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A dimensão social da preservação da empresa no contexto da nova legislação falimentar brasileira (Lei nº 11.101/05).

Uma abordagem zetética

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Agenda 08/02/2008 às 00:00

3. A crise econômico-financeira da empresa: um componente permanente dos sistemas empresariais

Não obstante, tenhamos até aqui abordado a necessária mitigação do conceito de eficiência econômica com o princípio da preservação da empresa como forma de dignificação da pessoa humana, devemos destacar que a partir dos anos 70, e em um ritmo crescente, as crises econômico-financeiras das empresas deixaram de ser um fenômeno episódico, ligadas à incapacidade dos empresários e seus administradores, especialmente vinculados a um comportamento culposo ou mesmo delituoso. Passam a ser um fenômeno, recorrente, diariamente veiculado na mídia.

Nessa realidade, percebe-se a entrada de inteiros setores, e não apenas específicas empresas; empresas que a um tempo eram prósperas e bem administradas, e agora passam por perigosa e rápida redução de sua capacidade de gerar lucro.

Percebe-se, pois, que a freqüência dos períodos de crise na vida da empresa se tornam constantes, caracterizando-se hoje como um fenômeno difuso, coligado ao dinamismo da instabilidade do ambiente empresarial. Este não é um fenômeno, apenas brasileiro, mas diz respeito a uma ampla gama de países economicamente desenvolvidos ou não.

Desta forma, procuraremos descrever uma série de circunstâncias e fatores que assumem particular relevância ao tema da crise, senão vejamos:

1) Devemos nos recordar, primeiramente, das variações espaciais dos níveis de custo do trabalho. Esse fenômeno anula para alguns países, vantagens concorrenciais, em decorrência dos baixos custos de trabalho (para não mencionarmos o chamado dumping social), que acreditavam alguns, teria uma dinâmica lenta de alteração. Contudo, a velocidade desse processo ocorreu rapidamente e com o desenvolvimento de países como a China, por exemplo, será cada vez mais célere;

2) Outro fator relevante diz respeito às correntes mundiais de exportação que são objeto de consideráveis e rápidas modificações em relação à entrada no mercado de novos países produtores, há um custo baixo de produção, em decorrência da mão-de-obra barata, os quais incluímos o Brasil, a China, a Coréia do Sul, Taiwan, etc..

3) Os preços do petróleo e de outras matérias primas fundamentais, nos últimos 15 anos, sofreram fortes aumentos, provocando acentuadas variações nos custos de produção e conseqüentemente amplos movimentos financeiros provocaram uma maior migração de recursos de alguns países a outros, em particular, aqueles que são demasiadamente dependentes de importação de fontes de energia e de matéria prima;

4) A instabilidade das correntes mundiais de importação e exportação acabam por refletir nos sistemas operacionais de câmbio. Essa variação constante abre e fecha mercados exportadores e modifica as barreiras alfandegárias de entrada de produtos estrangeiros. Desta forma, é comum acontecer que os mercados a um tempo acessíveis, em decorrência dos níveis favoráveis de câmbio, passam a ser inviáveis rapidamente, instalando-se a crise em determinados setores;

5) A aceleração da evolução técnica e dos rápidos processos inovativos relacionados aos processos produtivos (otimização de recursos para a maximização de resultados) são, em muitos setores, um fator extremamente relevante. A automatização ligada à computação, à robótica, à transformação do trabalho mecânico em eletrônico, são os aspectos essenciais desse fenômeno. Assim, o alto dinamismo que caracteriza os produtos (e via de regra os processos produtivos) se tornam insustentáveis para as empresas caracterizadas de uma escassa capacidade inovativa. O abreviamento do chamado "ciclo vital" dos produtos incide sobre chamado "portfoglio de produtos" de muitas empresas, impondo uma capacidade de substituição e dados de inventivos que nem sempre estão disponíveis;

6) Outro fator, não menos importante, diz respeito à constante elevação da carga tributária incidente sobre a atividade produtiva, o que asfixia a capacidade de concorrer em mercados já extremamente acirrados, proporcionando uma instabilidade econômica relevante, capaz de propiciar a quebra de empresas.

Portanto, nessas condições a empresa em crise econômico-financeira, em particular aquelas de pequeno porte, tendem a sofrer uma acentuada diminuição no mercado, podendo ocasionar uma crise de proporções ainda maiores, afetando diretamente o aspecto social.

Por outro lado, não podemos deixar de concordar que ocorrerá somente a manutenção de empresas mais eficientes sob o ponto de vista econômico, e em razão disso, com capacidade inovativa maior ou que pelo menos tenham compreendido quais são os mecanismos de proteção aos riscos.

Nessa medida, esse acaba sendo um processo natural de seleção, no qual o resultado é um melhoramento dos níveis médios de eficiência que pode gerar o estímulo à busca de inovações tecnológicas. A bem da verdade, isso significa endereçar de forma sustentável, recursos disponíveis, muitas vezes escassos, a fim de proporcionar uma maximização de resultados.

Em reforço dessa observação, fazemos referência à posição esposada por M. BIONE [18], que discorrendo sobre a subestimação da empresa no ordenamento italiano [19], expõe o seguinte: "il ruolo secondario dell’impresa (...) risponde tuttavia all’ideologia e all’assetto di uma economia liberale. Lo stato garantisce ai privati la più ampia liberta di intraprendere attività economiche e si astiene dall’intervenire nella organizzazione e nella direzione delle stesse. Il compito di discriminare le imprese in ragione della rispettiva efficienza e funzionalità è rimesso allá dinamica de mercato e alle leggi naturali della concorrenza; il fallimento consacra sul piano formale gli effetti relativi naturalmente prodotti; l’eliminazione dal mercato dell’operatore insolvente, evita la propagazione del dissesto (...)"

Partindo-se destas premissas, derivam algumas relevantes conseqüências. Se é certo que a razão social, possui enorme relevância na manutenção de empresas sanáveis, por outro lado, a política indiscriminada de proteção e de defesa a todo custo das empresas em estado de crise econômico-financeira, para superá-la e conservar os postos de trabalho é uma ilusão. O alto custo de similares interventos pode revelar-se totalmente despropositado em relação às vantagens efetivamente obtidas.

Em realidade deve-se observar atentamente e valorar-se os riscos caso a caso, para se verificar a conveniência ou não de uma intervenção de fato na empresa em crise. Isto porque, alguns interventos equivocados [20] de "salvamento" da empresa em crise, ineficiente e obsoleta, pode gerar custos sociais ainda maiores e desproporcionais que significarão a manutenção das condições de dificuldade econômico-financeira dessa empresa.

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Desta forma, esses interventos, na inútil esperança de recuperar empresas de fato condenadas, podem por via oblíqua acabar colocando em risco, e contaminado empresas saudáveis, com vitalidade suficiente para competir no mercado.

Nesse sentido, NATALINO IRTI, discorrendo sobre, o que chama "luta entre competidores", descreve que toda empresa corre o risco do insucesso de sua atividade e que o próprio mercado deve acomodar situações de desequilíbrio, portanto a falência teria essa função sistêmica. Assim, nas palavras de IRTI [21], "L’istituto del fallimento acquista cosi la sua propria collocazione sistematica, come fase insopprimibile del circuito competitivo. Esso va riguardato nella regolare funzionalità del mercato, e non già tenuto per ecezione ed anomalia."

Ainda nesse mesmo sentido, dastacamos a posição de MARIA ISABEL CANDELARIO MACÍAS [22]: "No es necesario señalar que el ‘riesgo de quiebra’ constituye un elemento esencial en las relaciones comerciales junto con el conocimiento de las normas aplicables a las empresas, de ahí que tal riesgo quizás deba ser asumido por todo empresario sin necesidad de acudir a la intervención estatal perturbadora de la competencia. Creemos en la idea que el riesgo es consustancial con la economía de mercado, y por ello es necesario mantener un cierto grado de inseguridad que obligue a una dinámica competitiva en el sistema, ya que en caso contrario, el salvamento de una empresa en crisis podría favorecer las actuaciones irresponsables y de competencia desleal, y resultaría intolerable el derecho de quien abusa de la libertad para acogerse a la solidaridad de la sociedad y de los contribuyentes, puesto que deberá evitarse que el saneamiento de la empresa en crisis afecte al eficiente funcionamiento del sistema de mercado como asignador de recursos. Tampoco sería admisible si la empresa de grandes dimensiones está hasta tal punto arruinada y resultará insanable, y las ventajas consiguientes de la continuación del complejo empresarial se preanunciarán irrisorias. Sin embargo, se podría defender la conservación de la empresa siempre y cuando tal conservación cumpla su función sólo en presencia de determinados condicionantes, tales como que el sacrificio de ciertos acreedores no sea desproporcionado, o de su mantenimiento se deriven posibles beneficios para el pago de los acreedores. No obstante y en nuestra opinión, esta intervención debe constituir una solución última y desesperada en la medida en que, la solicitud de salvamento público se formule una vez desatendidas las solicitudes de salvamento privado o, lo que es lo más frecuente, a las entidades crediticias y financieras privadas y siempre que existan posibilidades reales de salvamento sin excesivos costes."

A decisão pela recuperação da empresa, portanto, em nossa opinião, deve estar fundada em uma prévia e profunda verificação das causas que levaram à crise, dos instrumentos idôneos para a reestruturação empresarial e respectivos custos, inclusive sociais, e por último, da avaliação da possibilidade de sucesso em relação aos resultados esperados na intervenção. A análise criteriosa da crise e o plano de recuperação são, pois dois momentos essenciais deste necessário processo de verificação.


4 Da recuperação de empresa no Brasil

Uma coisa é a empresa ter atingido uma irreversível inviabilidade econômica, outra, assaz diversa, é atravessar conjunturalmente uma crise passível de superação.

Tratar com a mesma panacéia as duas hipóteses é divórcio da realidade, ou seja, é incluir num único saco, realidades completamente distintas; é arredio do verdadeiro cerne da questão; é, em síntese, prejudicar gregos e troianos.

Todavia, o que a novel legislação bem separa, foi até pouco tempo, objeto de similar tratamento: passível ou não de recuperação, a falência constituía a vala comum da empresa cujo passivo superava seu ativo.

Percebe-se que esse status quo é superado com a promulgação da nova lei falimentar. O processo comum de execução, como o processo falimentar, deixaram de responder in totum à vida concreta do vigente universo empresarial.

Deve-se salientar que agora, para além do binário credor/devedor, surgem outros interessados: os dadores de trabalho, ou seja, aqueles que ao concederem ao trabalhador a possibilidade de emprego, executam função social importantíssima, capaz de gerar e manter a atividade econômica e, por conseqüência, o desenvolvimento econômico e social do país.

E mais: a empresa atual não constitui apenas o instrumento jurídico da atividade lucrativa dos sócios ou uma fonte abastecedora da remuneração dos trabalhadores. Com maior ou menor preponderância, a empresa passou a ser peça fundamental da atividade produtiva nacional e um decisivo elemento, quer de economia regional, quer da vida local. Desta forma, a eliminação judicial da empresa representa uma verdadeira agressão ao equilíbrio social, de que o Estado não poderá se desinteressar.

Por outro lado e ainda, a liquidação advinda de um processo de falência, não contempla a possibilidade de uma recuperação econômica mediante o recurso à utilização das mais diversas formas de auxílio financeiro e de assistência técnica.

Daí surge, a pertinência da introdução no nosso ordenamento jurídico, com caráter sistemático e coerente, de um direito pré-falimentar, intencionalizado à recuperação da empresa e à adequada proteção dos credores; com isso, obviamente, haverá a tutela dos interesses dos trabalhadores.

Resta, pois, a falência para as empresas com situação econômico-financeira irremediável, deixando o processo de recuperação reservado a todas quantas se encontrem em condições de sobreelevação de crise.

Contudo, vale ressaltar a observação de FÁBIO ULHOA COELHO [23], quanto à recuperação da empresa em crise "a questão (...) tem recebido respostas diferentes dos direitos que dela se ocuparam. Até o momento, por exemplo, não está em pauta na Comunidade Européia nenhuma proposta de harmonização da disciplina jurídica sobre a matéria. No tema relacionado à crise das empresas, a Europa limitou-se a aprovar regras de competência jurisdicional para os procedimentos falimentares [24], que entraram em vigor em 2002."

E, ainda, o autor conclui o raciocínio: "Como se vê, cada direito procura seus próprios caminhos no emaranhado da difícil questão da recuperação das empresas em crise. A grande diversidade das respostas dadas parece sugerir que ninguém tem a solução para o problema. E talvez não haja quem saiba mesmo o que fazer quando o assunto é a superação ‘fora do mercado’ do estado crítico de uma atividade empresarial."


5. Hipóteses concretas na novel legislação de estímulo à preservação da empresa e conseqüente dignificação da pessoa humana

Objetivamente, no que se refere à preservação da empresa cumpre destacar, como forma de contribuição à discussão doutrinária, dispositivos previstos na novel legislação que entendemos adequados à tese, ora guerreada, bem como alguns dispositivos que afrontam tal princípio.

1) O artigo 27, II, alínea "c", prevê uma atuação direta e objetiva do Comitê de Credores [25], que possui função fiscalizatória [26], primeiro na defesa dos seus interesses próprios e de seus pares, e segundo, numa perspectiva mais ampla e conseqüente, de preservação da unidade produtiva.

Isso ocorre, pois a lei determina que, na hipótese excepcional de nomeação de gestor judicial em decorrência do afastamento do devedor, autorizado pelo juiz, o Comitê poderá promover a alienação de bens do ativo permanente, constituição de ônus reais e outras garantias e a assunção de dívidas necessárias à continuação da atividade econômica, como medidas de urgência para o período que antecede a aprovação do plano recuperatório.

2) Depois, encontramos como principal mecanismo legal de preservação da empresa, o artigo 47 da LFRE que demonstra o espírito paradigmático da conservação da unidade produtiva, quando supera a idéia paternalista [27] da concordata, que previa a hipótese de concessão de um "favor legal" (pelo Estado) ao comerciante que, preenchidos determinados requisitos legais, obrigava, nas palavras do art. 147 do Dec.-Lei 7.661/45, todos os credores quirografários à sujeição das condições estabelecidas pelo concordatário e aprovadas pelo juízo competente.

Essa profunda alteração conceitual se percebe quando analisamos a redação do artigo em comento que dispõe que, o objetivo precípuo da recuperação judicial é "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica." (grifos nossos)

Nota-se que o Estado deixa de conceder um favor legal e passa a auxiliar o devedor propondo a viabilização da superação da crise, como forma de exercício do legítimo interesse social. Algo que nos parece, completamente distinto, pois deixa ao arbítrio dos credores em compasso com o devedor, ou seja, a quem possui legítimo interesse, a discussão quanto ao mérito da dívida global e a possibilidade de seu equacionamento.

3) O artigo 49, por sua vez, ampliou a gama de credores sujeitos à recuperação judicial, o que pode viabilizar a superação da crise econômico-financeira, uma vez que o devedor pode controlar melhor a negociação e o pagamento dos credores sujeitos aos efeitos do plano recuperatório. Algo que na legislação passada não era possível diante da concordata, pois, como já dissemos, lá apenas os credores quirografários se sujeitavam aos seus efeitos, o que engessava a recuperação da empresa.

4) O artigo 50 é outro exemplo importante de estímulo à preservação da empresa, pois apresenta um amplo rol exemplificativo (não exaustivo) de hipóteses de reorganização societária, sem limitá-lo a outras soluções possíveis [28]. O que nos parece acertado. Nesse sentido, houve um grande avanço em relação à legislação passada, pois o modelo na concordata era tão rígido, que na prática inviabilizava a condução da recuperação da empresa levando uma maioria esmagadora à falência.

5) Por sua vez, o artigo 57, revela uma flagrante antinomia da norma falimentar em relação ao princípio da preservação da empresa, pois quando trouxe a exigência da apresentação das certidões negativas de débitos tributários, sem a previsão de seu parcelamento regulamentada em lei especial, impôs uma condição para a concessão da recuperação judicial que inviabiliza, na prática, a possibilidade de recuperar a empresa, posto que um dos primeiros sintomas da crise econômico-financeira é justamente a insuperável satisfação dos compromissos tributários e previdenciários.

Em nossa opinião, a medida adequada caracterizadora da boa-fé do devedor, considerando a até então ausência de regulamentação do parcelamento, consiste na apresentação da quitação pelo menos das três últimas parcelas dos tributos incidentes à empresa, nas três esferas (Federal, Estadual e Municipal). Assim, estaria também preservada uma arrecadação mínima por parte do Estado [29].

6) O artigo 58, parágrafo 1º, como dissemos no âmbito desta investigação, prevê o mecanismo do cram down, que é uma forma de o juiz forçar a aprovação do plano de recuperação judicial, preenchidos determinados requisitos legais. Esse mecanismo copiado do sistema norte-americano outorga, em certa medida, discricionariedade ao juiz para decidir pela preservação da empresa, mesmo que não tenha sido aprovado em assembléia pela maioria dos credores [30]. Trata-se de uma exceção importante que reforça nossa tese.

7) O artigo 71, I, também, nosso ponto de vista, afronta na prática o princípio da preservação da empresa, pois como é cediço no direito falimentar brasileiro, as concordatas preventiva e suspensiva, eram considerados mecanismos obsoletos uma vez que não atingiam seu escopo precípuo, ou seja a recuperação da empresa.

A maioria esmagadora das empresas concordatárias convolavam em falência, em decorrência do âmbito de incidência da norma, pois somente os credores quirografários estavam sujeitos aos efeitos da concordata.

Portanto, quando o legislador determinou no dispositivo acima descrito que apenas os quirografários [31] estarão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial para microempresas e empresas de pequeno porte, muito embora tenha ampliado o prazo de parcelamento (36 meses), engessou, ou melhor, diminuiu em muito, como no passado sua possibilidade de vir a recuperar-se.

8) O artigo 75, parágrafo único, em certa medida reforça o princípio da dignidade da pessoa humana, dentro da dimensão social da preservação da empresa, pois informa que o procedimento falimentar deverá atender aos princípios da celeridade e da economia processual, buscando, desta forma, minimizar os efeitos da falência em relação aos seus credores.

9) Fazemos ainda, referência ao artigo 83, I, da LFRE. Mencionado dispositivo, diante de sua redação precária que raia a ambigüidade, poderia em tese, demonstrar uma antinomia da norma falimentar aos princípios norteadores da preservação da empresa e da dignidade da pessoa humana. Isso porque em sua redação o legislador fixou a limitação de 150 salários mínimos ao crédito trabalhista, como classe privilegiada, remetendo o excedente, se existente, à condição de crédito quirografário. Acontece que, com a limitação determinada entre vírgulas, em aposto, poder-se-ia, em tese, suscitar que essa limitação seria extensiva aos acidentários do trabalho, pois se interpretássemos o dispositivo em ordem inversa, teríamos: "os créditos trabalhistas e os decorrentes de acidente do trabalho, limitados a 150 (cento e cinqüenta) salários mínimos".

Contudo, refutamos veementemente essa argumentação relacionada a aspectos sintáticos da linguagem jurídica, pois feririam de morte os aspectos principiológicos que permeiam a própria lei, em particular a dignidade da pessoa humana, caso pudéssemos interpretá-la como forma de imposição de limitação ao credor por acidente do trabalho.

10) Por sua vez, o artigo 94, I, ao abordar a hipótese de falência por impontualidade injustificada, quando, de acordo com a própria redação, "o devedor sem relevante razão de direito, não paga obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados", trouxe uma inovação caracterizadora da preservação da empresa, pois estabeleceu um limite mínimo [32] de salários para a realização do pedido de falência, o que desestimula a propositura de ações com valores irrisórios (como era possível na vigência da lei passada [33]). Muito embora o permissivo legal previsto no parágrafo 1º do mencionado dispositivo preveja a possibilidade de reunião de credores em litisconsórcio ativo para atingir o valor mínimo, entendemos que o princípio da preservação da empresa está mantido, pois dificilmente os credores conhecerão seus pares para buscarem a via judicial, pelo menos nos grandes centros econômicos.

11) O artigo 95 ao prever a hipótese inovadora de, em contestação, pleitear sua recuperação judicial, também caracteriza a preservação da unidade produtiva, pois dá ao devedor uma possibilidade alternativa ao depósito elisivo ou contestatório de requerer o processamento do pedido recuperatório.

12) Destacamos ainda, o artigo 98, em paralelo ao que dispõe o artigo 95, pois demonstra novamente a intenção do legislador em ampliar a possibilidade de superação da crise, quando altera o prazo para a apresentação da contestação. Na legislação passada, inúmeras empresas sofriam a quebra, pois existia na lei um prazo extremamente exíguo para que o devedor pudesse efetuar o depósito elisivo ou embargasse o pedido falimentar. Esse prazo era de 24 horas, da citação válida do devedor. Portanto, com a ampliação do prazo para 10 (dez) dias, da citação válida, e a possibilidade mencionada no item anterior, percebe-se o caráter preservacionista da novel legislação.

13) Mencionamos ainda, o disposto no artigo 99, XI, que mantém a hipótese, excepcional de continuação do negócio do falido, como fora previsto no artigo 74 do Dec.-Lei 7.661/45. Contudo, a diferença relevante consiste no fato de que cabe na novel legislação ao juiz pronunciar-se ex officio [34], se haverá a continuação ou não com a condução do administrador judicial.

Essa medida, muito embora não tenha o significado direto de manter a unidade produtiva, acaba por via oblíqua preservando os ativos do falido para futuro pagamento dos credores e, fundamentalmente, mantendo os empregos dos trabalhadores. Desta forma, proporcionaria, mesmo que indiretamente, a dignificação da pessoa humana, em decorrência da valorização do trabalho humano.

14) Finalmente, temos o artigo 161, que prevê a possibilidade de recuperação extrajudicial. Além de ser uma inovação, caracterizadora de um novo paradigma legal, pois na legislação passada qualquer hipótese de acordo extrajudicial, era considerado ato de falência [35] (também chamada de falência presumida), a nova legislação estimula a composição amigável através desse mecanismo homologatório. O que o insere como uma forma alternativa de preservação da unidade produtiva.

Desta forma, após reconhecermos hipóteses concretas de preservação da empresa e eventuais antinomias relacionadas a esse princípio, passaremos a abordar o tema da recuperação judicial, posto que é uma das espécies do gênero recuperação da empresa.

Sobre o autor
Ecio Perin Junior

Head of the Business Reorganization Team; Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar, Advogados e Consultores Legais; Doutor e Mestre em Direito Comercial pela PUC/SP; Especialista em Direito Empresarial pela Università degli Studi di Bologna; Presidente e sócio fundador do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial – IBRADEMP; Membro Efetivo da Comissão de Fiscalização e Defesa do Exercício da Advocacia da OAB/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERIN JUNIOR, Ecio. A dimensão social da preservação da empresa no contexto da nova legislação falimentar brasileira (Lei nº 11.101/05).: Uma abordagem zetética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1682, 8 fev. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10922. Acesso em: 27 dez. 2024.

Mais informações

Estudo resumido, extraído da tese de doutoramento, defendida em julho de 2006 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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