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O cárcere dentro da cabeça

Os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 se transformaram em uma referência histórica para demonstrar o endurecimento do regime de repressão e dos mecanismos de controle – cada vez maiores, como se fosse possível ampliar ainda mais o adjetivo total que dá "qualidade" ao controle.

Importante lembrar que o 11 de setembro não foi causa mas, sim, conseqüência de um sistema que não mais se sustentava e para permanecer precisava, e precisa, de fatos radicais que gerem terror. Afinal, a pergunta fundamental segue sendo: quem são os terroristas? A alimentação permanente do medo permite retirar direitos, aumentar o controle, acabar com a privacidade e a intimidade, suprimir liberdade, tudo em nome da segurança – como antes em nome de Deus, depois do Rei, da Pátria, da Família e sempre da propriedade. Fazer com que as pessoas sintam medo e insegurança é o principal mecanismo de supressão da liberdade e da democracia para a conservação de um sistema econômico e social inviável, injusto, indigno – porque excludente, egoísta e devastador não só do meio ambiente mas, também, das idéias de comunidade, solidariedade e todo e qualquer valor ético e moral fundado sobre estas idéias.

Por que então, para falar do uso de coleiras, pulseiras ou tornozeleiras em condenados, que está sendo testado no Estado de Minas Gerais neste ano de 2008, precisamos fazer uma introdução falando do "11 de setembro estadunidense"? Porque toda ação ocorre em um contexto histórico e só pode ser entendida dentro desse contexto.

O atual contexto é de medo, em uma sociedade onde liberdade é confundida, propositalmente, com consumo e democracia é confundida, propositalmente, com possibilidade de escolha de produtos para consumir. A necessidade de gerar medo, a mesma que ocorre nos EUA, ocorre aqui, em nossa Belo Horizonte. Não que os que se encontram no poder do Estado e os responsáveis por políticas públicas desconheçam os dados, que muitas vezes são produzidos por eles mesmos: em Belo Horizonte, os bairros mais pobres são os mais violentos; as pessoas envolvidas com a prática de ações violentas são poucas; geralmente os homicídios ocorrem nos mesmos bairros miseráveis onde moram as pessoas que cometem estes atos; na acachapante maioria dos casos, a vítima conhece o algoz. Ou seja: não há explosão de violência mas implosão. Entretanto, a mídia gera o medo e nos faz acatar silenciosamente a perda de direitos de diversas pessoas, diariamente humilhadas.

O medo nos torna mansos e a ideologia (como distorção proposital do real, que parece ficção, que só deveria existir na ficção, mas não: é o real) constrói para nós uma estória para nossos medos e desejos que não corresponde à realidade. Assim, somos levados a acreditar que os seres humanos se dividem entre pessoas e não-pessoas. Somos levados a acreditar que pessoas não cometem barbaridades, que são cometidas pelas não-pessoas, ou monstros. E mais, somos levados a acreditar que violência, repressão, opressão e controle solucionarão os nossos medos. Como o direito penal do inimigo pode vir a ser seu amigo? A inversão das coisas é produção da ideologia mencionada: para aplacar o nosso medo admitimos que façam com pessoas (que não consideramos pessoas, o que não muda o fato de serem pessoas) o que não queremos para nós. Defendemos um sistema de controle total, que deveríamos temer, justamente por causa do medo. Quanto mais medo tivermos, mais motivos teremos para temer o que ainda não enxergamos com temor: o controle total.

Chegamos então à questão central de nossas reflexões: o uso de coleiras, pulseiras ou tornozeleiras em condenados é inconstitucional, pois constitui pena não prevista em lei e rejeitada pela Constituição da República, pois ofensiva à dignidade, à privacidade e à intimidade da pessoa, que não perde esses direitos fundamentais mesmo diante de uma condenação penal transitada em julgado.

O paradoxo: a pena privativa de liberdade foi historicamente uma conquista – acreditem se quiser. Embora hoje seja um mecanismo ultrapassado para a quase totalidade dos casos, e para a esmagadora maioria dos nossos presos [01], é importante lembrar que essa pena surgiu como evolução em substituição a um sistema de penas corpóreas, torturas brutais, com humilhações públicas e destruição da família do condenado, no qual muitas vezes as penas alcançam até seus descendentes por várias gerações.

Num passado não muito distante (afinal, o que são um par de séculos na história da maldade humana?), pessoas eram condenadas a andar com marcas no corpo ou nas suas roupas em meio à comunidade onde viviam, em uma pena de humilhação eterna, um ritual macabro perpétuo, com repercussões psicológicas arrasadoras.

Agora, para tornar mais barata a manutenção do preso, e criar vagas para encarcerar mais, o Estado de Minas Gerais colocará braceletes, coleiras ou tornozeleiras em condenados. Na segregação, na contenção, no encarceramento em massa – e é isso que nos dá medo – Minas avança, parecendo não querer deixar ninguém para trás.

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Primeiro aspecto de sua inconstitucionalidade: as penas admitidas pela Constituição são: penas privativas de liberdade, perda de bens, multa, prestação social alternativa e suspensão ou interdição de direitos. Proíbe a Constituição federal que a pena ultrapasse a pessoa do condenado, assim como são vedadas penas cruéis, de caráter perpétuo; de trabalhos forçados e de banimento. O artigo 60, § 4º, da Constituição Federal proíbe a deliberação de emendas à Constituição (o que implica que também são proibidas leis ou qualquer outra norma, políticas ou medidas) que tendam a abolir os direitos fundamentais e suas garantias. Isso significa dizer que qualquer restrição a direitos é proibida, o que pode ocorrer, claramente, com a criação de novas penas, encobertas (porque também a competência privativa para legislar em matéria penal é da União Federal) ou disfarçadas como mecanismos de controle que comprometam ou suprimam direitos fundamentais como a intimidade e a privacidade.

Um outro aspecto já mencionado: é infelizmente muito comum que a pena privativa de liberdade venha acompanhada de outras penas (ilegais e inconstitucionais), como a humilhação, a tortura, o tratamento cruel e degradante, visível nas condições de carceragem, com efeitos psicológicos traumáticos e com seriíssimas conseqüências para as pessoas diretamente atingidas – o próprio preso e seus familiares –, que podem vir a padecer de um sofrimento mental para toda vida, como uma pena perpétua da qual nunca se livrará.

Este é o ponto a que queríamos chegar: a "inofensiva" tornozeleira (que, dirão alguns, pode ser escondida debaixo da calça comprida, desde que a pessoa nunca tire a calça, não o sujeitará à humilhação pública, mas só à privada), sem esquecer a pulseira, a tornozeleira ou a coleira, que guardam um caráter de humilhação pública de absurda inconstitucionalidade, significa, também, o cárcere dentro da cabeça, que guarda conseqüências psicológicas desconhecidas, que podem levar o sofrimento a dimensões muito além da pena prevista. Outra vez, n]ao há previsão legal, o que nos faz voltar no tempo à segunda metade do século XVIII, ou até mesmo antes.

Parecendo sair de um triste romance de ficção, uma das várias distopias (como 1984, de George Orwell) do século passado, o uso de tornozeleiras, braceletes ou coleiras mostra a insensibilidade de um mundo da superficialidade, onde as pessoas desconhecem que a pior cadeia é aquela que acontece dentro da sua cabeça, ou, para quem acredita, aquela que aprisiona sua alma.

Em um mundo onde as pessoas temem mudar e, para conservar as suas quinquilharias, defendem a destruição de pessoas, assistimos patéticos amedrontados a construção de teias de controle e repressão que muito em breve se voltarão contra todos. Basta olharmos a história, quer a recente, quer a mais distante. A medida olha para o futuro, só que pelo retrovisor!

A questão não se limita a uma tornozeleira, mas, principalmente, ao fato de que este é mais um passo dentro de um sistema inviável de controle, consumo e repressão: qual será o próximo passo? Depende de nós que este passo não seja dado, para que então o próximo passo não seja ainda mais para trás, nos retirando ainda mais a dignidade do humano.

Coitados desses poderosos coitados. Pensam que podem fazer justiça social com direito penal.


Nota

01 Se quisermos vagas nos presídios temos que soltar sua população e gerar inclusão social, econômica e cultural, antes de estigmatizar uma revisão geral de todas as condenações a penas privativas de liberdade, para não amedrontarmos você com um pedido de anistia ampla.

Sobre os autores
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Virgílio de Mattos

Doutor em Criminologia na Itália

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros; MATTOS, Virgílio. O cárcere dentro da cabeça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1757, 23 abr. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11186. Acesso em: 22 nov. 2024.

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