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Precisamos falar sobre o aborto paterno

Agenda 24/07/2024 às 15:57

Examinam-se as causas e os efeitos sociais do abandono do pai antes ou mesmo após o nascimento da criança.

Estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas em 2022 constatou que, no Brasil, 11 milhões de mães assumem a responsabilidade exclusiva na criação de seus filhos.

A falta da presença paterna durante o crescimento de crianças e adolescentes pode ter repercussões significativas na saúde física e mental. Em diversas circunstâncias, isso costuma acarretar danos duradouros, com potencial para afetar suas vidas ao longo de toda a sua trajetória.

O século XXI trouxe consigo a liberdade e a praticidade na obtenção do divórcio. Em consequência, outra problemática passou a ser enfrentada: a guarda dos filhos. Constata-se, na realidade, que os filhos são cuidados na maioria das vezes somente por um dos genitores, que, em regra, é a mãe.

Vale lembrar que cuidar ultrapassa a questão financeira. Exige valores morais, éticos, afetividade e, principalmente, os cuidados mais básicos, como alimentação, moradia, higiene, saúde; sem os quais uma criança não sobreviveria.

E é nesse ponto que se destaca o "aborto paterno", ou seja, o abandono do pai antes ou mesmo após o nascimento da criança.

Dados da pesquisa FGV evidenciam que entre os anos de 2012 e 2022 ocorreu um incremento de 1,7 milhão de mães solo no Brasil. Parcela expressiva dessas mães não possui ensino superior. E, de acordo com dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (ARPEN), em 2022, mais de 164 mil crianças foram abandonadas pelo genitor ainda durante a gestação. Já em 2023, mais de 170 mil crianças não receberam o nome do pai em seus registros de nascimento. Ou seja, percebe-se um aumento crescente no abandono paterno.

É direito da personalidade inerente à identidade de toda criança ter o nome do pai na certidão de nascimento. Para além disso, a renúncia da paternidade, decerto, priva a criança do apoio emocional, financeiro e parental necessário para crescer e se desenvolver saudavelmente.

Revela-se comum entre as pessoas que foram vítimas do desamparo paterno o sentimento de culpa pelo abandono; sentem-se inferiores e acreditam que nelas está a razão do afastamento. Questionam-se o que fizeram para que seus próprios pais não as amassem, o que gera um sofrimento intenso.

Segundo a psicóloga Flávia Lacerda, a falta de um pai pode gerar reflexos em relacionamentos que virão, gerando um vínculo inseguro. Para ela, “esse apego inseguro significa que a pessoa pode ter uma tendência maior a ter ansiedade e dificuldade de se envolver e se vulnerabilizar em relações afetivas amorosas e que pode ter comportamentos também de maior agressividade”1

Na mesma linha, GERLACH esclarece que o abandono paterno leva à vergonha e à baixa autoestima, fazendo a criança sentir-se indigna e culpada, mesmo que outros adultos deem atenção e carinho intensos. É como se nela houvesse um sentimento de ter feito algo de errado que acarretou o abandono. A longo prazo, a tristeza continua sendo involuntária, o que pode levar a um luto inacabado na idade adulta e a uma depressão periódica ou crônica.2

Quando utilizamos o termo aborto, logo pensamos na decisão de mulheres de interromper uma gravidez antes do nascimento do feto. No Brasil, o aborto – retirada do bebê do útero antes no nascimento - é geralmente proibido, exceto nos casos previstos pelos artigos do Código Penal.

O ato de “abortar” praticado pela figura paterna representa despir a prole de cuidados, afeto e auxílio financeiro pelo pai, como se tivesse apagando a vida do filho.

Importante ponderar que o direito à dignidade da pessoa humana, inclusive, é um sobreprincípio, alçado pela nossa Constituição Federal como mais relevante que o simples direito à vida. Trocando em miúdos, mais do que a vida, o ser humano necessita de uma vida digna.

Quando o pai abandona os filhos, ele os joga à própria sorte, na medida em que toda a sobrecarga de cuidar de uma criança (ou de várias) recai sobre a mãe que, muitas vezes, não possui formação e, por consequência, também têm poucas condições de trabalhar, já que o salário que ganharia não é suficiente para pagar creches ou babás. Lembrando que o investimento estatal em creches públicas é exíguo, sequer existindo em muitos municípios.

Uma análise realizada pela pesquisa FGV evidencia ainda que, nas hipóteses em que a maternidade acontece durante a fase escolar - antes dos 24 anos – pode ocorrer consequências irreparáveis na vida da mulher. A pausa nos estudos gera a falta de capacitação, o que dificulta a inserção das mães no mercado de trabalho.

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De fato, a mulher grávida que não possui possibilidades de criar um filho e acaba tendo de abortar pode ser processada, levada a júri popular e condenada pelo crime de aborto. E uma das principais razões de abortos é justamente o desaparecimento do pai após o anúncio da gravidez.

Então por que quando o homem some, deixando a mãe e filho desamparados, deixando de prover e dar suporte à criança, a sociedade naturaliza? Em muitas salas de audiência já ouvi de profissionais do direito a frase “não podemos obrigar um pai a cuidar e amar seus filhos”! Mas a mãe podemos?

Quando um estuprador engravida uma mulher ou uma menina, desde então ele já praticou o aborto. E a sociedade pouco fala sobre isso. Mais do que o aborto do feto, ele cometeu algo semelhante a um aborto na vida da vítima, que nunca mais viverá como antes.

Mas se os números do abandono paterno são tão altos e as consequências tão desastrosas, por que a sociedade foca tanto na proibição do aborto materno e praticamente nada faz para combater o paterno? Por que não estão fazendo projetos de lei para criminalizar com penas rígidas o abandono afetivo e material dos pais?

Um dos argumentos mais comuns utilizados por quem é contra o aborto é que existem métodos contraceptivos e que as mulheres têm como evitar a gravidez; mas essa mesma cobrança não é feita aos homens.

Infelizmente, ainda é muito difícil para as mulheres negociar o uso de preservativo com seus parceiros. Em contrapartida, a mulher que carrega um preservativo na bolsa ou que o compra na farmácia ainda é vista como “vadia”, “prostituta”. Todo esse machismo impede que as mulheres possam ter controle sobre seus corpos.

Vivemos em uma sociedade em que há absoluta predominância da vontade masculina, e que há alguns séculos se preocupa em dominar apenas os corpos femininos, deixando-os ocupados com gravidezes e filhos para retirá-las do mercado de trabalho e evitar que estejam nos espaços de poder. Nesses locais, as mulheres ainda não são bem-vindas.

A grande preocupação que a média dos homens nutre com a vida dos fetos não condiz com a quase nenhuma preocupação que têm com crianças abandonadas pedindo esmolas na rua, crianças em orfanatos, crianças sofrendo abusos em casa. Não condiz, ainda, com a preocupação em relação aos filhos que eles próprios abortam socialmente.

E mais, quando essas crianças sem oportunidade se tornam adolescentes em conflito com a lei ou adultos que cometem crimes, esses mesmos homens pregam a pena de morte. Só vale a vida do feto?

Com o PL 1904, querem obrigar a gestar e servir de incubadora até as meninas vítimas do estupro - por serem as que mais demoram a descobrir a gestação - sob o argumento de que há uma vida útil ali dentro. E fora, não há uma vida útil? Não devemos nos preocupar com os corpos, vida e psicológico dessas meninas, que correm inclusive risco de morte com uma gravidez em fase tão precoce?

O aborto paterno traduz a falta da figura paterna na vida da criança e torna-se catastrófico em nível nacional por ser a tendência demográfica mais nociva desta geração, pois cria histórias de sobrevivência árduas, na qual mulheres têm de, sozinhas, cuidar de toda a família ao tempo em que também é principal causa do declínio da criança.

Como dito, nossa sociedade ainda é extremamente patriarcal, sendo autorizado aos homens todo tipo de decisão e apropriação sobre o corpo das mulheres. A eles cabe deliberar sobre seus corpos, enquanto os delas também é decidido por eles, sem qualquer consulta de opinião ou empatia.

É consenso (e imposição) social que as mães amam mais seus filhos que os pais, que a elas cabe o cuidado porque são melhores nisso e se dedicam mais; contudo, não são livres para decidir se podem abortar ou se o aborto é necessário para livrar o feto de uma vida de sofrimento. Essa decisão ainda cabe aos homens, que, em sua maioria, dizem não. E dizem não porque não são eles que gestam, não são eles quem cuidam e, quando abortam socialmente seus filhos, está tudo bem - não são obrigados a amar nem a cuidar.

Quando praticam o abandono não se deparam em suas portas com cartazes dizendo “NÃO AO ABORTO PATERNO”; não sofrem quaisquer consequências por isso, a não ser, quando muito, a prestação de uma mísera pensão alimentícia, cujo valor discutem cada centavo para se abster de pagar.

Diante dessa triste realidade, verifica-se que o fenômeno do aborto paterno é uma questão premente que exige atenção e medidas urgentes, com aprovação de leis mais efetivas e rigorosas para punir homens que abandonam seus filhos. Há quem fale em vasectomia obrigatória, castração química, crime específico para abandono pelo pai com penas maiores...Enfim, o certo é que medidas rigorosas precisam ter tomadas para combater esse mal que assola nossa sociedade.

As estatísticas evidenciam uma realidade alarmante: o abandono paterno no Brasil é uma prática disseminada, que provoca consequências devastadoras para as crianças e para as mães que assumem sozinhas a responsabilidade de criar seus filhos. O abandono afeta a saúde mental e física das crianças, muitas vezes causando danos emocionais duradouros e perpetuando ciclos de pobreza e exclusão social.

Enquanto a sociedade se preocupa intensamente com a proibição do aborto materno, negligencia quase que completamente o aborto paterno, que é igualmente, senão mais pernicioso. A falta de responsabilização dos pais que abandonam seus filhos e a naturalização dessa conduta refletem um machismo estrutural que perpetua a desigualdade de gênero e sobrecarrega as mulheres.

Constata-se, portanto, ser imperativo que sejam implementadas políticas públicas e legislações rigorosas que penalizem o abandono paterno de forma eficaz. Além disso, é essencial promover uma mudança cultural que valorize e responsabilize igualmente ambos os genitores pelo cuidado e sustento dos filhos. Somente através de uma abordagem abrangente e inclusiva será possível garantir uma vida digna e plena para todas as crianças, combatendo, assim, um dos maiores problemas sociais da atualidade: o aborto paterno!

REFERÊNCIAS:

Artigos em websites:

  1. MÃES solo no mercado de trabalho crescem 1,7 milhão em dez anos: O crescimento de domicílios tendo como pessoa de referência uma mãe solo faz parte das intensas transformações observadas nos arranjos familiares na última década. Disponível em: https://portal.fgv.br/artigos/maes-solo-mercado-trabalho-crescem-17-milhao-dez-anos. Acesso em: 26 dez. 2023.

  2. BLANKENHORN, David. The 9 Devastating Effects Of The Absent Father. Disponível em: https://thefathercode.com/the-9-devastating-effects-of-the-absent-father/. Acesso em: 20 mar. 2016.

  3. “Mais 170 mil crianças não receberam o nome do pai no último ano no Brasil.” Disponível em: https://arpenbrasil.org.br/press_releases/mais-170-mil-criancas-nao-receberam-o-nome-do-pai-no-ultimo-ano-no-brasil/. Acesso em: 26 dez. 2023.

  4. BERTHO, Helena. E esse tal de aborto paterno? AzMina. Disponível em: https://azmina.com.br/colunas/e-esse-tal-do-aborto-paterno/. Acesso em: 29 dez. 2023.

  5. No Brasil, 11 milhões de mulheres criam sozinhas os filhos. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-08/no-brasil-11-milhoes-de-mulheres-criam-sozinhas-os-filhos. Acesso em: 26 dez. 2023.

  6. ROCHA, Diego Nunes; ALVES, Schirlei. Brasil tem uma morte a cada 28 internações por falha na tentativa de aborto. Mulheres pardas têm mais que o dobro de risco de morrer do que mulheres brancas. Gênero e Número. 23 de setembro de 2023 às 12:02. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/09/23/brasil-tem-uma-morte-a-cada-28-internacoes-por-falha-na-tentativa-de-aborto. Acesso em: 29 dez. 2023.

Capítulos de livros ou artigos:

  1. GERLACH, Peter K. Perspective on Parental Abandonment: Causes, Effects, and Options. Disponível em: http://sfhelp.org/gwc/abandon.htm. Acesso em: 11 julho de 2024 (GERLACH, 2015, p. 01 – 43).

Artigos de revistas:

  1. TAQUARY, Catharina Orbage De Britto. DIREITO E DESIGUALDADES: SÍNDROME DA ALIENAÇÃO PARENTAL E O ABORTO PATERNO. Revista de Direito de Família e Sucessão, Brasília, v. 2, n. 1, p. 94-112, jan./jul. 2016. Disponível em: <https://www.indexlaw.org/index.php/direitof. Acesso em 11 de julho de 2024.


  1. No Brasil, 11 milhões de mulheres criam sozinhas os filhos. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-08/no-brasil-11-milhoes-de-mulheres-criam-sozinhas-os-filhos. Acesso em: 26 dez. 2023.

  2. GERLACH, Peter K. Perspective on Parental Abandonment: Causes, Effects, and Options. Disponível em: http://sfhelp.org/gwc/abandon.htm. Acesso em: 11 julho de 2024 (GERLACH, 2015, p. 01 – 43).

Sobre a autora
Cláudia Isabele Freitas Pereira Damous

Defensora Pública do Estado do Maranhão

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DAMOUS, Cláudia Isabele Freitas Pereira. Precisamos falar sobre o aborto paterno. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7693, 24 jul. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110319. Acesso em: 18 out. 2024.

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