5. ANÁLISE DA ADOÇÃO PELA LEI Nº 9.882/99 DA DOUTRINA PROSPECTIVA
O art. 11 da Lei n. 9.882/99, ao autorizar, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, que o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, possa restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, previu a adoção expressa no direito constitucional brasileiro dos efeitos prospectivos da decisão de inconstitucionalidade das leis, permitindo que, em casos excepcionais, referida decisão tenha eficácia ex nunc ou pro futuro.
Ressalte-se que esta manipulação dos efeitos da decisão proferida em controle de constitucionalidade, como já visto acima, surgiu com o fim de mitigar os choques de princípios: uns determinando a ineficácia ex tunc do ato, outros determinando a preservação da eficácia dos mesmos atos devido à aplicação de princípios como o da segurança jurídica, da irrepetibilidade dos alimentos, do não-enriquecimento sem causa, da teoria da aparência ou do funcionário de fato, da teoria da presunção de boa-fé dos atos administrativos, entre outros.
Entendeu, portanto, a Comissão que elaborou a Lei 9.882/99 que, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, há de se reconhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal, em casos excepcionais, mediante decisão da maioria qualificada (dois terços dos votos), estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, proferindo a inconstitucionalidade com eficácia ex nunc ou pro futuro, especialmente naqueles casos em que a declaração de nulidade se mostre inadequada (v.g.: choque de princípios) ou nas hipóteses em que a lacuna resultante da declaração de nulidade possa dar ensejo ao surgimento de uma situação ainda mais afastada da vontade constitucional.
Sem embargo de todas as opiniões favoráveis à adoção do referido dispositivo, respaldadas inclusive na falta de previsão na Constituição Federal de 1988 da eficácia ex tunc às decisões proferidas no controle jurisdicional de constitucionalidade de leis, não faltam doutrinadores que defendam a inconstitucionalidade ou o possível casuísmo da previsão da manipulação dos efeitos da decisão. Dentre eles, merece destaque o entendimento do constitucionalista Ferreira Filho (1996, p. 14):
Seria preciso não conhecer o Brasil para supor motivada por questões de alta indagação científica essa proposta. Conhecendo-o, fácil é descobrir o que têm em mente os proponentes dessa ‘nulidade’ ou ‘anulação’ diferida. É sempre o ângulo governamental. Com base nessa regra, toda vez que um tributo correr o risco de ser julgado inconstitucional – e essas coisas se sabem com antecedência em Brasília – invocando o pesado ônus da devolução do já recebido, o Poder Público pleiteará que a eficácia da decisão seja a partir do trânsito em julgado. Assim, não terá de devolver o já recebido (...).
Apesar disso, em que pesem as distorções que possam vir a ocorrer na aplicação dos efeitos prospectivos à decisão de inconstitucionalidade das leis, não se pode elevar o efeito ex tunc a patamar de regra absoluta, pois, na prática, diante da multiplicidade do número de normas jurídicas editadas casuisticamente pelo legislador associado à imprescritibilidade do vício de ilegitimidade constitucional e aos princípios da segurança jurídica e da presunção de constitucionalidade das leis, o Supremo Tribunal Federal, ao tentar aplicar indiscriminadamente o princípio da nulidade ab initio, pode correr o risco de acabar, ele mesmo, indo contra os desejos da Constituição, provocando, nos dizeres de CLÈVE (2000, p. 251) "tremendas injustiças, lesionando outros interesses e valores também tuteladas pela ordem constitucional".
Nesse mesmo sentido, já se manifestou Greco Filho (1991, p. 178) ao ponderar sobre a aplicação do princípio da razoabilidade no Processo Penal:
O texto constitucional parece, contudo, jamais admitir qualquer prova cuja obtenção tenha sido ilícita. Entendo, porém, que a regra não seja absoluta, porque nenhuma regra constitucional é absoluta, uma vez que tem de conviver com outras regras ou princípios também constitucionais. Assim, continuará a ser necessário o confronto ou peso entre os bens jurídicos, desde que constitucionalmente garantidos, a fim de se admitir, ou não, a prova obtida por meio ilícito.
Acrescente-se, ainda, que, nos moldes como está redigido o art. 11 da Lei nº 9.882/99, apenas excepcionalmente é admitido ao STF deixar de aplicar o efeito ex tunc às decisões que proferirem a inconstitucionalidade das leis. Para tanto, seria necessária a demonstração de ocorrência de três pressupostos, a saber: razões de segurança jurídica, de excepcional interesse social e, por fim, decisão por maioria de dois terços dos membros do STF.
6. CONCLUSÃO
Desse modo, o artigo 11 da Lei n.° 9.882/99 deve ser interpretado teleologicamente no sentido de se permitir a garantia do fiel cumprimento do texto constitucional, na medida em que, conferindo-se ao órgão julgador maior flexibilidade na determinação dos efeitos às decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade, torna-se possível a declaração de inconstitucionalidade de norma com efeitos ex nunc ou pro futuro, sem que tal declaração cause danos irreparáveis aos jurisdicionados e ao País.
Assim, não vejo sinais de inconstitucionalidade material nem formal na delimitação dos efeitos da decisão de mérito na argüição de descumprimento de preceito fundamental com o objetivo de se evitar o que muitas vezes ocorre nas demais espécies de controle concentrado, em que se deixa de declarar a inconstitucionalidade de norma inconstitucional para se evitar um mal maior.
Registre-se, por fim, que para se adequar melhor aos anseios da sociedade, seria preferível que a margem de liberdade conferida ao Pretório Excelso, para deliberar sobre a retroatividade ou não dos efeitos de sua decisão, não fosse tão ampla, pois da forma em que está redigido, se não for aplicado com cautelas e bom senso, pode inviabilizar a possibilidade de previsão, pelos interessados, dos efeitos a serem aplicados, o que prejudicaria a certeza do direito e a estabilidade das relações jurídicas, infringindo o princípio da segurança jurídica.
Registre-se, ainda, que se conformaria muito mais com o princípio constitucional o estabelecimento de parâmetros objetivos para a adoção da doutrina prospectiva no Direito brasileiro, pois não se pode adiar, por tempo ilimitado, a retirada do ordenamento jurídico de uma norma já declarada inconstitucional.
7. REFERÊNCIAS
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NOTAS
01 RTJ 82:791, Adin 1434-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 22.11.1996. No AGR 195.513 (Rel. Min. Carlos Veloso, DJU 06.02.1998), o Supremo Tribunal Federal reafirmou sua posição: a medida liminar, nas ações diretas de inconstitucionalidade, tem, via de regra, efeito ex nunc. A decisão final de mérito, entretanto, tem efeito ex tunc.
02 Rp. 980, Relator: Ministro Moreira Alves, RTJ n. 96, p. 496 (508).
03 Segundo as lições de Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional, p. 204, esta modalidade é utilizada sobretudo no caso de normas que atribuem benefícios incompatíveis com o princípio da isonomia, de omissões inconstitucionais parciais ou quando a supressão da norma inconstitucional geraria uma situação de caos normativo. Consiste em reconhecer a ilegitimidade constitucional da norma, mas deixar de declara-la nula, gerando para o legislador o dever jurídico de empreender as medidas necessárias para suprimir o estado de inconstitucionalidade.
04 Nesse caso, o Tribunal reconhece a constitucionalidade da norma, mas alerta para o fato de que, em razão de mudanças das relações fáticas ou jurídicas, a mesma se encontra em trânsito para a inconstitucionalidade. Cf. id. ibidem, p. 229-230.
05 RTJ 100/1.086 e RTJ 71/570.
06 RMS 17.076, Rel. Min. Amaral Santos, RTJ 55/744.
07 A propósito, merece-se destacar que a possibilidade de conflito de normas não desmerece o caráter sistemático da Constituição, pois a sua unidade não significa a inexistência de tensões, mas sim a possibilidade de resolução destas tensões a partir de critérios e instrumentos inferidos da própria Constituição.
08 RE 122.202, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ de 8-04-1994.
09 Conferir RTJ 100:1.086. Consultar também RE 122.202, Rel. Min. Francisco Rezek, j. 10.08.1993.