4. A questão do rito da sindicância punitiva: silêncio eloqüente da Lei federal n. 8.112/1990? Observância dos atos básicos do procedimento do processo administrativo disciplinar?
12. Com efeito, deve ser interpretado como silêncio eloqüente o fato de a Lei federal n. 8.112/1990 não ter disciplinado, minuciosamente, as regras procedimentais da sindicância, exceto com algumas balizas fundamentais como: é meio de apuração imediata de irregularidades (art. 143, caput); seu prazo de instrução é de 30 dias, prorrogáveis por igual prazo (art. 145, parágrafo único); existe na modalidade meramente investigatória (art. 145, I, III) e punitiva (art. 145, II); limitação das penas imponíveis no bojo do procedimento sindicante: advertência ou até 30 dias de suspensão (art. 145, II); será processada por comissão, da qual não poderá participar cônjuge, companheiro ou parente do acusado, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau (art. 149, § 2º).
13. Como deve ser interpretada essa deliberada omissão do texto legal acerca do rito da sindicância punitiva, conquanto o Estatuto dos Servidores Públicos Federais tenha pontuado, grife-se, o mister de a sindicância ser processada por comissão (art. 149, § 2º)?
14. É pertinente enfrentar o problema do rito da sindicância punitiva sob o prisma de que a sindicância da qual resulta punição nada mais é do que típico processo administrativo disciplinar, ainda que de caráter sumário, devendo seguir as regras deste.
15. A sindicância punitiva, no silêncio da Lei federal n. 8.112/1990, deve seguir o rito do processo administrativo disciplinar, assegurando ampla defesa e contraditório, do que segue a obrigatoriedade de citação do acusado, coleta de provas em regime contraditorial, formalização de um despacho de indiciação e respectiva citação do sindicado para oferecer defesa escrita, lavra de um relatório final, culminando no julgamento pela autoridade administrativa.
16. Sedimentou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios: "Quando a sindicância tem finalidade punitiva, o rito adequado é o do processo administrativo disciplinar." [02]
17. José Armando da Costa, propugnando a aplicação a ela das regras do processo administrativo disciplinar, delineia as fases da sindicância apenadora, apesar do silêncio da lei: instauração; instrução; defesa; relatório; julgamento. [03]
18. Alberto Xavier arrola as fases inerentes ao procedimento administrativo como: a 1) inicial ou introdutiva, quando se desenvolvem as formalidades para iniciar o processo; 2) instrutória, com a realização das providências imperativas para coleta dos elementos necessários para a decisão, com a produção de provas em geral; 3) a decisória, com o respeito ao rito de funcionamento dos órgãos colegiados e à forma de expressão da vontade administrativa pelo órgão ou autoridade decisor. [04]
19. A sindicância punitiva pode ser instalada de duas formas: ou resulta de uma sindicância meramente investigativa, que vem a ser convertida em procedimento sindicante apenador; ou, diante de irregularidades cuja autoria e materialidade já estavam perfeitamente definidas de antemão, sucede a pronta instauração como sindicância sancionadora. No primeiro caso (se resultante de anterior sindicância investigativa), cumpre seja reeditada ou aditada a portaria inicial, a fim de que sejam expostos os fatos constitutivos de infrações disciplinares, nominados os acusados, além de procedido ao enquadramento legal da conduta por eles praticada, em tese. No segundo caso (imediata abertura de sindicância punitiva), o feito já é deflagrado com uma acusação inicial, formalizada contra os servidores considerados responsáveis na portaria de instalação, com a descrição do comportamento censurado e sua respectiva tipificação jurídica.
20. José Raimundo Gomes da Cruz confirma que a sindicância investigativa, originalmente instaurada para apurar irregularidades (na qual se chega à autoria e materialidade de falta disciplinar, apenada com suspensão de até 30 dias ou advertência, uma vez estabelecida a possibilidade e a intenção de punir o servidor sindicado), converte-se e deve seguir o mesmo procedimento do processo administrativo disciplinar desde então. [05]
21. Como informada pela garantia de ampla defesa e contraditório, é fundamental que a sindicância punitiva respeite a fase de indiciação, com a elaboração de peça acusatória minuciosa, que exponha os fatos censuráveis atribuídos ao acusado, a respectiva tipificação legal e as provas que dão suporte ao juízo condenatório, abrindo-se, em seguida, prazo para oferecimento de defesa escrita pelo servidor, na forma do art. 161, da Lei n. 8.112/1990.
22. Decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:
[06]Em se tratando de sindicância disciplinar, impõe-se a observância dos mesmos procedimentos aplicáveis ao processo administrativo disciplinar propriamente dito, sob pena de afronta aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, não sendo admissível, portanto, a aplicação da penalidade anteriormente à sua conclusão.
23. Inviável seria, do contrário, falar em amplitude de defesa se os pontos de acusação não fossem claramente declinados para ciência do acusado e pronta resposta defensória na sindicância em cujo término se aplicará sanção ao servidor sindicado.
24. Asseverou o Tribunal Regional Federal – 5ª Região:
A comissão sindicante não se pode descuidar dos atos relativos às garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, sob pena de nulidade do procedimento administrativo disciplinar, por cerceamento de defesa. Desse modo, por analogia ao art. 161, parágrafo 1º, da Lei n. 8.112, de 1990, antes de encaminhar os autos à autoridade julgadora, para aplicação de punição disciplinar, a comissão sindicante deve dar oportunidade de defesa ao acusado, mediante notificação pessoal, para apresentação de razões escritas, no prazo de dez dias. [07]
25. Ainda que a sindicância possa ser considerada um procedimento mais simplificado, não poderá desprezar as peças e atos essenciais para a defesa do servidor, como decorrência do mandamento constitucional de que, nos processos administrativos em que formalizada acusação, seja deferida a proteção da ampla defesa e do contraditório, com os meios inerentes a essas garantias, no que se compreende o conhecimento das acusações articuladas pela Administração Pública e a oportunidade para desconstituir os fundamentos da procedência das teses acusatórias oficiais.
26. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, firmando que a sindicância punitiva deve conter ato formal de indiciação, seguida de pertinente citação do acusado sindicado para oferecer defesa escrita, decidiu, ante a violação da garantia do contraditório e da ampla defesa, pela anulação de penalidade imposta em procedimento sindicante no qual não se formalizara o ato citatório sobre o despacho de indiciação, ao fundamento de que
a mera comunicação, por Comissão de Sindicância, de que seriam apurados os fatos contidos em documento elaborado pelo Departamento de Polícia Federal do Piauí, anexo à referida comunicação, e a solicitação de comparecimento do servidor para prestar informações quanto aos documentos em referência não suprem a necessidade de citação do indiciado, nos termos do disposto no art. 161, § 1°, da Lei n. 8.112/1990. [08]
27. O Tribunal Regional Federal da 5ª Região proferiu decisão de igual teor. [09]
28. Já a fase de defesa escrita é essencial para o exercício do desforço defensório. Reza a Lei Geral do Processo Administrativo da União, a propósito, que é imperativa a observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados (art. 2º, par. único, VIII, Lei federal 9.784/99).
29. Pontificou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:
Ao servidor público, indiciado em sindicância, deve ser oferecido prazo razoável para elaboração de sua defesa. O deferimento do exíguo prazo de 05 [cinco] dias para apresentação da peça defensiva, por parte do indiciado, importa violação da cláusula constitucional da ampla defesa [artigo 5º, LV]. Precedentes jurisprudenciais. [10]
30. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, aplicando o rito do processo administrativo disciplinar ao procedimento da sindicância punitiva, anulou punição imposta porque "suprimida a fase da defesa administrativa escrita, pela Comissão de Sindicância, nulo é o ato decorrente do respectivo procedimento, por violar o princípio da ampla defesa (CF, art. 5º, LV)". [11]
31. Finalizadas as atividades processuais da sindicância punitiva, deve a comissão, depois de indiciar o servidor e lhe deferir prazo legal para defesa escrita, elaborar seu relatório, com a descrição de todo o conteúdo do feito, as provas colhidas, as razões defensórias ofertadas e seu cotejo minucioso com a respectiva crítica serena, à luz do conjunto fático-probatório dos autos, para, ao final, externar uma fundamentada proposta de julgamento, concluindo pela culpa ou inocência do servidor.
32. Sob outro ângulo complementar, é intuitivo: se a sindicância pode implicar reprimenda administrativa ao servidor, o procedimento apenador sofre a incidência da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa, do que segue o dever de instauração formal, de citação do sindicado, de oportunidade de produção de provas, de elaboração de peça acusatória em pontos claros e precisos (indiciação), de relatório final. Todos esses atos da sindicância punitiva devem ser praticados por comissão trina, integrada por servidores públicos estáveis, insuspeitos e desimpedidos, nos termos do art. 149, § 2º, da Lei federal n. 8.112/1990, c.c. arts. 18 a 20, da Lei federal n. 9.784/1999.
33. Ora, onde reina a mesma razão jurídica, aplica-se a mesma regra. A estabilidade foi prevista, expressamente, no art. 149, caput, do Estatuto dos Servidores Públicos Federais, para os membros da comissão de processo administrativo disciplinar. Poderiam, todavia, os integrantes de conselho sindicante ser meros ocupantes de cargos comissionados ou agentes públicos em estágio probatório? Como agiriam com independência e imparcialidade sob a ameaça de perda dos cargos comissionados, ou mesmo efetivos em que ainda são avaliados? A propósito, vide as considerações tecidas em nosso Manual de Processo Administrativo Disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos tribunais e da casuística da Administração Pública. [12]
34. Sob outro prisma, a necessidade de a defesa ser articulada diante de um ato de acusação formulado com base nas provas dos autos, com a tipificação legal da conduta e dos fatos increpados ao servidor somente se justifica no processo administrativo disciplinar, não na sindicância apenadora? Ora, a lavra de indiciação (art. 161, Lei federal n. 8.112/1990) é comum ao procedimento sindicante e ao processo administrativo disciplinar ordinário, em razão dos efeitos das garantias constitucionais de contraditório, ampla defesa e devido processo legal.
35. E o que dizer do relatório na sindicância punitiva: pode ser prescindível, como resumo confiável do inteiro teor dos autos e com sólida proposta de decisão, remetida para o julgamento da autoridade competente, como sucede com o processo administrativo disciplinar? O órgão julgador do procedimento sindicante pode decidir sem um posicionamento opinativo do colegiado que colheu as provas na sindicância? Evidentemente que não.
36. A autoridade competente para aplicar penas de advertência ou suspensão de até 30 dias, na sindicância, não é a mesma definida, no art. 141, IIII, da Lei federal n. 8.112/1990, com o poder de julgar o processo administrativo disciplinar, no qual propostas as mesmas penalidades?
37. A coleta de provas na sindicância não deve seguir as mesmas disposições do processo administrativo disciplinar, consoante disciplinado nos artigos 153 a 160, da Lei federal n. 8.112/1990? A oitiva de testemunhas, as diligências, a prova pericial, o exame de sanidade mental, a acareação, etc. não constituem atos probatórios comuns à sindicância? Deve-se entender que os sobreditos preceitos legais expressos sobre a fase probatória (inquérito) não se aplicariam ao procedimento sindicante?
38. De mais a mais, o que deixa reluzente que a sindicância punitiva tem natureza jurídica de processo administrativo disciplinar é o fato de que a Lei federal n. 8.112/1990 dispôs conjuntamente, no Título V (intitulado Do Processo Administrativo Disciplinar), acerca dos dois institutos: tanto da sindicância (art. 145, I a III, e art. 149, § 2º) como do processo administrativo disciplinar, o que evidencia a vontade da lei de conferir a mesma disciplina normativa e rito básico a ambos, notadamente o processo administrativo disciplinar e a sindicância punitiva.
39. Outra evidência clara disso é de que, no tangente aos impedimentos, o Estatuto dos Servidores Públicos Federais proclamou os mesmos critérios para os integrantes da comissão de sindicância ou de inquérito (processo administrativo disciplinar), conforme estipulado no art. 149, § 2º, do ato legislativo federal em comento.
40. Outro elemento de convicção que robustece a tese é de que o art. 143, do Estatuto dos Servidores Públicos Federais, no mesmo Título V (Do Processo Administrativo Disciplinar), enuncia que
Art. 143. A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa.
41. Pois bem, o estatuto legislativo firmou que a apuração de irregularidades poderia ser promovida por meio de sindicância ou de processo administrativo disciplinar, assegurando-se ampla defesa ao acusado. Ora, ressai nítido do texto legal que a previsão da figura de um acusado e da concessão de ampla defesa envolve feitos de caráter acusatório e nos quais se pode concluir com a possível imposição de penalidade, modo por que não há dúvida de que o art. 143, do Estatuto dos Servidores Públicos Federais, alude à sindicância punitiva, por excelência, juntamente com o processo administrativo disciplinar, haja vista que o procedimento sindicante de caráter investigativo, no qual não se finda com punição, senão ou com proposta de arquivamento das peças inquisitoriais ou de abertura de processo administrativo disciplinar (art. 145, I e III, da Lei federal n. 8.112/1990), não é informado pela garantia constitucional de contraditório e ampla defesa.
42. Todos esses elementos bastam para fazer ver que o rito da sindicância punitiva é, sim, no que tange aos atos básicos, similar ao do processo administrativo disciplinar, pois não se pode considerar que o legislador teria incorrido no gravíssimo equívoco de não definir os atos básicos do procedimento administrativo sindicante que pode resultar numa punição do servidor público, à revelia da segurança jurídica mais elementar. Não. O Estatuto dos Servidores Públicos Federais, que inclusive regulamentou, no mesmo Título V (Do Processo Administrativo Disciplinar), os institutos do processo administrativo disciplinar e da sindicância, procurou conferir ao sindicado as garantias de que pelo menos sua responsabilidade seria: apreciada num feito processado por colegiado disciplinar trino (art. 149, § 2º), designado por ato de autoridade administrativa competente para instaurar o procedimento apenador, observando-se pelo menos os atos fundamentais da ritualística disciplinar, como a citação, a realização de fase instrutória, a lavra de peça de indiciação, a oportunidade para redigir defesa escrita contra peça indiciatória motivada nas provas e fatos coligidos nos autos, a elaboração de relatório final e julgamento.
43. Nada justificaria apontar no sentido de que o legislador federal tivesse por escopo, por absurdo, ao tratar dos dois institutos num mesmo título da lei, conferir segurança jurídica ao processo administrativo disciplinar e relegar a sorte do acusado em sindicância ao improviso, à indefinição, a um rito incerto, sem a observância de formalidades essenciais aos direitos do administrado. Basta ver nesse sentido que a própria Lei Geral de Processo Administrativo da União, aplicada no Distrito Federal por força do disposto na Lei distrital n. 2.834/2001, assevera:
.Art.2º.....................................................................
..............................................................................
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
..............................................................................
VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados;
IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados
44. Pior ainda, concessa venia, seria inferir que o Estatuto dos Servidores Públicos Federais teria deixado de definir quem teria competência para processar sindicância punitiva, quando o próprio art. 149, § 2º, do diploma legal em apreço, expressamente, estabeleceu que somente comissão poderia exercer o mister no procedimento sindicante.
45. Para que, então, o Estatuto dos Servidores Públicos Federais se referiria à figura da comissão de sindicância (art. 149, § 2º), se o ato legislativo tivesse o intento de deixar a qualquer um, inclusive agente singular, a competência para processar feito sindicante? A exegese pela possibilidade de processamento de sindicâncias por inquisidor único implicaria tornar inócua a disposição do art. 149, § 2º, da Lei federal n. 8.112/1990.
46. Insta recordar que, na interpretação das normas jurídicas, não se pode recorrer à exegese que torne sem efeito qualquer uma disposição legislativa expressa, como a do art. 149, § 2º, da Lei federal n. 8.112/1990. É de Carlos Maximiliano a lição: "Prefira-se a inteligência dos textos que torne viável o seu objetivo, ao invés da que os reduza à inutilidade" [13]. O mesmo jurista ajunta:
Não se presumem, na lei, palavras inúteis. Literalmente, devem-se compreender as palavras como tendo alguma eficácia [...] interpretem-se as disposições de modo que não pareça haver palavras supérfluas e sem força operativa. [14]
47. Se o capitulado no art. 149, § 2º, da Lei federal n. 8.112/1990, sentenciou que a sindicância punitiva seria processada por comissão, não foi debalde que o estatuto firmou essa competência, mas para que fosse respeitada – e assim se deve interpretar a norma jurídica – não no sentido de que o preceito legal, de solar clareza e dicção, não deveria produzir, contudo, paradoxalmente, efeitos quaisquer, presumindo-se, erroneamente, palavras inúteis do texto legislativo, que explicitamente mencionou a figura da comissão de sindicância. Daí a conclusão, estribada nas mais áulicas lições da hermenêutica jurídica, de que existe, sim, dispositivo de lei vigente, eficaz e válido que demanda a formação de colegiado trino para processar sindicâncias punitivas no caso dos funcionários regidos pela disciplina do Estatuto dos Servidores Públicos Federais.