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O abono de permanência dos servidores públicos

A anulação do abono de permanência, como tem ocorrido no Estado de Mato Grosso do Sul, viola importantes garantias jurídicas.

a) Inicialmente, foram claramente inobservadas as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

Realmente, os abonos de permanência, depois de todo o processamento devido, foram deferidos pela autoridade estadual, no ano de 2006, retroativos a janeiro/2004, passando, a partir de então, a integrar a remuneração dos servidores públicos (Delegados da Polícia Civil). Entretanto, mediante a publicação do ato coator, subtraiu-se, abruptamente, o valor dessa importante verbal salarial de seus vencimentos, sem oportunizar-lhes qualquer manifestação prévia, sem instaurar-se novo processo para anulação da decisão já tomada e publicada, enfim, SEM GARANTIR AOS SERVIDORES O EXERCÍCIO DO DIREITO DE DEFESA NA ESFERA ADMINISTRATIVA.

A propósito, a doutrina especializada esclarece que "... para o desfazimento do ato que tenha repercutido na esfera patrimonial do cidadão, deve haver processo administrativo (devido processo legal), com oportunidade de manifestação prévia do interessado, o que, aliás, está assentado em jurisprudência" (João Batista Gomes Moreira, "Direito Administrativo: da rigidez autoritária à flexibilidade democrática", Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2005, p. 273).

Realmente, o apontamento doutrinário vem sendo consagrado pela jurisprudência do STF e STJ, a saber:

"ATO ADMINISTRATIVO – REPERCUSSÕES – PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE – INTERESSES CONTRAPOSTOS – ANULAÇÃO – CONTRADITÓRIO. Tratando-se de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, a anulação não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que enseje a audição daqueles que terão modificada situação já alcançada. Presunção de legitimidade do ato administrativo praticado, que não pode ser afastada unilateralmente, porque é comum à Administração e ao particular" (STF, 2ª T., RE 158.543/RS, rel. Min. Marco Aurélio, DJU 06/10/95, p. 33.135).

"CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ANISTIA. ATO ADMINISTRATIVO. REVISÃO. DEVIDO PROCESSO LEGAL. (...) 2. A instauração de processo administrativo para anular atos sob a fundamentação de terem sido praticados com vícios insanáveis deve, contudo, em homenagem aos princípios norteadores do regime político democrático, seguir, com todo rigor, o devido processo legal (art. 5º, LV, da CF). 3. O Superior Tribunal de Justiça, no trato da questão, ao apreciar o ROMS nº 737/90-RJ, 2ª Turma, relatado pelo eminente Ministro Pádua Ribeiro, assentou que ‘Servidor Público. Ato Administrativo. Ilegalidade. I – O poder de a administração pública anular seus próprios atos não é absoluto, porquanto há de observar as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório. II – Recurso ordinário provido’ (ROMS nº 737/90, 2ª Turma, DJU de 6.12.1993). 4. Mandado de segurança concedido" (STJ, 1ª Seção, MS nº 5,283/DF, rel. Min. José Delgado, DJ de 08/03/2000, p. 39).

b) Dos atos administrativos que concederam o direito ao abono de permanência aos servidores constouo seguinte resumo: "DEFIRO o pedido de Abono de Permanência, com fulcro no artigo 75, §3º, da Lei nº 3.150/2005". Já o ato coator, que anulou os benefícios, foi assim divulgado: "ANULAR o despacho do Secretário de Gestão Pública, publicado no Diário Oficial n. 6.790, de 16 de agosto de 2006, que deferiu o pedido de abono de permanência dos servidores ... por contrariar os dispositivos constantes no art. 75 da Lei n. 3.150, de 22 de dezembro de 2005, combinado com a Resolução n. 373, de 19 de maio de 2005, caput do art. 37 da Constituição Federal e Súmula n. 473 do Supremo Tribunal Federal". Assim, o mesmo dispositivo legal foi, erroneamente, utilizado tanto para conceder quanto para revogar o benefício devido aos servidores.

Na verdade, olvidou a Administração que o direito dos servidores está previsto, de forma expressa, na própria Lei Estadual nº 3.150/05, bem como na legislação específica, que prevê o direito à aposentadoria especial do policial civil (dentre os quais, encontram-se os Delegados de Polícia). Preceitua o art. 75: "O segurado ativo que tenha completado as exigências para aposentadoria voluntária estabelecida nos art. 41 e 71, que opte por permanecer em atividade, fará jus a um abono de permanência equivalente ao valor da sua contribuição previdenciária até completar as exigências para aposentadoria compulsória". O mencionado art. 41, em seu § 1º, aduz que "Os requisitos de idade e tempo de contribuição previstos neste artigo serão reduzidos em cinco anos, para o professor que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício da função de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio, observado quanto aos policiais civis a lei complementar federal que dispõe sobre a aposentadoria especial".

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Por força do art. 147, § 1º, da LCE 114/05 ("À aposentadoria dos integrantes das carreiras da Polícia Civil do Estado de Mato Grosso do Sul, tendo em vista a natureza de suas atribuições que impõem condições especiais de exercício que implicam risco de vida e da integridade física, aplicam-se as disposições da Lei Complementar Federal n° 51, de 20 de dezembro de 1985, com fundamento no § 4º do art. 40 da Constituição Federal"), a aposentadoria voluntária dos membros da Polícia Civil é disciplinada pelo art. 1º, da LC 51/85, segundo o qual "Art.1º - O funcionário policial será aposentado: I - voluntariamente, com proveitos integrais, após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte, pelo menos 20 (vinte) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial".

Ora, os documentos comprovam que os servidores, quando requereram o abono de permanência, já dispunham de mais de 30 anos de contribuição e 20 na carreira policial, razão pela qual obtiveram decisão favorável aos seus pleitos.

Assim, se o abono de permanência é direito do servidor que tenha condições de aposentar-se, na forma do art. 41, mas opte por permanecer em atividade, e tendo o § 1º, do mesmo art. 41, ressalvado o direito dos policiais civis ao abono, observadas as regras próprias da aposentadoria especial (pelo exercício de atividade que implica risco de vida e da integridade física), clara a ilegalidade da decisão que retirou dos servidores o direito ao abono de permanência.

Em razão de todos os dispositivos invocados, especialmente da Lei Estadual nº 3.150/05, que no art. 41, § 1º, determina que, relativamente ao abono de permanência, seja "observado quanto aos policiais civis a lei complementar federal que dispõe sobre a aposentadoria especial", não subsiste o fundamento constante do ato aqui examinador, no sentido de que "Por conseqüente, a legislação estadual não contempla a concessão do abono para servidores cuja elegibilidade para aposentadoria encontra fundamento expresso em legislação especial ... ", POIS, AO CONTRÁRIO, O PAGAMENTO DA REFERIDA VERBA AOS MEMBROS DA POLÍCIA CIVIL, QUE POSSUEM DIREITO À APOSENTADORIA ESPECIAL, ESTÁ EXPRESSAMENTE RESSALVADO NA LEGISLAÇÃO.

A legislação estadual, como se vê, CONFIRMA o direito já consagrado na Constituição Federal (o servidor que possui direito à aposentadoria voluntária, caso opte por permanecer no cargo público que ocupa, tem o direito de receber o valor correspondente à sua contribuição previdenciária, a título de abono de permanência). Os servidores possuem direito de aposentar-se (algo admitido pelo Estado, quando concedeu os abonos), continuam exercendo a penosa função policial, mas, em razão de ato ilícito praticado pela autoridade, não estão mais recebendo o benefício que lhes foi legal e constitucionalmente garantido.

Mitigado restou, então, definitivamente, o Princípio Constitucional da Legalidade, havendo que se conduzir a questão toda à sua normalidade.

c) O fato dos servidores terem direito à aposentadoria especial, repita-se, em nada altera a garantia de pagamento do abono de permanência, pois a ressalva consta expressamente da legislação, e, além disso, a jurisprudência do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de longa data, vem acolhendo, reiteradamente, pedidos como os que deverão ser formulados perante o Judiciário, a saber:

"PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA ESPECIAL. ABONO DE PERMANÊNCIA. Implementado o tempo de serviço para aposentadoria especial, e optando o segurado pelo prosseguimento da atividade, faz jus ao abono de permanência. Recurso não conhecido" (REsp 174.191/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 17.12.1998, DJ 17.02.1999 p. 161);

"AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO ESPECIAL. APOSENTADORIA ESPECIAL. DIREITO A APOSENTADORIA. PROSSEGUIMENTO NA ATIVIDADE. ABONO. PERMANENCIA. TEM DIREITO AO ABONO O SEGURADO QUE OPTAR PELA PERMANENCIA EM SERVIÇO, CASO JA TENHA DIREITO A APOSENTADORIA ESPECIAL POR DESENVOLVER ATIVIDADE INSALUBRE. PRECEDENTES. AGRAVO DESPROVIDO" (AgRg no Ag 175.798/SP, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 07.05.1998, DJ 15.06.1998 p. 163);

"PREVIDENCIARIO - RECURSO ESPECIAL - ABONO DE PERMANENCIA - APOSENTADORIA EM TEMPO REDUZIDO. 1. "NA APOSENTADORIA COM TEMPO REDUZIDO, OU ESPECIAL, HA UMA EQUIPARAÇÃO DESSE TEMPO AQUELE DA APOSENTADORIA NORMAL, PELO QUE DEVIDO O ABONO DE PERMANENCIA, QUANDO O SEGURADO PREFERE CONTINUAR NO EXERCICIO DE SUA ATIVIDADE." 2. RECURSO NÃO CONHECIDO" (REsp 52.276/SP, Rel. Ministro ANSELMO SANTIAGO, SEXTA TURMA, julgado em 14.02.1995, DJ 27.03.1995 p. 7201);

"PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA ESPECIAL. ABONO DE PERMANÊNCIA. DECRETO 89.312/84, ART. 34. O segurado que já tenha implementado tempo de serviço necessário à aposentadoria especial, se optar por permanecer em atividade, faz jus ao abono de permanência. Precedentes. Recurso não conhecido" (REsp 204.960/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 14.12.1999, DJ 14.02.2000 p. 60).

d) Observe-se, outrossim, que o ato examinado contraria o próprio INTERESSE PÚBLICO. Ora, o constituinte derivado, bem como o legislador estadual, visaram estimular o servidor que teria direito de aposentar-se a permanecer na prestação de seus serviços ao órgão público a que estiver vinculado, oferecendo-lhe uma compensação (abono de permanência), visando desonerar o órgão de previdência, aproveitando um funcionário habituado e experiente, evitando, ainda, as grandes despesas decorrentes do suprimento dos cargos vagos, através de novo concurso público. HELY LOPES MEIRELLES é claro ao delimitar os atos sujeitos à invalidação, ao lecionar que "a finalidade terá sempre um objetivo certo e inafastável de qualquer ato administrativo: o interesse público. Todo ato que se apartar desse objetivo sujeitar-se-á a invalidação por desvio de finalidade ..." ("Direito Administrativo Brasileiro", 22ª ed., p. 85), lição esta inteiramente aplicável ao caso sob exame.

e) A situação toda também se vincula ao princípio da moralidade. Com efeito, não se pode, sob pena de violação desse magno princípio jurídico, LOCUPLETAR-SE À CUSTA DO TRABALHO ALHEIO (já que os servidores poderiam estar aposentados, mas preferiram continuar prestando serviço público, mas não mais recebem o acréscimo pecuniário respectivo), sendo certo que "é regra geral, inserta no sistema jurídico pátrio, a que proíbe a locupletação à custa de outrem" (JTJ-Lex 157/11).

f) O ato em discussão também deixou de observar a noção jurídica da razoabilidade, princípio constitucional implícito (assim definido pela doutrina de LUIS ROBERTO BARROSO: "o princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça" – "Interpretação e Aplicação da Constituição", São Paulo: Saraiva, 1996, p. 204/205), porque não é justo (nem muito menos razoável) que os servidores permaneçam laborando, mesmo tendo direito à aposentadoria voluntária, e deixem de receber o benefício legalmente previsto.

g) Os servidores, após tantos anos dedicados à penosa e perigosa função policial, e diante de suas decisões de sobrestarem suas aposentadorias, para permanecerem servindo ao Estado, nunca esperavam que, ao invés de auferirem aquilo que lhes é devido, receberiam como resposta de gratidão do Poder Público atos contrários à legislação, que abalam situações funcionais estáveis e resolvidas.

Assim, atuando da forma como aqui se questiona, a autoridade também olvidou, às completas, da noção de que "a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça material" (STF, MC 2.900/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 08.04.03). Sim, aponta-se violação do princípio da SEGURANÇA JURÍDICA (intimamente vinculado ao direito adquirido) porque os servidores sempre acreditaram que teriam seus direitos preservados, tanto que não se aposentaram, optando por permanecer na ativa. Mas acabaram não vendo observado esse direito que é líquido, tranqüilo e certo, contrariando-se, a mais não poder, a lição consagrada dos doutos (Geraldo Ataliba, "República e Constituição", RT, 1985, p. 158), quanto a que o "O Direito é por excelência, acima de tudo, instrumento de segurança", bem como que "A surpresa é radicalmente repugnante aos postulados do Estado de Direito".

Ademais, e essencialmente, parece mesmo ser "INCONCEBÍVEL QUE UM ESTADO DEMOCRÁTICO, QUE ASPIRE REALIZAR A JUSTIÇA, ESTEJA FUNDADO NO PRINCÍPIO DE QUE O COMPROMISSO PÚBLICO ASSUMIDO PELOS SEUS GOVERNANTES NÃO TEM VALOR, NÃO TEM SIGNIFICADO, NÃO TEM EFICÁCIA" (STJ, REMS 6183-MG, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 08.12.95). Acreditaram os servidores que, permanecendo na ativa, receberiam o benefício salarial aludido, mas foram fragorosamente desatendidos, o que exige a atuação do Judiciário, que saberá fazer prevalecer o que é certo em detrimento do abuso.

Sobre os autores
Angelo Sichinel da Silva

advogado em Campo Grande(MS)

André Luiz Borges Netto

advogado constitucionalista em Campo Grande (MS), professor universitário, mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Angelo Sichinel; BORGES NETTO, André Luiz. O abono de permanência dos servidores públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1912, 25 set. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11765. Acesso em: 2 nov. 2024.

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