regularizada pelo ordenamento jurídico, sendo tratada por lei específica, que de natureza, logicamente, deve ser respeitada.
Doação é uma palavra de sentido amplo, podendo atingir tanto coisa quanto corpo humano, por intermédio do processo de doar, transferir ou conceder.
Desta maneira, de modo geral, a doação consiste em um “(...) contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere bens de seu patrimônio para o de outra, que os aceita” (FIÚZA, 2014, p. 648). O Código Civil considera “(...) doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra” (BRASIL, 2002).
Já o patrimônio do corpo, diz respeito ao patrimônio existencial, representativo de cada indivíduo, sem nenhum valor econômico, apesar de nem toda doação ser gratuita.
A nomenclatura transplante é um termo empregado no sentido de retirada ou remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo de um ser, vivo ou morto, para utilização de finalidade terapêutica.
O transplante foi se originando devido vários fatores, e um dos fatores, senão o mais importante, é o desfalque chamado de falência dos órgãos, bem como, a deterioração de múltiplos órgãos. Desta maneira, o ramo da biomedicina foi se desenvolvendo, buscando melhores condições de sanar o problema, que aumenta a possibilidade de continuar a vida quando esses mesmos órgãos são substituídos por uma técnica denominada transplante.
Para aprendizagem,
as doações de órgãos podem ser provenientes de doador vivo (indivíduo saudável que concorde com o ato da doação), e se por acaso não tenham grau de parentesco com o receptor, só poderão doar mediante autorização judicial. Os órgãos que são possíveis de doação por indivíduos vivos são: medula óssea, um dos rins, parte do fígado e parte do pulmão. Outra fonte de captação de órgãos são os doadores cadáveres (pacientes que tiveram morte encefálica diagnosticada), que possibilitam a doação de coração, pulmões, rins, córneas, fígado, pâncreas, ossos, tendões, veias e intestino (ABTO, 2003).
A doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, para fins de transplante e tratamento, é regulamentada pela lei 9.434 de 04 de fevereiro de 1997, não compreendendo o sangue, o esperma e o óvulo.
Em translado:
Art. 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei.
Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo o sangue, o esperma e o óvulo (BRASIL, 1997).
Vale apontar, que a permissão da técnica desenvolvida, só é possível caso não ofereça nenhum tipo de risco ao doador, o possibilitando uma vida normal, voltando ao estado a quo, sem prejuízo algum a sua saúde e sequência de uma vida com qualidade.
Para tanto, o artigo 3°, da lei 9.434, explana os tipos de órgãos que outorgam a referida doação:
§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora (BRASIL, 1997).
Logo, são evidentes os participes do procedimento da doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, para finalidades de transplantes e tratamentos. O doador, que é a pessoa a qual, com consentimento prévio, faz sua doação com o único objetivo de proporcionar uma melhoria de vida ao receptor desse órgão, tecidos e partes do corpo; o médico; e a equipe médica (auxiliares).
O médico responsável deve observar a legislação, com finalidade de zelo ao doador e a dignidade humana, integridade física, moral e intelectual.
O transplante, assim como qualquer cirurgia, apresenta uma margem de risco ao paciente, visando isso, os familiares são avisados de prontidão, por tanto a técnica em questão é vista e realizada como última tentativa de tratamento, e deve obedecer a toda uma política.
Frisa-se que o citado consentimento, tanto por parte do doador quanto do receptor, é um critério para a remoção do órgão e/ou tecido, inclusive, para todos os métodos medicinais, não somente para transplantes.
Preceitua o Código de Ética Médica, a vedação de qualquer intervenção médica sem prévia autorização de ambos os pacientes e seus representantes legais, quando for o caso.
No caso específico do transplante, o consentimento prévio é tratado de forma especial, por lei própria, em seu artigo 10, devendo ser autorizado de forma expressa. Senão veja:
Art. 10. O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento.
1º Nos casos em que o receptor seja juridicamente incapaz ou cujas condições de saúde impeçam ou comprometam a manifestação válida da sua vontade, o consentimento de que trata este artigo será dado por um de seus pais ou responsáveis legais (BRASIL, 1997).
Notabiliza-se, que os exercícios dessas funções não são desempenhados por qualquer profissional médico. Para isto, veja abaixo o que dispõe o artigo 2° da Lei de Transplantes:
Art. 2º A realização de transplante ou enxertos de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano só poderá ser realizada por estabelecimento de saúde, público ou privado, e por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante previamente autorizados pelo órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde (BRASIL, 1997).
Completa ainda, em seu parágrafo único, que,
a realização de transplantes ou enxertos de tecidos, órgãos e partes do corpo humano só poderá ser autorizada após a realização, no doador, de todos os testes de triagem para diagnóstico de infecção e infestação exigidos em normas regulamentares expedidas pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 1997).
Outrossim, a doação é uma forma de dispor do próprio corpo, apesar de algumas restrições e formalidades.