I - INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo tecer breves comentários acerca da aquisição de imóveis oriundos de processo de inventariança da Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA), sociedade de economia mista, à luz do sistema registral imobiliário.
II – BREVE HISTÓRICO
A RFFSA era uma sociedade de economia mista integrante da administração indireta do Governo Federal, portanto possuidora de personalidade jurídica própria, exercendo competências descentralizadas, mas vinculadas ao ente central respectivo. Fazem parte deste conjunto de entidades as autarquias, fundações, empresas públicas e as sociedades de economia mista (art. 4º, II, Decreto-Lei 200/67).
A RFFSA tinha natureza de pessoa jurídica de direito privado, com criação autorizada pela Lei n.º 3.115, de 16 de março de 1957, pela consolidação de 18 (dezoito) ferrovias regionais e operando em 73% da malha ferroviária federal, com o objetivo principal de promover e gerir os interesses da União Federal no setor de transporte ferroviário.
No ano de 1992, a RFFSA foi incluída no Programa Nacional de Desestatização, ensejando estudos, promovidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que recomendaram a transferência para o setor privado dos serviços de transporte ferroviário de carga. Essa transferência foi efetivada no período 1996-1998, de acordo com o modelo que estabeleceu a segmentação do sistema ferroviário em seis malhas regionais, sua concessão pela União por 30 anos, mediante licitação, e o arrendamento, por igual prazo, dos ativos operacionais da RFFSA aos novos concessionários.
Em 1998, houve a incorporação da Ferrovia Paulista S.A. (FEPASA) à RFFSA, ao que se seguiu, em dezembro daquele ano, a privatização daquela malha.
A RFFSA foi dissolvida de acordo com o estabelecido no Decreto nº 3.277, de 7 de dezembro de 1999, alterado pelo Decreto nº 4.109, de 30 de janeiro de 2002, pelo Decreto nº 4.839, de 12 de setembro de 2003, e pelo Decreto nº 5.103, de 11 de junho de 2004.
Sua liquidação foi iniciada em 17 de dezembro de 1999, por deliberação da Assembléia Geral dos Acionistas foi conduzida sob responsabilidade de uma Comissão de Liquidação, com o seu processo de liquidação supervisionado pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, através do Departamento de Extinção e Liquidação – DELIQ.
O processo de liquidação da RFFSA implicou na realização dos ativos não operacionais e no pagamento de passivos. Os ativos operacionais (infra-estrutura, locomotivas, vagões e outros bens vinculados à operação ferroviária) foram arrendados às concessionárias operadoras das ferrovias, Companhia Ferroviária do Nordeste - CFN, Ferrovia Centro Atlântica – FCA, MRS Logística S.A, Ferrovia Bandeirantes – Ferroban, Ferrovia Novoeste S. A., América Latina e Logística – ALL, Ferrovia Teresa Cristina S. A., competindo à RFFSA a fiscalização dos ativos arrendados.
A RFFSA foi extinta pela Medida Provisória de n.º 353, de 22 de janeiro de 2007, a qual foi convertida na Lei de n.º 11.483 de 31 de maio de 2.007, e regulamentada pelo Decreto de n.º 6.018, de 22 de janeiro de 2007.
O inciso II do artigo 2º da citada Lei 11.483 dispõe que ficam transferidos à União Federal os bens imóveis da extinta RFFSA, excetuados os imóveis operacionais, os quais, por força do inciso I do artigo 8º da lei em comento, foram transferidos ao Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes.
Apesar de o mencionado diploma legal determinar a imediata transferência desses bens imóveis à União Federal, é necessário promover a regularização desses imóveis perante os Registros de Imóveis, de modo que os assentamentos concernentes a cada um desses imóveis reflita a realidade, em estrita observância aos princípios da segurança jurídica e da publicidade registral.
Não obstante a existência da Lei n.º 6.404, de 15 de dezembro de 1976 ("Lei das S/A"), que prevê operações de incorporações de sociedades em seu artigo 227, este não se aplica ao caso, pois não se trata de incorporação de uma sociedade por outra, mas de uma sociedade por uma pessoa jurídica de direito público, qual seja a União Federal.
Sob a ótica registral imobiliária, caso se tratasse de incorporação de uma sociedade por outra sociedade, o título hábil para ser submetido ao crivo registrário (art. 234 da Lei das S/A) seria "a certidão, passada pelo Registro do Comércio, da incorporação, fusão ou cisão (...)", a qual deverá ser averbada (p. ex. Processo n.º 000.04.049033-5 / 1ª Vara de Registros Públicos / Dr. Venício Antônio de Paula Salles / São Paulo / Data do julgado: 07/10/2005) no assentamento do imóvel transferido.
Dessarte, tendo-se em vista a particularidade da operação noticiada e as profundas repercussões que advirão face às transferências imobiliárias que deverão ocorrer, passaremos a pontuar a celeuma de forma sintética e de alcance de todos os leitores.
III – A SECRETARIA DE PATRIMÔNIO DA UNIÃO E A TRANSFERÊNCIA
É da competência da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) proceder à incorporação de bens imóveis ao patrimônio da União e, por meio do seu Departamento de Incorporação de Imóveis, coordenar, controlar e orientar as atividades de incorporação imobiliária ao patrimônio da União, nas modalidades de aquisição por compra e venda, por dação em pagamento, doação, usucapião, administrativa, bem como de imóveis oriundos da extinção de órgãos da administração federal direta, autárquica ou fundacional, liquidação de empresa pública ou sociedade de economia mista, cabendo-lhe, ainda, o levantamento e a verificação in loco dos imóveis a serem incorporados, a preservação e regularização dominial desses imóveis e a articulação com entidades e instituições envolvidas.
Dadas estas atribuições, poderá a SPU requerer a transferência destes imóveis para a União Federal, mediante apresentação de requerimento, acompanhado do título hábil a operar a transferência, perante o Ofício de Registro de Imóvel da circunscrição destes imóveis.
A Lei das S/A, no artigo 224, elencou a certidão expedida pela Junta Comercial do respectivo Estado-Membro da Federação como título hábil para ingressar no Registro de Imóvel, de modo que seja averbada a operação societária e que se opere a alteração na matrícula. Por certo, existem outros documentos que deverão acompanhar a certidão da Junta Comercial, mas a ocasião não é oportuna para maiores detalhes.
Para se ilustrar e apresentar alguns apontamentos que serão de grande valia para os estudiosos da área, apresentamos a situação abaixo.
A SPU remeteu ao Oficial de Registro de Imóveis da cidade de "Parságada" (I) Ofício e (II) Termo de Transferência (cópia simples), pleiteando, com fulcro no artigo 2º, inciso II, da Lei Federal nº. 11.483, de 31 de maio de 2.007, a incorporação do imóvel da RFFSA, ao patrimônio da UNIÃO FEDERAL, imóvel este matriculado naquela serventia registrária.
Esses documentos são suficientes para atender o requerido? A natureza do ato a ser praticado é de averbação ou registro?
O ato a ser praticado é o de registro, utilizando-se o Ofício e o Termo de Transferência encaminhados, a Lei n. 11.483/07 (artigo 2º, II), o Decreto n. 6018/07 (artigos 3º, I, V, VI e XVII e 5º, III, alíneas "a" e "b") e valor venal do imóvel.
Analisando-se a questão, entendemos que a documentação apresentada seria suficiente para a prática do ato. Explica-se.
Inicialmente, podemos pensar que o ato poderia ser o de averbação como muitas serventias fizeram em passado recente em caso semelhante da FUNDAÇÃO LEGIÃO BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA – LBA. Contudo, neste caso, a situação que se apresentava era diferente, pois, a LBA era fundação, e o Decreto-Lei nº. 593 de 27 de Maio de 1969, que a instituiu, já previa em seu artigo 10º que em caso de dissolução da Fundação, seus bens e direitos passarão a integrar o patrimônio da União.
E no caso que se apresenta a situação é outra, a Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA é Sociedade Anônima por Ações, tendo sido constituída pela Lei n. 3.115/57, mediante o ingresso de seu Estatuto na Junta Comercial, sendo-lhe aplicada a Lei 6.404/76.
Contudo, a incorporação que se apresenta não se trata de incorporação pela qual a sociedade é absorvida por outra sociedade (artigo 227 da Lei 6.404/76), a uma, porque a União não é sociedade ou empresa, a duas, porque a incorporação que se está operando não é da empresa (RFFSA), mas dos bens imóveis não operacionais.
Desta forma, entendemos que o ato a ser praticado será o de registro, pelos seguintes motivos e princípios registrais:
1 – Observar o princípio de instância, pois, ao Ofício, como regra geral, é vedada prática de atos ex officio ;
2 – Não se aplica o artigo 234 da Leis das S.A. (Lei n. 6.404/76), pois, como dito, não é caso de incorporação de uma sociedade por outra:
3 – Pelos Termos da Lei n. 5.972/73, que Regula o Procedimento para o Registro da Propriedade de Bens Imóveis Discriminados Administrativamente ou Possuídos pela União (artigos 1º, II – possuídos -, 2º caput e parágrafo 4º parte inicial - o título de transmissão); e
4 – Por analogia ao artigo 294 da própria Lei dos Registros Públicos.
Já com relação ao título (instrumento) que deverá ingressar na Serventia, deverá ser, como dito, o Ofício que solicita o registro, o Termo de Transferência, a Lei 11.483/07 (artigos 2º, II e 4º) e Decreto n. 6.018/07 (artigos 3º, I, II, V, VI e XVII, e 5º, III, alíneas "a" e "b").
Por derradeiro, esclarecemos:
1 - Que o artigo 221 da Lei dos Registros Públicos não é taxativo;
2 – Que, segundo Plácido e Silva, "Instrumento" exprime a materialização de todo fato ou ato jurídico que se tenha cumprido ou realizado por escrito;
3 – Que a transferência dos imóveis para a União já se operou por disposição legal (Medida Provisória n. 353/2007 e Lei 11.483/07), e restava apenas proceder ao inventário de tais bens (localizando, identificando e relacionando – vide Decreto 6.018/07), o que é feito por meio do Termo de Transferência da Documentação Referente aos Imóveis Não Operacionais; e
4 – Que, se porventura dependesse de outra formalidade instrumental (escritura do SPU, por exemplo), não seria possível, pois a RFFSA já está extinta pelo encerramento da liquidação (artigo 219 da Lei 6.404/76), e já não tem mais personalidade jurídica (artigo 207 da Lei 6.404/76). Ademais, se a Lei dos Registros Públicos admite para fins de registro o Termo Administrativo (artigo 167, I, 37), não vemos razão para não ser aceita a Lei e demais documentos para a prática do ato. O registro do imóvel será feito em nome da União Federal, que em seguida irá vendê-los através de leilão ou concorrência pública (licitação).
Assim, concluímos que a documentação apresentada no caso apresentado, à luz da Lei (11.483/07) e do Decreto (6.018/07), são suficientes para atender ao registro requerido e que o ato a ser praticado é o de registro.