5. CAUSAS SINDICAIS: UM NOVO ENFOQUE?
As modificações impostas pela EC 45/2004 foram, de fato, profundas, e não se restringiram ao Direito Individual do Trabalho; em verdade, abrangeram também o Direito Coletivo do Trabalho, e, incluso neste ramo, as causas sobre representação sindical (vide o novo art. 114, III, da CRFB).
5.1. Uma filigrana gramatical
O aspecto polêmico, que tem gerado certa cizânia doutrinária, está, literalmente, em uma vírgula. Assim é o texto do art. 114, III, da CRFB: "as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores".
A vírgula existente entre as expressões "representação sindical" e "entre sindicatos" sugeriria, segundo alguns, que a Justiça do Trabalho agora seria competente para processar e julgar
- todas as ações sobre representação sindical;
- todas as ações entre sindicatos;
- todas as ações entre sindicatos e trabalhadores;
- todas as ações entre sindicatos e empregadores [38].
Esta é a forma pura e simples da aplicação da interpretação gramatical (ou literal), isto é, baseada exclusivamente no texto escrito, mas desconsiderando suas implicações. Ora, a razoabilidade e o bom-senso que a Ciência Jurídica exige para a boa execução das normas, supõe que essa modalidade de interpretação não pode ser aplicada isoladamente; as regras de Hermenêutica exigem que o intérprete considere o sistema em que a norma se insere (interpretação sistemática), os precedentes que teriam dado origem à norma (interpretação histórica), bem como os fins a que a norma servirá (interpretação teleológica).
Havendo a consideração dos parâmetros acima, é possível concluir que a EC 45/2005 não encarregou a Justiça Trabalhista de julgar todas as ações entre sindicatos, ou entre sindicatos e trabalhadores, ou entre sindicatos e empregadores. Isso seria desprezar totalmente a especialização deste ramo do Judiciário. Imagine-se, por exemplo, o absurdo de um Juiz do Trabalho apreciar uma divergência em um contrato de locação predial, simplesmente porque as partes contratantes são dois sindicatos. Ou ainda, o Juiz do Trabalho julgando uma ação de responsabilidade civil ajuizada por um trabalhador que, de passagem nas dependências do seu sindicato de classe, acidentou-se por ter escorregado em piso molhado.
É óbvio que não é neste sentido que a EC 45/2004 quis inovar.
A interpretação correta e adequada do novo art. 114, III, da CRFB, é no sentido de considerar a Justiça Laboral competente para o julgamento das ações que versarem sobre representação sindical, quando surgirem divergências, no que concerne a esta representação, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores e entre sindicatos e empregadores.
Assim, competirá ao Juiz do Trabalho, a título de exemplo, processar e julgar a ação de consignação em pagamento ajuizada pelo empregado que tem dúvida sobre a entidade sindical legítima para receber parcelas devidas por integrantes da categoria. Da mesma maneira, os conflitos sobre eleições sindicais, como questionamentos de inscrições de candidatos, provimentos emergenciais no curso do processo eleitoral ou a impugnação de resultados [39]. Observe-se: todas essas hipóteses tratam sobre representação sindical.
5.2. Adequação necessária
Estabelecido o balizamento interpretativo do novo art. 114, III, da CRFB, cumpre comentar a tomada de rédeas do feixe de matérias trabalhistas nas mãos da Justiça do Trabalho, promovida pela EC 45/2004.
Decerto, para os atores e estudiosos desse ramo do Direito e do Judiciário causava algum desconforto o fato de ações sobre representação sindical, matéria claramente ínsita ao Direito Sindical (e, por conseqüência, no Direito Coletivo do Trabalho) serem julgadas na Justiça Comum. E isto acontecia por conta da falta de previsão constitucional; o texto antigo do art. 114 fazia referência apenas a "dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores", o que realmente não deixava margem para interpretações extensivas.
Ressalte-se que a competência da Justiça Comum para apreciar as diversas ações sobre representação sindical já era assunto pacificado, tanto no Superior Tribunal de Justiça (vide Súmulas nº 4 [40] e nº 222 [41]) quanto no próprio Tribunal Superior do Trabalho (vide Orientação Jurisprudencial nº 4, da Seção de Dissídios Coletivos [42], cancelada em 18/10/2006, e Orientação Jurisprudencial nº 290, da Seção de Dissídios Individuais 1 [43], cancelada em 05/07/2005).
Entretanto a EC 45/2004 veio corrigir este equívoco. Diz o ditado bíblico: "dai a César o que é de César"; foi isso que a Emenda fez: entregou ao ramo especializado da Justiça do Trabalho o processamento e julgamento de ações sobre uma matéria que lhe é íntima desde os primórdios de sua criação e que, ironicamente, nunca teve o poder de apreciar.
Difícil dizer se o olhar mais habituado do magistrado trabalhista sobre a representação sindical implicará em um enfoque diferenciado acerca dessas questões, eis que julgar já deixou de ser um ato de mero silogismo legal, no sentido de simplesmente aplicar a lei ao caso concreto; hodiernamente (provavelmente, sempre foi assim), o exercício da atividade jurisdicional ultrapassa este simples silogismo, de modo que o Juiz também descarregue nas causas em que atua os reflexos de sua criação familiar, de suas concepções sociais, religiosas e culturais, e, porque não dizer, de suas idiossincrasias.
Desta forma, se haverá mesmo mudanças jurisprudenciais significativas acerca das causas sobre representação sindical, somente o tempo responderá. Porém, o certo é que houve um verdadeiro e necessário ajuste no sistema jurisdicional pátrio, para finalmente entregar o processamento e julgamento das ações sobre representação sindical ao Órgão adequado: a Justiça do Trabalho.
6. DISSÍDIOS COLETIVOS: MANUTENÇÃO OU DIMINUIÇÃO DE PODER?
Ainda na esteira das modificações introduzidas pela EC 45/2004 no que concerne ao Direito Coletivo do Trabalho, aborda-se, finalmente, os seus reflexos nos dissídios coletivos.
6.1. Breve conceito e classificação
A fim de estabelecer um melhor aproveitamento acerca do assunto em tela, cumpre trazer à baila o que a doutrina entende sobre o que vem a ser dissídio coletivo, bem como sua classificação.
Segundo a melhor doutrina, dissídio coletivo de trabalho é ação judicial coletiva, cuja legitimidade é conferida a certos entes coletivos (em geral, sindicatos), para a defesa de interesses dos grupos ou categorias econômicas os quais estes entes representam, visando à criação ou à interpretação de normas que incidirão no âmbito dessas categorias [44].
Quanto à classificação, o dissídio coletivo pode ser de natureza econômica ou de natureza jurídica.
Dissídio coletivo de natureza econômica é aquele no qual há a reivindicação de novas e melhores condições de trabalho (tais como reajustes salariais), e, geralmente, seu ajuizamento provém de negociações coletivas fracassadas, as quais as partes não chegaram a um consenso. Já no dissídio coletivo de natureza jurídica, o objetivo é a declaração judicial sobre o sentido de um contrato coletivo ou de uma ou mais cláusulas de um contrato coletivo, ou ainda sobre a execução de uma norma que uma das partes não esteja cumprindo [45].
Aponta-se ainda o dissídio coletivo de natureza mista, sendo aquele que atende às funções de criação e de interpretação de normas, como, por exemplo, quando, em caso de greve, não se limita à declaração de abusividade ou não do movimento paredista, estendendo o pronunciamento judicial aos pedidos da pauta de reivindicações [46].
6.2. "De comum acordo": o fim do poder normativo?
O dissídio coletivo, da forma como foi concebido no Direito Brasileiro, dá origem a uma sentença normativa, a qual, ao contrário da sentença clássica (que traduz a aplicação da norma jurídica sobre uma relação fático-jurídica existente), constitui ato judicial criador de regras gerais, impessoais, obrigatórias e abstratas; seria lei em sentido material, embora se exteriorize como ato judicial [47].
A sentença normativa é algo sui generis no sistema jurídico brasileiro, e traduz uma prerrogativa exclusiva do Judiciário Trabalhista. Surgida na década de 1940, em pleno período autoritário do Governo Getúlio Vargas, foi símbolo da política de intervenção estatal nas relações coletivas de trabalho. Não obstante, o poder normativo da Justiça do Trabalho permaneceu em pleno vigor desde a sua criação, sendo reafirmado pela Constituição Democrática de 1988, em seu art. 114, §2º.
Provavelmente isto ocorreu pelo fato de que os objetivos do poder normativo foram se transmutando ao longo dos anos: de um instrumento para o controle do Estado sobre as negociações coletivas (servindo, muitas vezes, para frustrar movimentos grevistas), tornou-se uma arma para a efetivação dos direitos das categorias profissionais, bem como um recurso defensivo a ser utilizado pelos entes sindicais sem força suficiente para sustentar as enormes pressões das empresas de grande poder econômico.
Pois bem, a EC 45/2004 trouxe nova redação ao art. 114, §2º, da CRFB, para estabelecer que, caso as partes se recusem à negociação coletiva ou à arbitragem, têm elas a faculdade de, "de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente".
Antes da EC 45/2004, para a instauração de dissídio coletivo era necessário, dentre outros requisitos, que tivesse havido negociação coletiva prévia frustrada, e qualquer das partes poderia ajuizá-lo. Entretanto, a novel expressão "de comum acordo" causou perplexidade.
Em princípio, quer parecer que somente quando houver um comum acordo entre as partes é que o dissídio coletivo seria cabível. Contudo, tal interpretação traz conseqüências nefastas para o sistema jurídico-trabalhista e para as próprias relações coletivas de trabalho, conforme se verá.
Primeiramente, forçoso destacar que a imposição de um comum acordo entre as partes adversas da negociação coletiva para a propositura de dissídio coletivo é uma enorme contradição, eis que, se houvesse real perspectiva de acordo espontâneo, inexistiria a necessidade de provocação do Poder Judiciário [48].
Ademais, a imposição do comum acordo, como condição da ação, deixaria as partes impossibilitadas de recorrer ao Judiciário, bastando para isso que a parte não interessada em resolver o conflito se recusasse a ajuizar o dissídio em conjunto com a outra parte. E isso infringe frontalmente o disposto no art. 5º, XXXV, da CRFB, o qual dispõe que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito".
Ora, tal imposição é, ainda, logicamente insustentável, pois seria o mesmo que pedir permissão ao réu para acioná-lo, o que é absurdo. Acabar-se-ia criando uma estranha forma de "arbitragem judicial compulsória".
Não foi essa a mens legis da EC 45/2004. O novo art. 114, §2º, da CRFB deve ser interpretado de maneira sistemática, compatibilizando-se com o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CRFB), com os princípios justrabalhistas da norma e da condição mais benéfica ao trabalhador, bem como com todo o cabedal de normas trabalhistas protetivas. Em verdade, o novo dispositivo prima pela valorização da negociação coletiva, uma vez que possibilita aos entes coletivos mais uma forma de solução dos conflitos, sem extinguir as pré-existentes.
Diz-se isto levando-se em conta que o novo art. 114, §2, faculta às partes ajuizar dissídio coletivo de comum acordo. Isto é, se as partes desejarem, ajuizarão dissídio coletivo em conjunto, estabelecendo o Tribunal, como sempre fez de forma imparcial e técnica, as normas a serem obedecidas pelas partes; se não desejarem, não precisam ajuizar em conjunto, mas permanece vivo o direito de ação da entidade que quiser exercê-lo.
6.3. Extinção do dissídio coletivo de natureza jurídica?
O leitor mais atento, observará que o reformado art. 114, §2º, da CRFB, traz apenas a expressão "dissídio coletivo de natureza econômica", aparentemente ignorando os de natureza jurídica e mista.
O intérprete mais afoito, e certamente desejoso do fim do poder normativo da Justiça do Trabalho, apressar-se-ia em alardear a extinção dos dissídios coletivos de natureza jurídica, e até mesmo a vedação de ajuizamento dos dissídios de natureza mista, pelo simples fato de sua omissão no texto constitucional.
É claro que esse entendimento tacanho, simplista, restritivo e pouco abalizado não pode prosperar. Há de se recorrer novamente às modalidades de interpretação jurídica, a fim de resolver o aparente impasse.
A história do Direito e da Justiça do Trabalho mostra que tais institutos sempre se prestaram a mediar e decidir os conflitos laborais coletivos, e seguindo este parâmetro, foram se erguendo as bases do sistema jurídico-trabalhista pátrio, através dos dissídios coletivos e do poder normativo. Ora, se a EC 45/2004 chancelou o dissídio coletivo de natureza econômica, que é muito mais impactante nas relações sindicais, eis que estabelecem normas na maioria das vezes de cunho econômico-financeiro a serem seguidas, terá preservado, ainda que nas entrelinhas, o dissídio coletivo de natureza jurídica, que visa meramente a fixar a interpretação de normas pré-estabelecidas. Afinal, diz o antigo brocardo: quem pode mais, pode menos.
Certo é que o poder da Justiça Laboral de solucionar e normatizar conflitos coletivos, quaisquer que sejam suas naturezas (econômico, jurídico ou misto) não pode ser obstado por uma interpretação restritiva à nova redação do art. 114, §2º, da CRFB [49].
Em verdade, o que a Emenda pretendeu, ao limitar a opção do "comum acordo" aos dissídios coletivos de natureza econômica, foi evitar que a Justiça do Trabalho se transforma-se em um órgão consultivo das partes divergentes. O dissídio de natureza jurídica se presta somente para dirimir conflitos interpretativos; se não há conflitos, inexiste razão para o ajuizamento em conjunto.
Outro objetivo (político, poder-se-ia dizer) para tal vedação foi aproximar as entidades sindicais, fomentando as discussões entre elas e promovendo, indiretamente, o incentivo ao desenvolvimento da negociação coletiva.