O REGIMENTO INTERNO DA COMISSÃO ÉTICA DO MINISTÉRIO DA DEFESA E O CÓDIGO DE ÉTICA DO SERVIDOR CIVIL
Como já visto, o Decreto que aprovou o Código de Ética do Servidor Público Civil previu a criação de uma Comissão de Ética em cada um dos Ministérios, menos os Ministérios Militares existentes à época, autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista, todos integrantes do Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal.
Dentro deste contexto, surge o Regimento Interno, aprovado pela Portaria nº 580/MD, de 10.10.2002 [21], do Senhor Ministro de Estado da Defesa, conforme previsto no Código de Ética do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, devidamente aprovado pelo Decreto nº 1.171, de 22.06.1994, e agora no Decreto nº 6.029, de 01.02.2007. [22]
A propósito da definição dos destinatários da Comissão de Ética do Ministério da Defesa, dispõem os artigos 20, parágrafo único, 21, parágrafo único, e 22 de seu Regimento Interno:
"Art. 20. Estão sujeitos ao Código de Ética e ao presente Regimento todos os servidores públicos lotados no Ministério da Defesa, nos órgãos e unidades que lhe são vinculados, no exterior e no território nacional.
Parágrafo único. Para fins de aplicação do Código de Ética e das disposições deste Regimento, os militares da reserva que ocupam cargo em comissão no âmbito do Ministério da Defesa e órgãos vinculados são considerados servidores civis, nos termos dos artigos 2º e 3º, parágrafo único, da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, combinado com o disposto na letra e) do inciso XVIII do artigo 28 da Lei nº 6.880, de 09 de dezembro de 1980.
Art. 21. Considerando a natureza sui generis do Ministério da Defesa, os militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica colocados à sua disposição estarão sujeitos à menção de censura ética, mediante a aplicação do disposto no artigo 28 c/c o art. 83 da Lei nº 6.880, de 09 de dezembro de 1980, e em face da qualidade de agentes públicos, nos termos do artigo 2º combinado com o § 3º do artigo 14 da Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992.
Parágrafo único. A menção de censura de que trata este artigo somente efetuar-se-á mediante concordância do Comandante da respectiva Força, cujo parecer será emitido à luz das razões de fato e de direito apresentadas pelo Presidente da Comissão.
Art. 22. Os procedimentos de apuração de conduta ética não se confundem com os de cunho disciplinar previstos nos regulamentos castrenses, na Lei nº 6.880, de 09 de dezembro de 1980, e na Lei nº 8.119, de 11 de dezembro de 1990, a que estão sujeitos os militares e os servidores públicos civis do Poder Executivo Federal, respectivamente."
Conforme visto das normas ora transcritas, o que pretende o Regimento Interno é tomar de empréstimo normas do Código de Ética do Servidor Civil para aplicar aos militares em exercício no Ministério da Defesa.
E, assim, o Regimento Interno já nasceu fora do contexto, ou seja, em desarmonia com o Código de Ética do Servidor Civil, aprovado por Decreto Presidencial, que contém limitação expressa quanto à definição de seus destinatários, que não são os militares.
O Código de Ética de que se trata se refere expressamente aos seus destinatários, como sendo, não os militares, mas, isto sim, os servidores civis, conforme está escrito até mesmo em sua própria denominação, "Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal".
O Código de Ética do Servidor Civil de que se trata é ainda aquele que foi aprovado pelo Decreto nº 1.171, de 22.06.1994, para cuja elaboração, diga-se de passagem, não foram convidados a participarem os militares, tendo sido gerado, como já visto, no âmbito da Comissão Especial criada pelo Decreto nº 1.001, de 6 de dezembro de 1993.
Logo, a extensão das normas do Código de Ética do Servidor Civil aos militares, tanto aos da ativa como aos da reserva, tendo por fundamento apenas o fato de sua lotação ou exercício de suas atribuições de assessoria para assuntos de natureza militar, no Ministério da Defesa, é juridicamente insubsistente.
Demonstra-o a própria Exposição de Motivos do Código de Ética do Servidor Civil, onde está explicitado o objeto de que se trata:
"... em sua 2ª Reunião Ordinária, realizada em 4 de março de 1994, decidiu a Comissão Especial criada pelo Decreto nº 1.001, de 6 de dezembro de 1993, constituir um grupo de trabalho com o fim específico de elaborar proposta de um Código de Ética Profissional do Servidor Civil do Poder Executivo Federal, tendo sido designado para sua coordenação o Professor Modesto Carvalhosa, Membro da Comissão Especial e Presidente do Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo.
"Ato contínuo, contando com a inestimável colaboração do Jurista Robison Baroni, também Membro do Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, e do Doutor Brasilino Pereira dos Santos, Assessor da Comissão Especial, seguiu-se a elaboração do anexo Código de Ética Profissional do Servidor Civil do Poder Executivo Federal, aprovado, por unanimidade, em Sessão Plenária de 6 de abril de 1994." [23]
Como somente a lei pode instituir punição disciplinar do servidor público civil, e como esta já existia a Lei nº 8.112, de 11.12.1990, a punição estabelecida ficou limitada à menção de censura, conforme está escrito tanto na Exposição de Motivos do então Projeto de Código de Ética como no próprio Código de Ética, aprovado pelo Decreto nº 1.171, de 22.06.1994 [24], nestes termos, respectivamente:
"A pena será a censura, devendo a decisão ser registrada nos assentamentos funcionais do servidor." [25]
"XXII - A pena aplicável ao servidor público pela Comissão de Ética é a de censura e sua fundamentação constará do respectivo parecer, assinado por todos os seus integrantes, com ciência do faltoso." [26]
O Código de Ética do Servidor Civil do Poder Executivo, como visto, foi baixado pelo Governo ITAMAR FRANCO, pelo Decreto nº 1.171, de 22.06.1994, e, só agora, foi editado o Decreto nº 6.029, de 01.02.2007 [27], que "institui Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal, e dá outras providências", cujo art. 22 dispõe:
"Art. 22. A Comissão de Ética Pública manterá banco de dados de sanções aplicadas pelas Comissões de Ética de que tratam os incisos II e III do art. 2º e de suas próprias sanções, para fins de consulta pelos órgãos ou entidades da administração pública federal, em casos de nomeação para cargo em comissão ou de alta relevância pública."
Segundo este último Decreto, a apuração de prática de infração ao Código de Ética terá lugar em procedimento instaurado, de ofício ou em razão de denúncia fundamentada, respeitando-se, sempre, "as garantias do contraditório e da ampla defesa", devendo o investigado ser notificado "para manifestar-se, por escrito, no prazo de dez dias", conforme previsto no art. 12 do Decreto nº 6.029, de 01.02.2007.
Em caso de conclusão pela existência de falta ética, deverá ser sugerida – pela Comissão de Ética – a exoneração de cargo ou função de confiança à autoridade hierarquicamente superior ou a devolução do servidor ao órgão de origem, conforme o caso. [28]
Foram ainda previstos tanto o encaminhamento do caso à Controladoria-Geral da União ou unidade específica do Sistema de Correição do Poder Executivo, "para exame de eventuais transgressões disciplinares", como a recomendação de abertura de procedimento administrativo, dependendo da gravidade da conduta. [29]
Complementando esta regra, foi ainda previsto que as Comissões de Ética, sempre que constatarem a possível ocorrência de ilícitos penais, civis, de improbidade administrativa ou de infração disciplinar, deverão encaminhar cópia dos autos às autoridades competentes para apuração de tais fatos, sem prejuízo das medidas de sua competência. [30]
Igualmente está prevista, tal qual já previsto no Código de Ética do Servidor Civil, que para todo ato de posse, investidura em função pública ou celebração de contrato de trabalho dos agentes públicos, deveria haver a prestação de compromisso solene de acatamento e observância das regras do Código de Ética do Servidor Público. [31]
E também foi determinado que a posse em cargo ou função pública será precedida de consulta da autoridade à Comissão de Ética Pública, acerca de situação que possa suscitar conflito de interesses. [32]
E, assim, estão claramente explicitados os motivos que impulsionaram a Administração Pública a instituir a Comissão de Ética do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal.
Sem dúvida, cuidou-se de criar uma espécie de recomendação contrária à nomeação para "cargo em comissão" ou de "relevância pública" de servidor que haja sido censurado, por inobservância das normas éticas do servidor público civil, isto, evidentemente, após submetido a procedimento administrativo regular, perante Comissão de Ética, observados os princípios do contraditório e da amplitude de defesa.
A atuação da Comissão de Ética, conforme previsto, além de poder recomendar a instauração de procedimento administrativo tendente à demissão do servidor, sua exoneração ou devolução ao órgão de origem, pode igualmente recomendar, a depender da relevância da gravidade da falta constatada, que não se efetue alguma promoção ou melhoria funcional destinada ao servidor civil pilhado em falta de natureza ética.
Exemplo disso está previsto no item XVIII do Código de Ética do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal aprovado pelo Decreto nº 1.171, de 22.06.1994, conforme norma a seguir transcrita:
"XVIII - À Comissão de Ética incumbe fornecer, aos organismos encarregados da execução do quadro de carreira dos servidores, os registros sobre sua conduta ética, para o efeito de instruir e fundamentar promoções e para todos os demais procedimentos próprios da carreira do servidor público." [33]
Anota-se que, para tornar efetiva a eficácia da norma inscrita no item XVIII do Código de Ética do Servidor Público Civil é que foi previsto, agora, na recente regulamentação do assunto, o seguinte:
"Art. 22. A Comissão de Ética Pública manterá banco de dados de sanções aplicadas pelas Comissões de Ética, para fins de consulta pelos órgãos ou entidades da administração pública federal, em casos de nomeação para cargo em comissão ou de alta relevância pública". [34]
Evidentemente, em se tratando de punição disciplinar, a censura deverá constar igualmente dos assentamentos funcionais do servidor, para fins de consulta, por exemplo, para o caso de sua designação para cargo em comissão ou missões de maior relevância no serviço público, conforme está previsto no próprio Código de Ética do Servidor Civil.
E a conseqüência da conduta classificada como infração de natureza ética, apesar desta natureza, termina por desabonador a pessoa do servidor, que poderá até mesmo ser tido como inapto para o exercício de cargo em comissão ou de missões de maior relevância no ambiente da administração pública, ou até mesmo fora de seus quadros, já na área civil, onde está prevista ainda a anotação nos assentos do órgão incumbido do registro de profissão regulamentada.
Nessa linha de raciocínio, pode ser tida como ilegítima e até mesmo ilegal a norma do Regimento Interno na parte em que está prevista a "menção de censura" para o militar da ativa, à disposição do Ministério da Defesa, o que se nos afigura ainda mais inusitado, mesmo que condicionada à "concordância do Comandante da respectiva Força, cujo parecer será emitido à luz das razões de fato e de direito apresentadas pelo Presidente da Comissão", conforme previsto no Regimento Interno, aprovado pela Portaria nº 580/MD, de 10.10.2002, art. 21, parágrafo único. [35]
Para tanto, o Regimento Interno busca se amparar no Estatuto dos Militares, que dispõe que "o militar agregado fica sujeito às obrigações disciplinares concernentes às suas relações com outros militares e autoridades civis" [36]. E, neste ponto, temos a impressão que mais uma vez, o Regimento Interno navega em zona de turbulência, por haver confundido situações jurídicas diferentes. O militar, no Ministério da Defesa, pode não pode ser enquadrado na situação jurídica de agregado. Isto decorre da precisamente da natureza das atribuições do próprio Ministério da Defesa, incumbido de prestar assessoria sobre assuntos de natureza militar ao Presidente da República e cujos quadros de recursos humanos são predominantemente integrados por militares, desde a mais elevada patente ou o último posto do Generalato até aqueles da base da hierarquia militar.
Além de tudo o que já foi visto, tem-se a ponderar que, em princípio, para manter a estrutura moral exigida pela condição de militar, este não pode "tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente", sob pena de ser "transferido para a reserva", segundo dispõe a própria Constituição Federal. [37]
E no caso de aceitação do cargo civil de natureza temporária, permitida por lei, o militar da ativa "ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antiguidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a reserva". [38]
Idêntica previsão vem inscrita no Estatuto dos Militares, a dispor que "a transferência para a reserva remunerada" será ex officio, após dois anos de afastamento [39].
Comentando o inciso II do art. 142, § 3º, da Lei Maior, ensina IVES GANDRA MARTINS:
"O dispositivo vem tornar norma constitucional princípio que já prevalecia na carreira militar. Essa carreira exige dedicação exclusiva, não podendo ser confundida com as dos demais servidores públicos da União." [40]
Como se trata de uma "carreira estritamente técnica, que exige dedicação integral, de um lado, e conhecimento do setor de elevado nível, de outro", nada mais "natural que essa dedicação seja total", ensina o Professor IVES GANDRA MARTINS [41].
E isto porque, ainda segundo o Professor IVES GANDRA MARTINS, "os servidores públicos ou são civis ou militares, e a escolha de emprego público civil permanente nitidamente atingiria a qualidade do serviço militar." [42]
E o Professor IVES GANDRA MARTINS encerra os comentários deste dispositivo constitucional (art. 142, § 3º, II), nestes termos:
"Para evitar descuidos, concessões políticas, tentações de cargos civis relevantes, o Constituinte preferiu consagrar a vedação na Lei Suprema, objetivando exigir uma opção vocacional do militar. Se desejar atuar na área civil, deverá deixar de ser militar na hora, embora conserve as prerrogativas da reserva." [43]
A "transferência para a reserva remunerada, ex officio" (Estatuto, art. 98), ocorre, a nosso ver, por se tratar de espécie de desvio de função, que é danoso aos princípios que regem as Forças Armadas, por estar o militar sujeito às normas do art. 142, caput, da Constituição Federal, que dispõe que as Forças Armadas destinam-se "à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
Se as Forças Armadas destinam-se à "garantia dos poderes constitucionais", exsurge óbvio que os militares não podem ser subordinados hierarquicamente a autoridades destes "poderes constitucionais", como no caso, por exemplo, de quem aceita um cargo comissionado no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, ou num Tribunal, por exemplo.
Sendo certo que as Forças Armadas existem para garantia do funcionamento dos Poderes, isto impede que seus membros atuem, simultaneamente, como militares e como servidores de um dos três Poderes civis, o que é contrário ao art. 142 da Constituição Federal, que dispõe:
"Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
Pela densidade das atribuições constitucionalmente incumbidas ao militar, de guardião da defesa da pátria, da lei e da ordem, sua liberação para ocupar "cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração" (CF, art. 37, II), ainda que situados em posições da mais elevada estatura dentro da hierarquia da administração civil, a rigor, não se compatibiliza com os preceitos da ética militar.
Enfim, o militar – como qualquer servidor público – não pode ser submetido a duas ordens jurídicas diversas, simultaneamente, como é o caso do regime jurídico civil e o do regime jurídico militar, de certa forma, incompatíveis entre si, no atinente às penalidades, pois enquanto no civil as penalidades são mais suaves, no militar, são evidentemente muito mais severas.
Por outro lado, ao passar à condição de ocupante de cargo civil, e isto só é permitido para aqueles cargos de natureza temporária, evidentemente, passa a não estar submetido à hierarquia e à disciplina militar, passando a subordinar-se hierárquica e disciplinarmente a uma autoridade civil, tanto que, a partir de então, fica agregado ao cargo civil e, ao completar dois anos, é transferido, ex officio, para a reserva.
E, por causa dos princípios éticos próprios dos militares em geral, o exercício de cargo ou função civil, por militar, em regra, não é permitido, por se tratar de regimes totalmente diversos, sendo o do servidor civil bem mais suave, quanto às sanções pelo descumprimento dos deveres funcionais.
Por outro lado, embora "ao militar" sejam "proibidas a sindicalização e a greve" (CF, art. 142, § 3o, IV), o militar poderia querer vir a reivindicar tais prerrogativas inerentes ao cargo de natureza civil, e as Forças Armadas teriam grande dificuldade de impedir juridicamente o exercício destes direitos, exatamente porque o militar, em cargo civil, fica numa situação jurídica em que não estaria sujeito integralmente ao regime próprio do militar.
Mas temos que a norma constitucional que impede o militar de aceitar cargo, emprego ou função civil não se refere ao Ministério da Defesa, conforme temos por demonstrado, jã que se trata de uma Secretaria de Estado destinada a dar assessoria ao Presidente da República sobre assuntos militares, sendo certo que ninguém melhor que os militares para prestar esta espécie de assessoria, conforme, de resto, previsto na legislação própria.
Estes são outros fundamentos pelos quais cremos que o militar, quer da ativa, quer da reserva, colocado à disposição do Ministério da Defesa, para prestar assessoria sobre assuntos de natureza militar, não se enquadra na mesma situação jurídica daquele que aceita cargo civil de natureza temporária, pelo menos para fins de aplicação do Código de Ética do Servidor Civil.