7. Do Exercício de Advocacia Particular imposto compulsoriamente aos Procuradores do Estado
Surgem dúvidas sobre a liceidade de se compelir os Procuradores do Distrito Federal a atuar fora do âmbito de suas atribuições institucionais, de assento legal e constitucional, em causas cíveis e criminais, na representação judicial de particulares, não na qualidade de Procurador do Estado (art. 12, I, CPC), mas numa atuação idêntica à patrocinada por qualquer advogado particular.
Para que o Procurador do Distrito Federal, nessa qualidade e sem procuração, represente judicialmente autoridades administrativas e agentes públicos enquanto pessoas físicas, porque ausente regra legal permissiva (como é a do art. 12, I, CPC), seria imperioso acrescentar dispositivo, evidentemente por meio de lei federal (art. 22, I, Constituição de 1988), ao Código de Processo Civil e ao Código de Processo Penal, sob pena de irregularidade e impossibilidade da representação. Ainda assim, seria dificultoso conciliar uma norma dessa natureza com o princípio constitucional da moralidade e da probidade administrativa.
Agora, se o Procurador do Distrito Federal for compelido a representar judicialmente os agentes públicos e autoridades por meio de procuração (constituído por mandato ad judicia, como qualquer advogado particular, à luz das regras do Código de Processo Civil), parece que não se estaria em face do desempenho de função pública ex lege (como se dá na representação do art. 12, I, CPC), mas, aparentemente, de exercício forçado e gratuito de advocacia particular pelo Procurador de Estado, que não se diferenciaria de qualquer outro causídico privado, ao revés do que ocorre quando se cuida da representação legítima da pessoa jurídica de direito público, quando o Procurador não precisa de procuração, pois a sua legitimação decorre da lei (art. 12, 1, CPC).
Nenhum advogado pode ser compelido a exercer a advocacia particular sem a contratação de seus serviços profissionais, menos ainda de forma gratuita, porquanto o exercício com liberdade da profissão é um direito do advogado, não uma obrigação (art. 7º, I, Lei federal n. 8.906/1994).
Demais, a imposição do dever de defender autoridade pública retira a independência profissional do advogado, direito expressamente reconhecido aos integrantes da Ordem dos Advogados do Brasil (art. 31, § 1º, Lei federal n. 8.906/1994), forçando o causídico a patrocinar causa contra suas convicções pessoais ou éticas, especialmente em se cuidando de possível prática de crimes de responsabilidade por autoridades públicas, o que repugna a consciência jurídica do operador do direito, violando-se o Estatuto da OAB:
Art. 31.. .............................................................................
§ 1º O advogado, no exercício da profissão, deve manter independência em qualquer circunstância.
§ 2º Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão.
Ressumbra que o advogado público, regido pelas disposições do Estatuto da OAB (art. 3º, § 1º, Lei federal n. 8.906/1994) passará a agir com tibieza, com receio de desagradar agente político no exercício de advocacia, tendo que defender, em processos cíveis e até penais, autoridades porventura incursas em atos ímprobos ou lesivos ao erário e à moralidade públicas, o que não se pode admitir, em se tratando de representação judicial por mandato ad judicia.
Não se pode confundir a coisa pública com o interesse particular. O fato de o servidor público assumir eventual responsabilidade por atos praticados no exercício funcional é consabido de qualquer candidato de concurso público, ao ler o disposto na Lei n. 8.112/1990 (arts. 121 a 126), que trata das esferas cível, penal e administrativa de responsabilização do agente público, na Lei n. 8.429 (Improbidade Administrativa), no Código Penal (crimes contra a Administração Pública), ciência ainda mais firmada em agentes políticos, os quais desfrutam de privilegiada assessoria jurídica de seus partidos ou particular e experiência pessoal, a não lhes escusar o cometimento de atos ilícitos nem a ignorância das conseqüências jurídicas de suas ações.
Não é tolerável, contudo, transferir aos representantes judiciais do Estado, que possuem função constitucional definida, uma adulteração de suas atribuições administrativas para compeli-los a funcionar como advogados particulares, visto que o custeio do patrocínio da defesa judicial de servidores e autoridades públicas deve caber aos próprios interessados, que devem contratar causídicos para as causas necessárias. Medida dessa natureza viola os princípios da impessoalidade administrativa e do interesse público, respectivamente cristalizados no direito brasileiro no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988, e 19, caput, da Lei Orgânica do Distrito Federal.
Modificar os misteres dos advogados públicos é que não pode ser tolerado, ainda mais quando se deflagra uma série de inconstitucionalidades com a medida, como a ora criticada na lei distrital em apreço, que não pode ter o condão de modificar o disposto no próprio art. 132, da Constituição Federal, na Lei Orgânica do DF, nem nos Códigos de Processo Penal e Civil (dois diplomas que somente podem ser alterados por meio de lei federal).
Daí se vê que o capitulado na norma distrital impugnada (art. 4º, XXIV, Lei Complementar distrital n. 395/2001) não se harmoniza com o princípio do interesse público (art. 19, caput, Lei Orgânica do Distrito Federal), com a moralidade e impessoalidade administrativas (art. 37, caput, Constituição Federal de 1988) nem com a isonomia (art. 5º, caput, Carta Magna de 1988).
8. Conclusões
1)considerando que o artigo 22, da Lei federal nº. 9.028/95, e o artigo 50, da Medida Provisória nº. 1.549-33/97 dispõem sobre matéria de direito processual, não seria possível cometer aos Procuradores do Distrito Federal a representação judicial dos agentes públicos e autoridades mediante lei local, mas, antes, seria necessário introduzir preceito autorizativo aos Códigos de Processo Civil e de Processo Penal, o que só se admite por meio de lei federal (art. 22, I, Constituição Federal de 1988);
2)a Medida Provisória nº. 1.549/97, norma federal empregada como paradigma do estudo e fonte de validade da imputação da representação judicial dos agentes públicos aos Procuradores do Distrito Federal, por tratar de matéria afeta a lei complementar já vigente (Lei Complementar 73/93 - AGU), padece de vício de inconstitucionalidade, desde que medida provisória não tem o condão de alterar lei complementar nem muito menos norma constitucional (art. 131, caput, Constituição Federal de 1 988);
3)é de manifesta inconstitucionalidade a norma que altera a competência institucional, de assento constitucional (art. 132, Constituição de 1988) e legal (art. 12, I, CPC), dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal no sentido de representar judicialmente as suas respectivas entidades federadas, parecendo exorbitar da previsão constitucional incumbi-los da representação em juízo de pessoas físicas agentes públicos e autoridades em nome próprio;
4)seria, de toda forma, descabida a representação judicial dos agentes públicos por Procuradores do Distrito Federal em processos criminais e, ainda que se admitisse a tese, apenas para argumentar, seria necessária alteração, por lei federal, no Código de Processo Penal, permitindo a defesa dos funcionários e autoridades públicas, em processos penais, por Procuradores do Estado, nessa qualidade e sem procuração;
5)no que tange à representação judicial de agentes públicos e autoridades administrativas, caso se desprezassem os fortes indícios de ofensa ao art. 132 da Constituição Federal de 1988, mesmo assim, para que se admitisse a representação judicial dos agentes públicos por Procuradores do Distrito Federal, nessa qualidade e sem procuração, no processo civil, hipótese considerada apenas para argumentar, seria imperioso o acréscimo de regra expressa ao Código de Processo Civil, por meio de lei federal (art. 22, I, Constituição Federal de 1988);
6)há grave risco de conflito de interesses pela defesa judicial de um mesmo agente por um Procurador c o ajuizamento de ações contra a mesma autoridade por outro Procurador do Distrito Federal, o que aponta para uma incerteza quanto à tutela efetiva do interesse público;
7) o Procurador do DF não pode ser compelido a exercer a advocacia em caráter privado de forma gratuita e contra sua independência como inscrito na OAB, pois a liberdade para exercer a profissão é direito do advogado, inclusive público.
REFERÊNCIAS
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 5. ed., 1994.
CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Comentários à Lei de Organização da Procuradoria-Geral do Distrito Federal: Lei Complementar distrital n. 395, de 31 de julho de 2001. Brasília: Sindicato e Associação dos Procuradores do Distrito Federal, 2004.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 18. ed., São Paulo: Saraiva, 1990.
FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1978, volume 1.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1996.
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 7. ed, 1990.
Notas
- MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1978, volume 1, p. 254.
- FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 3.
- MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 16ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 249.
- Idem, op. cit., p. 250-251.
- FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 18. ed., São Paulo: Saraiva, 1990, p. 184-185.
- BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 5. ed., 1994, p. 309.
- FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 18. ed., São Paulo: Saraiva, 1990, p. 184-185.
- TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 7. ed, 1990, p.153-154.
- BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional, 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 357.
- SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 585-586.
- CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Comentários à Lei de Organização da Procuradoria-Geral do Distrito Federal: Lei Complementar distrital n. 395, de 31 de julho de 2001. Brasília: Sindicato e Associação dos Procuradores do Distrito Federal, 2004, p. 43.
- INFORMATIVO Nº 468, TÍTULO Verbete 394 da Súmula e Art. 84 do CPP – 3, PROCESSO Inq - 2010
ARTIGO. Em conclusão de julgamento, o Tribunal resolveu questão de ordem suscitada em inquérito, no qual se questionava, ante a alteração dada ao art. 84 do Código de Processo Penal pela Lei 10.628/2002, se persistiria a competência desta Corte para o julgamento de ação penal instaurada contra ex-Deputado Federal, por crimes supostamente praticados no exercício do mandato ou em razão dele — v. Informativos 322 e 423. Aplicou-se a orientação firmada pelo STF no julgamento da ADI 2797/DF (acórdão pendente de publicação), em que reconhecida a inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 do CPP, e determinou-se a baixa dos autos à primeira instância (CPP, art. 84, § 1º: "A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública."). Inq 2010 QO/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 23.5.2007. (Inq-2010)
Íntegra do Informativo 468