6. HERMENÊUTICA FILOSÓFICA
Com o intuito de romper a carapaça ideológica até então vigente, da interpretação clássica reprodutiva, Martin Heidegger, filósofo alemão, edita sua obra Ser e Tempo (1927), inaugurando uma nova forma de ver a hermenêutica, a partir da faticidade, ou seja, é preciso verificar, antes de interpretar, a própria condição de ser-no-mundo.
Heidegger passa a enfocar o ser enquanto ser e não mais os fundamentos epistemológicos das ciências humanas até então tratados. Orienta seus estudos a partir da ontologia e não mais pela epistemologia, inserindo filosofia na questão hermenêutica.
O ilustre filósofo alemão propôs uma verdadeira superação da cultura/visão objetivista que predominava até meados do século passado. Hans-Georg Gadamer, discípulo mais ferrenho de Heidegger, chama a atenção de que:
Com isso conquista-se a idéia da "fenomenologia", ou seja, a desvinculação de toda posição do ser e a investigação dos modos subjetivos de as coisas se darem, transformando-a num programa universal de trabalho que deveria permitir a compreensão de toda objetividade, de todo sentido do ser. Agora, também a subjetividade humana possui validez ontológica. Também ela deve ser vista como "fenômeno", ou seja, deve ser examinada em toda a variedade de seus modos de doação [21].
Na verdade, Heidegger quer interpretar a partir da vida, na posição anterior à objetividade da ciência. Isso leva a faticidade da pré-sença, ponto de partida da ontologia fundamental do filósofo.
Essa base ontológica ressuscita o tema do ser, deixando a metafísica de lado e passando a compreender as coisas enquanto elas mesmas. Como salienta Streck [22]: "a compreensão é entendida como a estrutura ontológica do Dasein (ser-aí ou pré-sença), onde o Da (o aí) é como as coisas, ao aparecerem, chegam ao ser, não sendo esse modo uma propriedade do ser, mas, sim, o próprio ser".
Quer dizer, a compreensão deixa de ser a simples observação do sujeito e seu objeto, passando a ser a relação entre sujeito e sujeito, a partir de sua condição histórica. Há uma fusão entre sujeito e objeto onde a produção substitui a reprodução, com o uso da linguagem.
Nesse contexto que Heidegger propõe/provoca um deslocamento da hermenêutica, revelando que pela compreensão, pela historicidade e pela linguagem se consegue quebrar os paradigmas das condições prévias nas interpretações de textos, inserindo pensamento e atividade humana no processo interpretativo. Gadamer [23] enfatiza que: "não há compreensão ou interpretação que não implique a totalidade dessa estrutura existencial, mesmo que a intenção do conhecedor seja apenas ler "o que está aí" e extrair das fontes "como realmente foi".
Percebe-se que o método proposto por Heidegger não se trata de um método como procedimento formalista, mas, sim, algo que está sob constante revisão/evolução, na medida em que existam exigências de cada caso, de tal modo que todo o pensamento pode ser considerado uma interpretação, pois desenvolve uma dimensão prévia: a existencial.
Ao analisar tal método, Ernildo Stein enfatiza que:
Agora o compreender é um compreender que se constitui como totalidade, porque é compreender o mundo, mas não de um mundo como um continente de conteúdos, mas de um mundo que é a própria transcendência. Este mundo ao mesmo tempo somos nós e projetamos sobre tudo o que deve se dar. [...] Estamos envolvidos com os objetos do mundo e descrevemos o mundo no qual se dão os objetos [24].
Essa é a principal característica da "nova" hermenêutica proposta por Heidegger e seguida por Gadamer. Enquanto as hermenêuticas clássica e crítica se ocupavam em interpretar textos prontos, postos por escritores, por vezes, há muito falecidos, a filosófica propõe uma nova visão de mundo, ou melhor, de estar no mundo.
A hermenêutica filosófica traz, portanto, uma nova forma de compreender, não mais como modo de conhecer, mas como modo de ser. Observa-se, em Heidegger, que não há mais aquela compreensão pura - defendida pelos clássicos -, da busca do espírito do texto ou das intenções de quem fez o texto, mas, sim, uma compreensão ligada às condições e ao modo de ser-no-mundo, da faticidade.
6.1 A VIRAGEM LINGÜÍSTICA: INTERPRETAR É COMPREENDER
Antes de adentrar na questão da viragem lingüística, ocorrida por volta dos anos de 1958 a 1960, cumpre analisar o Direito como forma de linguagem.
Comunicação é interação, é produzir mensagens da melhor forma possível para ser entendido. Tais mensagens constituem-se em signos que possuem seus respectivos significados na medida e ocasião em que são usados.
Assim se dá com a linguagem, eis que esta é o meio com o qual pessoas se comunicam. A linguagem é formada por inúmeros signos que formam significados. Essa é a conclusão de Wiliam Alston [25] ao aduzir que: "O signo é um sinal, integrado a um código de sinais que é a língua, que traduz a união de uma imagem acústica (o significante) a um conceito (o significado)".
No Direito, os signos são produzidos em forma de leis e seus significados são desvelados na medida em que a lei é aplicada. Pode-se dizer, dessa forma, que as leis são signos latentes que terão, através da linguagem, seus significados desvendados.
A linguagem no Direito é encontrada facilmente em postulados jurídicos, como a linguagem do silêncio, que implica liberdade; a linguagem da legalidade, encontrada, principalmente, no inciso III, do artigo 5° [26], da nossa Constituição Federal, entre outros inúmeros exemplos. Sem linguagem a vida social e, conseqüentemente, a vida jurídica não existiriam. É de Aristóteles [27] a idéia de que o homem é um animal cuja vida se desenrola na comunidade política. Questiona-se: como haver comunidade política sem comunicação? Além disso, como haver comunicação sem linguagem?
A questão lingüística ganhou maior importância a partir do século XX, quando passou a ser vista como condição de acesso ao mundo. A partir de Heidegger houve uma reviravolta no seu uso, mormente no universo jurídico, quando deixou de ser considerada como meio entre sujeito e objeto, passando a assumir a condição de existência do intérprete, quer dizer, o intérprete é alguém inserido na linguagem.
A viragem lingüística se desenvolveu, fundamentalmente, em três fases:
a) a primeira fase é fruto do neopositivismo lógico, oriundo do Círculo de Viena [28], que tinha como escopo à construção de uma linguagem ideal;
b) a segunda etapa foi caracterizada pelo abandono do ideal de exatidão da linguagem;
c) a terceira etapa foi, e ainda é, voltada para o estudo da filosofia da linguagem.
Após a viragem, passou-se a entender a linguagem como um meio universal para compreender, pois pela linguagem há comunicação, interpretação e, conseqüentemente, compreensão. Gadamer [29] chega a afirmar que: "Todo compreender é interpretar, e todo interpretar se desenvolve no medium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do intérprete".
Viragem significa mudança, alteração no modo de ver as coisas, os procedimentos. A partir da viragem lingüística foi possível transferir todo o conhecimento para a linguagem. Quer dizer, esta passou a ser condição de possibilidade para conhecer o ser, pois, como refere Gadamer: "Ser que pode ser compreendido é linguagem". Tal guinada lingüística libertou o conhecimento da pré-compreensão, dos paradigmas e das teorias da consciência.
Nessa senda, a hermenêutica, agora da linguagem, teve um salto na sua importância e no seu significado. Antes vista como meio para entender poemas gregos, para interpretar textos sagrados e para desvendar o sentido dos textos jurídicos, ela passou a se ocupar em compreender, interpretar para, no mesmo tempo, aplicar.
Gadamer afirma que a linguagem, além de ser condição de possibilidade para romper paradigmas, representa experiência humana no mundo e é onde a hermenêutica encontra base para se sustentar. O mesmo autor assegura que:
Na linguagem representa-se o próprio mundo. A experiência lingüística do mundo é absoluta. Ultrapassa toda relatividade do ‘pôr’ o ser, porque abrange todo o ser em si, pouco importa em que relações (relatividades) se mostra. A lingüisticidade da nossa experiência do mundo precede a tudo quanto pode ser reconhecido e interpretado como ente [30].
Deveras, o mundo, o conhecimento e os objetos não podem ser objetos da linguagem, pelo contrário, tudo isso é abrangido/englobado pelo horizonte lingüístico, pelo mundo da linguagem.
Nesse ponto encontra-se o grande diferencial hermenêutico depois que ocorreu a viragem lingüística, pois agora não existe mais paradigmas, pré-juízos imutáveis, tendo em vista que o mundo, feito pela linguagem acontece a cada dia, sem existir a mínima possibilidade de repetições.
Assim, conforme visto anteriormente, o Direito é, também, linguagem, é comunicação social que acontece a cada dia. Não existe um mundo do Direito que possa ser pré-constituído e imutável, assim como não existe um mundo inalterável. Em suma, tudo pode ser revisto e compreendido pela linguagem.
6.2 O CÍRCULO HERMENÊUTICO
A questão interpretativa, proposta pela hermenêutica filosófica, impõe que o intérprete tenha conhecimento do chamado círculo hermenêutico que está, umbilicalmente, ligado à idéia de pré-compreensão.
O círculo trabalha, inicialmente, com a pré-compreensão, ou seja, o momento anterior à confirmação do sentido que advém da historicidade, da pré-sença. Esta seria o ponto de partida para o processo compreensivo que culmina com o desvelamento do sentido.
Essa é a questão mais trabalhada a partir de Heidegger, no que tange a compreensão das coisas, dos seus significados ontológicos, pois antes disso falava-se apenas em círculo de interpretação textual.
O círculo hermenêutico, a partir de Heidegger e Gadamer, trabalha com a condição de ser-no-mundo, ou seja, com a pré-sença, através da pré-compreensão para, posteriormente, através da linguagem, interpretar os acontecimentos e compreendê-los, numa relação sujeito-sujeito onde os objetos serão criados/modificados pelo próprio ser que, por fim, lhe dará sentido.
Tal processo significa um eterno retorno circular, onde o mundo (ou texto) será constantemente alterado em razão das circunstâncias diárias e isso se dá através da linguagem que, consoante visto anteriormente, é condição de possibilidade de acesso ao mundo.
Dessa forma, vê-se que é absolutamente impossível existirem casos iguais, sendo, também, impossível, como salienta Allegretti [31]: "nos banharmos duas vezes nas mesmas águas do mesmo rio. No momento seguinte, não seremos mais os mesmos, nem o rio será o mesmo."
Isso nos dá a exata idéia da compreensão do ser em Heidegger, pois, para este autor, a compreensão nada mais é do que a compreensão do sentido naquele caso específico e não da forma como foi compreendido em casos anteriores. E essa nova compreensão nos dará uma pré-compreensão para casos posteriores onde teremos novos sentidos e novas compreensões.
Ernildo Stein faz uma análise das mudanças geradas pelo desvelamento do círculo hermenêutico, referindo que:
Antes a hermenêutica era o compreender de textos, compreender determinados universos culturais, era, no fundo, um interpretar que tratava de objetos. Agora o compreender é um compreender que se constitui como totalidade, porque é um compreender do mundo, mas não de um mundo como um continente de conteúdos, mas de um mundo que é a própria transcendência. Este mundo ao mesmo tempo somos nós e projetamos sobre tudo o que deve se dar. Assim vai-se formar a chamada estrutura da circularidade. [...] Estamos envolvidos com os objetos do mundo e descrevemos o mundo no qual se dão os objetos [32].
Interpretar, assim, não é mais partir de um ponto zero, mas, de uma pré-compreensão que envolve a nossa própria relação com o mundo, com todo o texto. E esta pré-compreensão nos dará subsídios para compreender e, conseqüentemente, aplicar. Eis o círculo, algo que vai da pré-compreensão do todo para a compreensão das partes.
6.3 A APPLICATIO GADAMERIANA
Pelo que foi visto até agora, percebe-se que Gadamer preocupa-se em investigar o problema hermenêutico por um viés filosófico e não procedimental. Utiliza a hermenêutica como técnica para compreender, sendo a pré-compreensão a primeira das suas condições de possibilidade.
Ao intérprete cabe utilizar suas pré-compreensões que estão imersas nas tradições, adequadamente, sem ficar preso à pré-juízos, para interpretar e compreender. Para Gadamer a interpretação não é um ato posterior à compreensão, mas, sim, compreender é sempre interpretar, ou seja, as duas coisas acontecem ao mesmo tempo.
O próximo momento trabalhado por Gadamer é a aplicação, ou applicatio, que integra o processo hermenêutico, assim como a interpretação e a compreensão. Gadamer afirma que tudo, ou todo o texto, pode ser compreendido se o intérprete observar a circularidade interpretativa que abrange os três elementos já descritos: compreensão, interpretação e aplicação.
Em Gadamer, percebe-se que o problema metafísico está superado, não existindo um momento igual ao outro, eis que o texto não é compreendido uma única vez, mas a cada instante. Cada situação acontece de maneira distinta na medida em que o intérprete respeite o processo circular hermenêutico. Por isso, quando se chega à compreensão já está na hora de aplicar. Os dois elementos se dão ao mesmo tempo, sendo que quando se aplica já está sendo gerada uma nova pré-compreensão.
A importância da applicatio para o Direito advém não apenas da óbvia circunstância de que o operador jurídico está sempre preocupado com o problema a ser resolvido, mas também ao fato de que norma e caso estão ambos imersos no mundo da vida, da linguagem. Ou melhor, não há norma de "dever-ser" que possa ser primeiro estudada/compreendida para depois ser aplicada. Caso contrário, o intérprete ficaria, diante da norma jurídica, pensando em situações fictícias para conhecer objetos que seriam pré-moldados.
A essência, pois, da applicatio no Direito implica uma visão da norma jurídica que não a considere pronta e acabada. O intérprete realiza um papel importante, ficando à mercê da sempre necessária atuação diante do problema concreto, da esfera fática que circunda a espécie de situação a ser solucionada e da pré-compreensão que envolve o texto da norma.
Nessas circunstâncias a aplicação seria um segundo passo a ser dado após a interpretação, e esta era restrita às palavras da lei, aos pré-juízos, ficando a aplicação, dessa forma, presa a uma pré-compreensão.
Eis as palavras do próprio Gadamer:
Todo escrito é uma espécie de fala alienada, necessitando da reconversão de seus signos à fala e ao sentido. Essa reconversão se coloca como o verdadeiro sentido hermenêutico, uma vez que através da escrita o sentido sofre uma espécie de auto-alienação [33].
Por isso, o mesmo autor [34] diz que: "O horizonte de sentido da compreensão não pode ser realmente limitado pelo que tinha em mente originalmente o autor, nem pelo horizonte do destinatário para quem o texto foi originalmente escrito."
Essa é a tarefa da hermenêutica jurídica, fazer com que os operadores utilizem suas pré-compreensões para, a partir do caso concreto, interpretar e aplicar. A hermenêutica nos dá uma consciência crítica que, se observarmos o horizonte histórico em que estamos inseridos, não ficaremos presos a um conjunto de pré-conceitos dos quais precisamos nos libertar como seres históricos e fáticos que somos.
6.4 O ACONTECIMENTO CONSTITUCIONAL (EXISTÊNCIA E FATICIDADE)
É inegável que, nos últimos anos, o mundo, e por conseqüência o Brasil, é varrido por uma onda neoliberal, de defesa a um Estado mínimo com o acréscimo da regulação. A questão das funções do Estado e do Direito vêm sofrendo alterações significativas, necessitando uma (re)discussão, mormente no que se refere à realização da democracia e dos direitos fundamentais.
O discurso neoliberal de que o Brasil já passou pela modernidade, época em que os direitos fundamentais, principalmente os sociais, teriam sido efetivados é patente em nosso cotidiano. Contudo, vê-se, claramente, que paises periféricos como o Brasil não (e nunca) passaram pelo período moderno vivido pelos países desenvolvidos.
Com o advento da Revolução Francesa houve um rompimento com o Medievo, com as "leis descentralizadas", e implantado a figura do Estado, primeiro como Absolutista, depois como Liberal e, por fim, como Contemporâneo. Tais alterações foram fruto das necessidades e anseios sociais como se vê na transformação do Estado Liberal, com caráter negativo, para o Estado Social, com nítidas feições positivas.
Deveras, o Estado Social, para os neoliberais, foi um Estado que passou e desapareceu, sendo que, atualmente, o Estado simplesmente tem que enxugar a estrutura institucional e funcional que formou quando era Social. Para eles, a entidade Estado está ultrapassada, eis que ainda possui caráter nacional, quando tudo mais está globalizado.
No Brasil, ao invés de termos passado pelo Estado Social, possuímos a herança negativa da escravidão e da disparidade entre pobres e ricos gerada pelo desemprego e pela dinâmica de mercado que, cada vez mais, desenvolve tecnologia sem pensar nas conseqüências sociais que pode causar.
Na verdade, vendem-nos a idéia de que o Estado é o nosso problema, que é o mal a ser combatido, se não por completo, dilacerando-o. É fato que em países que passaram pelo Estado Social as conseqüências de governos neoliberais é diferente, pois não necessitam tanto da atuação do Estado na saúde, educação, segurança, entre outros.
Entretanto, no Brasil a modernidade não aconteceu, mas, sim, um simulacro, uma total negligência às questões sociais. Daí porque os governos neoliberais somente aumentaram o déficit social, eis que no momento em que a população mais necessita da atuação estatal, o mesmo é escamado, privatizado.
Por certo que todas essas alterações estatais e sociais acabam refletindo na atividade jurídica e democrática. O Direito adquire caráter fundamental, pois as alterações propostas pelos últimos governos geram prejuízos à população, cortando ou diminuindo direitos que antes eram disponibilizados pelo Estado e agora pertencem à iniciativa privada, como a saúde e a educação que, a cada dia, vêm sendo mais sucateadas propositadamente, para num futuro próximo serem totalmente privatizadas.
Ocorre que nossa ordem constitucional aponta para um outro lugar, para um Estado forte, promovedor, como uma legítima Constituição de um Estado Democrático de Direito.
Nesse contexto é que o Direito adquire grande importância, sendo a única forma de luta para a implantação das promessas da modernidade, até então não cumpridas. Com efeito, passados quase 20 anos da promulgação de nossa Constituição uma grande parcela de seus direitos e princípios ainda não foram efetivados.
É patente que não basta ter um texto descrevendo direitos, sem ter como efetivá-los. Precisa-se de mecanismos que garantam tal efetividade, e isso, atualmente, dá-se pelo Direito, ou seja, o Direito é meio para alcançar a efetividade dos direitos constitucionais.
O jurista e o Poder Judiciário devem observar que sua prática deve estar voltada/guiada pela Constituição, pela lei fundamental, digna de um Estado Democrático de Direito. Porém, o que se tem visto é o contrário, o Direito e a dogmática que o instrumentaliza está assentado, conforme Streck, numa crise de dupla face, já apresentadas anteriormente, do paradigma liberal-individualista de produção do Direito e da filosofia da consciência na aplicação do mesmo. Isso nos leva a questionar que rumo o Direito deverá seguir daqui para frente: Continuar preso a paradigmas ou libertar-se de forma a efetivar os direitos constitucionais?
Todo esse processo de (re)adaptação do Direito, indubitavelmente, passa pela questão hermenêutica, pois o texto existe, mesmo que talvez possa ser insuficiente. Interpretar é "dar" sentido a cada instante, sem, contudo, "reproduzir" sentido. Talvez aqui se encontre o maior problema da resistência constitucional, pois temos leis anteriores a 1988 e sendo aplicadas como eram àquela época sem, contudo, passar pelo filtro dos princípios constitucionais.
Com efeito, com a hermenêutica pode-se superar a crise paradigmática do Direito e dar sentido eficacial à nossa Ordem Máxima, rumo à emancipação. Paralelamente, o operador jurídico deve ter a compreensão do problema social que vive a sociedade brasileira onde a dignidade da pessoa humana nunca foi respeitada.
É nesse contexto que se insere a "nova" forma de ver o Direito, com a nova roupagem lingüística proposta pela hermenêutica filosófica de Gadamer. O filósofo alemão, autor do clássico "Verdade e Método – Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica", propôs um rompimento com a concepção do compreender até então vigente. Para ele, a compreensão é realizada pelo intérprete que faz parte de um acontecer que decorre do próprio texto que precisa de interpretação.
Gadamer utiliza a historicidade com horizonte da compreensão, mas não como parâmetro estático como faziam as interpretações metafísicas da razão. O autor critica a falsa auto-compreensão, os paradigmas, a partir de uma nova concepção hermenêutica que vê o acontecer diário, considerando a sua existência concreta e fática.
Na precitada obra, Gadamer nos fala de um acontecer que advém do mundo em que estamos inseridos. Ele vê a possibilidade de explicitar/explicar esse acontecer a partir de três elementos: compreensão, interpretação e aplicação, não como um caráter dogmático, mas, sim, em forma de círculos interpretativos.
A partir da virada hermenêutica de Gadamer, com o desvelamento da hermenêutica filosófica, ficou claro que a interpretação deve estar inserida num contexto onde o intérprete esteja apto a deixar paradigmas de lado e a partir das pré-compreensões, compreenda, interprete e aplique.
Pelo visto, a hermenêutica filosófica proposta por Gadamer pode resolver o problema enfrentado pelo Direito e pelo operador jurídico brasileiro. Seja pelo modo de produção, seja pela aplicação, se o operador tiver consciência das questões postas por Gadamer poderá (re)adequar o Direito brasileiro, de forma que os direitos e garantias constitucionais possam de fato serem efetivados.
Nesse sentido, o acontecer constitucional será desvelado, superando o paradigma do sentido comum teórico dos juristas, marcado por: uma concepção liberal-individualista de criação do Direito e pela razão pura, da lógica racionalista que tudo conhece e, na medida que conhece, transforma em objeto.
É nessa trilha que Lenio Streck expõe sua Nova Crítica do Direito (NCD), afirmando que:
A partir da viragem lingüística e do rompimento com o paradigma metafísico aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, a linguagem deixa de ser uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, passando a ser condição de possibilidade. Ao mesmo tempo, o processo interpretativo deixa de ser reprodutivo (Auslegung) e passa a ser produtivo (Sinngebung) [35].
Para esse autor, quando interpretamos estamos compreendendo e para compreendermos precisamos ter uma pré-compreensão, por exemplo, para uma adequada compreensão e aplicação dos preceitos constitucionais, necessitamos ter uma prévia teoria constitucional.
Eis a lição de Heidegger, para quem só compreendemos o ser se conhecermos o próprio ser, quer dizer: O sentido do texto constitucional será revelado na medida em que o intérprete conheça a própria Constituição.
Esse desvelamento do ser (Constituição) é o que primeiramente possibilitará o aparecimento da verdade do enunciado. O ente (enunciado constitucional) é retirado do texto, de maneira que haja uma clareira do ser e proporcione o descobrimento da verdade que será aplicada (applicatio) no caso concreto.
Não resta dúvida de que para romper com o senso comum teórico dos juristas, formado pela, ainda utilizada, hermenêutica clássica é preciso compreender o sentido da Constituição através da applicatio onde a hermenêutica, a compreensão, a interpretação e a aplicação se dão em momentos únicos e constantes, de maneira que as coisas aconteçam (Ereignen) a cada momento, sem repetições.
Atualmente, o jurista fala a partir dos pré-juízos, calcados e presos às pré-compreensões. O mundo jurídico está, assim, pré-dado por um sentido comum teórico que vela o ser, ocultando-o, na medida em que os "criadores" do Direito querem.
Assim agindo, o operador jurídico acaba dificultando que o Ereignen - termo utilizado por Heidegger para explicar o fenômeno do acontecimento, da realização – se efetive, ou seja, que os direitos apregoados pela Constituição Federal aconteçam.
O que se vê hoje, como bem refere Streck [36], são: "reformas ad hoc do sistema jurídico que sistematicamente têm levado à concentração dos poderes nos tribunais superiores".
Contudo, para superar tal crise constitucional é preciso que se entenda e aceite que há de fato uma crise. O operador jurídico, junto ao povo, deve insurgir-se contra esta prisão interpretativa proposta por quem acha conveniente manter o povo regulado. Para tanto, é fundamental um processo de re(construção) das condições de possibilidade para o amplo acesso à jurisdição constitucional e não só para a infra-constitucional, de modo que o povo saiba e utilize as ferramentas que possui para ver seus direitos constitucionais efetivados.
Dessa forma, depreende-se que o operador jurídico deve rever sua hermenêutica de atuação, pois, para que os direitos constitucionais sejam efetivados e, por conseqüência, o Brasil entre no Estado Democrático de Direito, ele deve seguir os passos da applicatio de Gadamer, superando paradigmas de casos pré-moldados, deixando tão-somente que a Constituição aconteça.