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O efeito prospectivo das decisões em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental

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O art. 11 da Lei n.° 9.882/99, que torna possível a declaração de inconstitucionalidade de norma com efeitos "ex nunc", deve ser interpretado teleologicamente. A manipulação dos efeitos da decisão, desde que realizada com cuidado, se mostra mais eficaz à defesa dos direitos e garantias fundamentais e à sociedade.

1.INTRODUÇÃO

A Lei n 9.882/99, regulamentando o art. 102, § 1°, da Constituição Federal, trouxe uma novidade ao controle de constitucionalidade brasileiro, qual seja, a previsão, no seu art. 11, dos efeitos prospectivos das decisões proferidas em controle de constitucionalidade, in verbis:

Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Ressalte-se que a Corte Maior, com fundamento no princípio da supremacia da Constituição, até então, adotava o entendimento de que, sendo as leis inconstitucionais nulas desde o seu nascedouro, as decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade sempre teriam efeitos ex tunc. Fundamentava a sua posição no postulado da nulidade das decisões proferidas em sede de controle de constitucionalidade, o qual não admitia relativizações. A despeito disso, a legislação de alguns países, bem como um número considerável de juristas brasileiros, já admitiam a modulação dos efeitos das decisões proferidas no controle concentrado.

Tudo nos faz crer que a manipulação dos efeitos da decisão, desde que realizada com cuidado, se mostra mais eficaz à defesa dos direitos e garantias fundamentais e à sociedade. Com o intuito de esclarecer o dissídio doutrinário, apresentamos, a seguir, de modo mais detalhado, os argumentos defendidos pelas duas correntes e os ensinamentos do direito comparado.


2.O DOGMA DA NULIDADE DA LEI INCONSTITUCIONAL, COM EFEITOS EX TUNC

Segundo Mendes (1996, p. 249), pertence à tradição do direito brasileiro o dogma da nulidade da lei inconstitucional. Embora não haja na Constituição Federal nenhum dispositivo atribuindo expressamente eficácia ex tunc às decisões proferidas em sede de constitucionalidade das leis, predomina na doutrina e jurisprudência pátrias o entendimento quanto ao caráter declaratório [declara um estado preexistente] e retroativo das referidas decisões, nele vislumbrando um verdadeiro princípio constitucional implícito [01].

Neste ponto, o direito pátrio filiou-se à doutrina norte-americana da judicial review, adotada pelo juiz John Marshall desde o julgamento do caso Marbury versus Madison. Esta doutrina tem como fundamento o princípio da supremacia da constituição sobre as demais leis, de forma que, se uma lei inferior contrariar uma norma constitucional, ela será nula desde o seu nascimento, já que o reconhecimento de qualquer efeito a uma lei inconstitucional - ainda que por tempo limitado - importaria na suspensão provisória ou parcial da Constituição [02].

Veremos, porém, que a nulidade não é o único meio de preservação da supremacia da Constituição; em certos casos, a anulabilidade possui esse mesmo caráter protetor, como acontece na Áustria e em Portugal. É certo que merece aplausos a tese sustentada pelo Juiz Marshall, a partir do momento que enunciou com clareza o princípio da supremacia da Constituição, o qual garante o sistema de constituições rígidas como o nosso. O problema está em se tratar o princípio da nulidade como um verdadeiro dogma, colocando-o com hierarquia superior aos demais princípios e regras constitucionais, o que não se afigura correto em Constituições como as nossas, que, no dizer de Canotilho, são caracterizadas como sistemas abertos de normas e princípios.

Isso porque, segundo o autor português, um sistema constituído exclusivamente por regras conduziria a uma limitada racionalidade prática, já que exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa, com um legalismo exacerbado. Conseqüentemente, teríamos um "sistema de segurança", mas não haveria espaço para sua complementação e desenvolvimento. Por outro lado, um sistema baseado exclusivamente em princípios levar-nos-ia a conseqüências igualmente inaceitáveis, tendo em vista que a inexistência de regras precisas, a coexistência de princípios conflitantes e a dependência do "possível" fático e jurídico, levariam a um sistema falho de segurança jurídica e tendencialmente incapaz de reduzir a complexidade do próprio sistema.

Sendo a Constituição, como já se disse, considerada um sistema aberto de regras e princípios, podem existir tensões entre os vários preceitos nela contidos, de modo que, para que um Estado obtenha "coerência narrativa" do sistema jurídico, valorando o princípio da unidade da Constituição, deve ser afastada a transformação de qualquer princípio em verdadeiro dogma constitucional. Destarte, diante do caso concreto, a aplicação incondicionada do dogma da nulidade das leis inconstitucionais suscita questões de difícil equacionamento.

Com efeito, destaca Sarmento (2001, p. 11):

(...) a eliminação retroativa de normas vigentes no ordenamento pode gerar situações de verdadeiro ‘caos’ jurídico, ocasionando tremenda insegurança para aqueles que pautaram seus atos pela lei inconstitucional. Tal problema se agrava, tendo em vista a imprescritibilidade do vício de ilegitimidade constitucional. Nada obsta que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só seja reconhecida muitos anos depois da sua edição. Nestes casos, a supressão retroativa da lei contrária pode acarretar tremendas injustiças, constituindo o abrandamento dos efeitos solução mais razoável e consentânea com o conjunto de interesses e valores tutelados pela Constituição.

Vejamos, no próximo tópico, a tendência contemporânea de temperamento ou relativização dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, que vem sendo aplicado no direito comparado com bastante êxito.


3.. DIREITO COMPARADO

A maior parte dos países que adotaram o controle jurisdicional de constitucionalidade optaram, no que tange aos efeitos temporais da decisão, pelo modelo norte-americano, em que a decretação da inconstitucionalidade produz efeitos retroativos ab initio.

A principal exceção a esta regra deu-se na Áustria, onde se adotou a natureza constitutivo-negativa da decisão que pronuncia a inconstitucionalidade de uma lei. Em Portugal, o art. 282, n. 4, de sua Constituição, previu, por razões de eqüidade, segurança jurídica ou interesse público de excepcional relevo, o qual deverá ser fundamentado, a fixação dos efeitos da inconstitucionalidade com alcance retroativo mais restrito.

Ao comentar o referido dispositivo da Constituição Portuguesa, expressou-se Miranda (1988, p. 389-390):

Trata-se de um mecanismo criado para adequar os efeitos da inconstitucionalidade às situações da vida, a ponderar o seu alcance e a mitigar uma excessiva rigidez que pudesse comportar; em última análise, destina-se a evitar que, para fugir a conseqüências demasiado gravosas da declaração, o Tribunal Constitucional viesse a não decidir pela existência de inconstitucionalidade.

Nos demais países, a exemplo da Itália, Alemanha, Espanha, a regra em vigor é a que considera nula ex tunc a norma inconstitucional. Entretanto, tais países já vêm admitindo, tal como o Brasil, a flexibilização dessa regra. Tem contribuído para isso a adoção de outras técnicas para modular os efeitos temporais das decisões proferidas no controle de constitucionalidade, tais como declaração de inconstitucionalidade, sem pronúncia de nulidade [03]; apelo ao legislador [04]; interpretação conforme à Constituição, dentre outras.

Registre-se, inclusive, que o berço da doutrina da nulidade – Estados Unidos – já admitiu o abrandamento dos efeitos retroativos. Nesse sentido, expressou-se Clève (2001, nota de rodapé das páginas 243-244):

(...)Sempre se entendeu entre nós, de conformidade com a lição dos constitucionalistas norte-americanos, que toda lei, adversa à Constituição, é absolutamente nula; não simplesmente anulável. É preciso lembrar, entretanto, que a partir de 1965, com a decisão prolatada no caso Linkletter, a Suprema Corte americana passou a admitir, em certas situações, a declaração de inconstitucionalidade com efeitos meramente prospectivos (sem a produção de efeitos retroativos, portanto). A respeito, ver Eduardo García de Enterría, Justicia constitucional, la doctrina prospectiva em la declaración de ineficácia de las leyes inconstitucionales, RDP 92:06.

Como visto, a tendência contemporânea está em relativizar os efeitos retroativos da lei declarada inconstitucional.


4. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E A RELATIVIZAÇÃO DOS EFEITOS RETROATIVOS NA JURISPRUDÊNCIA NACIONAL

Não se discute que o princípio da nulidade das leis inconstitucionais tem hierarquia constitucional. Entretanto, também deve ser ressaltado que não há princípios absolutos; todos têm a mesma hierarquia, o que faz incorreto o tratamento do princípio da nulidade como um dogma inquestionável, que não pode ser objeto de ponderação com outros princípios.

Sendo assim, o princípio da nulidade também deve ser submetido ao juízo de ponderação, quando, no caso concreto, entrar em conflito com outro princípio da mesma hierarquia, a fim de ser estabelecido pelo Tribunal qual dos princípios deverá prevalecer na questão sub judice.

O eminente Sarmento (1998, p. 27-40), em seu artigo "Eficácia temporal do controle de constitucionalidade (o princípio da proporcionalidade e a ponderação de interesses) das leis", dá-nos uma verdadeira aula sobre a colisão de princípios constitucionais e o juízo de ponderação de interesses, verbis:

Beira o truísmo a afirmação de que, no exercício da jurisdição constitucional, não pode o Judiciário desconsiderar os efeitos concretos que suas decisões produzem. Como poder político, o Judiciário não pode furtar-se à responsabilidade sobre as conseqüências dos seus julgados, invocando o mote ultrapassado do fiat justitia et pereat mundus.

Com isso, não se pretende advogar que seja lícito ao juiz decidir conflitos constitucionais através de valorações políticas discricionárias, desconsiderando o método jurídico, mas sim que o método jurídico, sobretudo no campo constitucional, envolve também, necessariamente, a consideração acerca dos resultados práticos das decisões.

Com efeito, é muito distante da realidade a crença de que o labor de interpretação e aplicação da Constituição se esgote num simples processo lógico-subsuntivo. A natureza aberta e principiológica das normas constitucionais, e o seu acentuado conteúdo político, reclamam, no mais das vezes, valorações por parte do intérprete, onde inevitavelmente considerações de cunho metajurídico acabam aflorando.

Esta complexidade da hermenêutica constitucional se acentua nos países que, como o Brasil, adotaram constituições compromissória. Estas são cartas nas quais o processo constituinte não se desenvolveu sob o signo do consenso, traduzindo, ao revés, um compromisso entre forças políticas díspares. Assim, tais constituições acabam abrigando normas e valores derivados de matrizes ideológicas antagônicas, o que tende a gerar a eclosão de tensões e impasses na solução de controvérsias concretas.

Ocorre que, no exercício do controle de constitucionalidade, surge muitas vezes a necessidade de proteger interesses contrapostos, ambos tutelados constitucionalmente. Pode ser que determinada norma infraconstitucional viole algum ditame da Lei Maior, mas que a sua supressão retroativa do ordenamento ocasione, da mesma forma, a lesão a outro bem ou valor salvaguardado constitucionalmente.

(...)

Em casos desta espécie, parece-nos que deve ser concedida certa ‘margem de manobra’ ao Judiciário, para que possa buscar, e vista das peculiaridades da situação concreta, uma solução que acomode, na medida do possível, os interesses em disputa, sem ter de sacrificar integralmente algum deles em detrimento do outro. Trata-se da aplicação do método da ponderação de interesses, que exige, por parte do operador do direito, um labor de otimização, de modo que a compreensão a cada interesse constitucional em jogo seja a mínima necessária para a salvaguarda do interesse antagônico.

Sob este prisma, entendemos que o fundamento para o Judiciário proceder à ponderação de interesses no controle de constitucionalidade radica no princípio da proporcionalidade, cuja vigência em nosso ordenamento constitucional a jurisprudência mais atual vem reconhecendo.

Tal princípio desempenha um papel extremamente relevante no controle de constitucionalidade dos atos do poder público, na medida em que ele permite de certa forma a penetração no mérito do ato normativo, para aferição da sua razoabilidade e racionalidade, através da verificação da relação custo-benefício da norma jurídica, e da análise da adequação entre o seu conteúdo e a finalidade por ela perseguida.

Conforme a doutrina mais autorizada, o princípio da proporcionalidade é passível de divisão em três subprincípios: (a) da adequação, que exige que as medidas adotadas tenham aptidão para conduzir aos resultados almejados pelo legislador; b) da necessidade, que impõe ao legislador que, entre vários meios aptos ao atingimento de determinados fins, opte sempre pelo menos gravoso; c) da proporcionalidade em sentido estrito, que preconiza a ponderação entre os efeitos positivos da norma e os ônus que ela acarreta aos seus destinatários.

(...)

Assim, entendemos que o princípio da proporcionalidade autoriza uma restrição à eficácia ex nunc da decisão proferida no controle de inconstitucionalidade, sempre que esta restrição: (a) mostrar-se apta a garantir a sobrevivência do interesse contraposto, (b) não houver solução menos gravosa para proteger o referido interesse, e (c) o benefício logrado com a restrição à eficácia retroativa da decisão compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse que seria integralmente prestigiado, caso a decisão surtisse seus efeitos naturais.

(...)

É evidente que a solução ideal viria se o constituinte derivado disciplinasse a matéria, introduzindo na Lei Fundamental uma autorização expressa para o Judiciário temperar, em casos excepcionais, o princípio da nulidade ab initio da lei inconstitucional, tal como ocorre em Portugal. Isso evitaria ociosas polêmicas jurisprudenciais, e daria maior segurança à sociedade. Porém, a inexistência de norma expressa neste sentido não inibe o juiz de calibrar os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, sempre que tal medida se revele a melhor solução para o equacionamento da tensão entre interesses constitucionais contrapostos.

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No Brasil, não obstante o Supremo Tribunal Federal tenha permanecido na linha de entendimento tradicionalmente norte-americana, mesmo antes da edição da Lei nº 9.882/99, a Corte tem admitido alguns temperamentos, principalmente, reconhecendo a aplicação dos seguintes princípios: a) presunção de constitucionalidade das leis; b) coisa julgada; c) enriquecimento sem causa; d) irrepetibilidade de verba alimentar; e) teoria da aparência ou do funcionário de fato para proteção de terceiros de boa-fé [05]; f) princípio da segurança jurídica, dentre outros.

O princípio da segurança jurídica é derivado da adoção pelo Brasil do Estado de Direito, no qual se protege o indivíduo de mudanças inesperadas em posições consolidadas no tempo, dando preferência à edição de leis claras e tendencialmente estáveis para aumentar a confiança dos cidadãos na força normativa do ordenamento positivado e favorecer a calculabilidade e a previsibilidade dos efeitos dos atos realizados, prevenindo-se situações de perplexidade.

Em relação ao princípio da coisa julgada, Mendes (1998, p. 44) ilustrou com brilhantismo que o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro pareceu contemplar uma ressalva expressa à rigorosa doutrina da retroatividade (CF, art. 153, § 3º), a saber, a coisa julgada, ressaltando que ainda que se não possa cogitar de direito adquirido ou de ato jurídico perfeito, fundado em lei inconstitucional, afigura-se evidente que a nulidade ex tunc não afeta a norma concreta contida na sentença ou acórdão.

Nesse sentido, já decidiu o STF: "A suspensão da vigência da lei por inconstitucionalidade torna sem efeito todos os atos praticados sob o império da lei inconstitucional. Contudo, a nulidade da decisão judicial transitada em julgado só pode ser declarada por via de ação rescisória" [06].

Na esfera penal, tal limitação não se aplica em desfavor do réu, uma vez que a lei não assinala nenhum prazo fatal para a propositura da revisão criminal.

Merece destaque, ainda, que, no direito brasileiro, a presunção de constitucionalidade das leis é admitida sem contestação, de forma que mesmo que uma lei seja aparentemente inconstitucional, antes de ser declarada como tal, goza de presunção de validade, sendo fato que adentra no ordenamento jurídico, produzindo efeitos jurídicos e devendo ser obedecida por todos, até a posterior declaração de sua inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário, o que pode ocorrer apenas muitos anos depois (quando inúmeras situações já foram consolidadas sob a vigência da lei tida por inconstitucional) ou nem ocorrer.

Nesse contexto, importante, portanto, a lembrança de que o direito não é um fim em si mesmo, mas um meio para garantia da vida harmônica da sociedade. E, para não se distanciar dela, os juízes, apesar de estarem vinculados às normas jurídicas, possuem, dentro de certos limites, um espaço para buscar a solução mais justa para o caso concreto, concretizando, dessa forma, o postulado de que o direito possui uma visão tríplice, composto por fato, valor e norma, tal como expôs brilhantemente Miguel Reale em sua Teoria Tridimensional do Direito.

Essa valoração, inclusive, dada à abertura da Constituição, o seu caráter eminentemente político e a abstração de suas normas, faz com que sua interpretação não se esgote em um simples silogismo, onde a conclusão é deduzida a partir de um raciocínio matemático e lógico, ainda mais em constituições compromissórias, como é o caso da brasileira, fato que a leva a possuir normas potencialmente conflitantes, que podem entrechocar-se [07]. Aqui é que entra o papel do Poder Judiciário que, diante de um caso concreto submetido a exame, deve solucionar o conflito, utilizando de técnicas de ponderação, pois, de um lado, encontrará o dogma da nulidade, que o impulsionará a declarar a inconstitucionalidade ab initio da norma, e, do outro lado, deparar-se-á com princípios de presunção de constitucionalidade, boa-fé, irrepetibilidade de verba alimentar, que clamarão pelo aplicação do efeito prospectivo ou ex nunc.

Deve-se ter cuidado para que, sob o manto de uma disfarçável ponderação, o Poder Judiciário não invada a competência do Poder Legislativo, infringindo o princípio da separação dos poderes. Sobre a matéria, escreveu Sarmento (2002, p. 113-114):

A ponderação de interesses pode ser realizada pelo Poder Judiciário basicamente em duas hipóteses: (a) quando inexistir regra legislativa específica resolvendo determinado conflito entre princípios constitucionais surgido em um caso concreto, ou (b) quando a regra legislativa em questão tiver a sua constitucionalidade questionada, pela via incidental ou principal.

No primeiro caso, o Poder Judiciário terá, forçosamente, de proceder à ponderação, uma vez que não poderá furtar-se ao seu dever de resolver a lide, e a colisão entre princípios constitucionais não tem como ser equacionada senão através do emprego do método da ponderação de interesses. No segundo caso, porém, a questão torna-se um tanto mais delicada.

De fato, a necessidade de ponderação de interesses na aplicação das normas constitucionais exacerba o risco de invasão, pelo Poder Judiciário, do campo de discricionariedade inerente à atividade legislativa. Através da ponderação, os juízes, que não são eleitos, podem tentar impor as suas opções políticas e ideológicas em detrimento daquelas realizadas pelos representantes do povo.

Porém, é evidente que, em uma democracia, a escolha dos valores e interesses prevalecentes em cada caso deve, a princípio, ser da responsabilidade de autoridades cuja legitimidade repouse no voto popular. Por isso, o Judiciário tem, em linha geral, de acatar as ponderações de interesses realizadas pelo legislador, só as desconsiderando ou invalidando quanto elas se revelarem manifestamente desarrazoadas ou quanto contrariarem a pauta axiológica subjacente ao texto constitucional.

Dessa forma, o Poder Judiciário tem que agir com bom senso e cautela quando se deparar com uma falta de precisão das normas constitucionais. Registre-se que, além da coisa julgada e do princípio da segurança jurídica, outro exemplo de temperamento deve ser invocado no caso de aumento concedido a servidores públicos, com base em lei inconstitucional. Em decisão proferida em 1994, relatada pelo Ministro Francisco Rezek, o STF entendeu que "retribuição declarada inconstitucional não é de ser devolvida no período de validade inquestionada da lei declarada inconstitucional – mas tampouco paga após a declaração de inconstitucionalidade" [08].

Aplicando a teoria do funcionário de fato, o Supremo não invalidou os atos praticados pelo funcionário investido, por força de lei inconstitucional, em cargo público. Inexistido prejuízo, protegeu a aparência de legalidade dos atos em favor da boa-fé de terceiros [09].

Assim, o STF, embora tenha se mantido fiel ao dogma da nulidade ab initio da lei inconstitucional, em casos excepcionais, já vem ponderando os interesses constitucionais em conflito, contornando a rigidez do princípio da nulidade, aproximando suas decisões à dinâmica dos fatos.

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Sobre o autor
Braulio Vitor da Silva Fernandes

Assesor jurídico das turmas recursais do Estado do Maranhão. Pós-graduando em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - PRAETORIUM

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Braulio Vitor Silva. O efeito prospectivo das decisões em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1726, 23 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11057. Acesso em: 25 abr. 2024.

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