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Refundando o Direito Penal do Trabalho.

Primeiras aproximações

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Agenda 09/12/2008 às 00:00

4. AS FUNÇÕES DA PENA E O DIREITO PENAL DO TRABALHO. A PREVENÇÃO GERAL POSITIVA FUNDAMENTADORA

Nos dias de hoje, é certo afirmar que as velhas teorias sobre as funções da pena ¾ tanto as absolutas, ligadas à retribuição penal ("punitur quia peccatum est"), como as relativas ou utilitaristas ("punitur ne peccetur"), ligadas à prevenção geral e especial ¾ perderam força no contexto jurídico europeu. A obra de ROXIN (1997, pp.81-98) é um claro testamento disso.

Após expor as críticas mais intensivas às teorias absolutas (pela renúncia aos fins sociais da pena) e às teorias relativas de prevenção geral negativa e de prevenção especial (ali, pelo risco do terror estatal; aqui, pela inaptidão para limites e pelo contraponto empírico; e, em ambos os casos, pelo aparente malferimento ao princípio da dignidade humana [58]), ROXIN filia-se a uma teoria unificadora preventiva (1997, pp.95-98), que ultrapassa a rede de utilidades da prevenção especial e da prevenção geral negativa para agregar os aspectos positivos da prevenção geral (= prevenção geral positiva).

Na sua dimensão positivo-fundamentadora (BITENCOURT, 2003, pp.85-88 [59]), a prevenção geral não se basta com a mera intimidação abstrata dos cidadãos (FEUERBACH); vai além, colimando a conservação e o reforço da confiança geral na solidez e na efetividade do ordenamento jurídico como um todo. Metaforicamente falando, a aplicação da sanção penal funciona como um farol na imensidão do oceano de possibilidades deônticas; mirando-se nele, o cidadão encontra norte certo (= legitimidade social) para guiar-se em suas condutas futuras. A (re)afirmação ética do valor imanente à conduta valiosa, pelo fato mesmo da reprimenda penal, intensifica o senso geral de dever, reproduzindo ações conformadas ao direito; ao revés, a existência de normas penais inefetivas ¾ como se dá, hoje, com os tipos penais dos artigos 197, 200, 203 e 297, §4º, do CP ¾ tende a reproduzir a ação desvaliosa, pela mensagem social de tibieza dos valores a elas subjacente (na espécie, o valor-trabalho e as suas concreções: liberdade de trabalho, justa retribuição do trabalho, formalização do emprego, etc.). Eis a condição atual do Direito Penal do Trabalho [60].

Seguindo-se de perto o escólio de ROXIN (1997, pp.91-92), pode-se distinguir, na idéia de prevenção geral positiva,

"tres fines y efectos distintos, si bien imbricados entre sí: el efecto de aprendizaje, motivado socialpedagógicamente; el «ejercicio en la confianza del Derecho» que se origina en la población por la actividad de la justicia penal; el efecto de confianza que surge cuando el ciudadano ve que el Derecho se aplica; y, finalmente, el efecto de pacificación, que se produce cuando la conciencia jurídica general se tranquiliza, en virtud de la sanción, sobre el quebrantamiento de la ley y considera solucionado el conflicto con el autor. Sobre todo al efecto de pacificación, mencionado en último lugar, se alude hoy frecuentemente para la justificación de reacciones jurídicopenales con el término de «prevención integradora»" (g.n.).

Filiamo-nos a esse modo de compreender os escopos da sanção penal, reconhecendo-o como a síntese das finalidades maiores do instituto da pena no Estado Democrático de Direito (sem prejuízo, porém, da função preventivo-especial e da própria função retributiva, na acepção neokantiana, que acolhemos como funções penais secundárias [61]).

E, porque assim entendemos, cremos também que a proposta de refundação do Direito Penal do Trabalho nos planos legislativo e hermenêutico, com efeitos de otimização dos níveis de efetividade das normas penais laborais, não confronta, em absoluto, os ideais do garantismo penal. Antes, realiza-os (em parte).

De fato, embora FERRAJOLI repudie com a mesma veemência as teorias absolutas (retribucionistas) e a teoria da prevenção positiva ¾ por confundirem, ambas, as esferas do direito e da moral, além de se reduzirem a petições de princípios (2000, pp.329-330) ¾ , termina por admitir, adiante, duas funções primordiais para o Direito Penal (logo, para as sanções penais), ambas de ordem preventiva: a prevenção geral de delitos (= prevenção geral negativa) e a prevenção geral de penas arbitrárias ou desproporcionais (= prevenção geral positivo-limitadora [62]). E, sobre tais funções, aduz:

"La primera función marca el límite mínimo y la segunda el límite máximo de las penas. Una refleja el interés de la mayoría no desviada; la otra, el interés del reo y de todo aquel del que se sospecha y es acusado como tal. [...] Es, más bien, la protección del débil contra el más fuerte: del débil ofendido o amenazado por el delito, así como del débil ofendido o amenazado por la venganza; contra el más fuerte, que en delito es el delincuente y en la venganza es la parte ofendida o los sujetos públicos o privados solidarios con él. Más exactamente ¾ al monopolizar la fuerza. Delimitar sus presupuestos y modalidades y excluir su ejercicio arbitrario por parte de sujetos no autorizados ¾ , la prohibición y la amenaza penales protegen a las posibles partes ofendidas contra los delitos, mientras que el juicio y la imposición de la pena protegen, por paradójico que pueda parecer, a los reos (y a los inocentes de quienes se sospecha como reos) contara las venganzas u otras reacciones más severas" (g.n.).

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Ora, não convergem para outro norte os objetivos colimados na refundação axiológico-epistemológica [63] do Direito Penal do Trabalho, de bases democráticas, nos planos legislativo e hermenêutico (supra). Marcar os limites mínimos de indenidade do valor-trabalho e de suas concreções (inclusive no interesse de tantos quantos, trabalhadores e empresários, já observam esses limites), por um lado, e evitar a justiça privada e/ou as alternativas anti-sociais [64], por outro: eis o seu fito e a sua promessa.

Daí exsurge, de resto, o papel contemporâneo do Direito Penal do Trabalho, no marco do capitalismo pós-industrial: estabelecer padrões mínimos de civilidade («ultima ratio») nas relações entre o capital e o trabalho, assegurando, por um lado, a regular fruição dos direitos sociais fundamentais, e, por outro, o regular exercício da iniciativa privada. Não se olvidam, aqui, os seus nichos sociológicos derivados, como o da regulamentação profissional, o da dimensão tributário-previdenciária, o das lides intra-sindicais, etc.; mas, em tais espaços, o seu papel é secundário. Naqueles primeiros lindes, porém, uma intervenção penal de trato efetivo chega a ser inadiável, na medida em que, do ponto de vista criminológico, não se pode negar, na empresa capitalista, a existência de condições internas favoráveis à gênese de ilícitos penais (SOLIVETTI, 1987, pp.41-77). Afinal, na derradeira expressão de BAYLOS e TERRADILLOS (1997, p.40),

"es pacíficamente admitido que la existencia de comportamientos ilegales en el seno de la empresa se debe no a la eventual predisposición personal de cada individuo, sino a factores estructurales como la división del trabajo, las relaciones jerárquicas o el sistema normativo interno. […] A ello colabora también una nota característica de la empresa de nuestros días: el proceso de toma de decisiones se descentraliza progresivamente ― de modo paradigmático en las uniones de empresas ―, lo que provoca una aminoración de la responsabilidad individual sobre los efectos finales" (g.n.).

Isso é especialmente verdadeiro nas empresas organizadas sob o modelo fordista-taylorista, em face de sua estrutura laboral típica (trabalho subordinado) e da massificação/padronização de procedimentos ― agravando-se, pela pulverização de responsabilidades, quando se incorporam elementos estruturais atípicos (a exemplo das terceirizações) ―, porque, sob tais condições, a pessoa e o patrimônio jurídico do trabalhador tornam-se especialmente vulneráveis. Mas também é verdadeiro nos novos modelos de empresa, desde o paradigma toyotista puro (desconcentração, conglomerados reticulares, just-in-time, etc.) até as formatações mais contemporâneas (regimes de co-gestão, sociedades unipessoais, empresas virtuais baseadas em teletrabalho, etc.), desde que se verifique, no seu "modus operandi", a possibilidade de exploração do trabalho humano (com ou sem os elementos característicos do emprego clássico [65]).

É imperioso, portanto, que, no manejo do Direito Penal do Trabalho, o operador mantenha-se atento às suas peculiaridades e às suas idiossincrasias, o que inclui, inexoravelmente, a sua dimensão criminológica e os fundamentos socioeconômicos da sua visão de mundo (radicados na base da normatividade tutelar do valor-trabalho). Para esse mister, progressos recentes da dogmática penal a exemplo da teoria da imputação objetiva e da responsabilidade penal de pessoas jurídicas terão relevante papel a cumprir. Mas a isso servirão outras considerações nossas, quiçá num futuro próximo.


6. CONCLUSÕES

Diante do quanto exposto, e já à guisa de conclusão, restaria redargüir: em tempos de garantismo penal ¾ descriminalização, despenalização, descarcerização ¾ e de Direito Penal mínimo ¾ no limiar do abolicionismo radical, ao modo de L. HULSMAN, J. BERNAT DE CELIS (1993, passim) e T. MATHIESEN (1974, passim) ¾ , há espaço para a pretendida refundação do Direito Penal do Trabalho? Há ocasião para inflectir os seus níveis da efetividade?

Dados os limites deste trabalho, não foi possível revisar as principais casuísticas de delinqüência laboral no Brasil contemporâneo (infortunística delitual em sede de acidentes e doenças ocupacionais, trabalho escravo contemporâneo, exploração ilegal do trabalho infanto-juvenil, violência nas relações coletivas de trabalho, fraudes contra a legislação do trabalho). Para tanto, sugerem-se leituras mais específicas (PALMA, 2000, passim; FELICIANO, 20062, pp.61-86). Nada obstante, acreditamos ter encaminhado, para aquelas duas questões, uma resposta positiva.

Demonstrou-se, com efeito, que:

(1) o valor humano e social do trabalho tem status jurídico-constitucional universal, compõe o programa penal da maioria das constituições ocidentais e desafia tutela penal;

(2) o «garantismo coletivo» não tem aptidão para substituir os mecanismos de tutela penal, remanescendo em aberto o espaço de estrita tutela estatal (preventivo-repressiva), mesmo ¾ ou sobretudo ¾ nos contextos nacionais de desregulamentação e flexibilização dos direitos sociais;

(3) os sistemas penais em vigor contemplam o Direito Penal do Trabalho, definível como o segmento do Direito Penal especial (subsistema objetivo) predisposto à tutela jurídica fragmentária da dignidade humana do trabalhador e da organização geral do trabalho;

(4) o Direito Penal do Trabalho, em seus padrões atuais, padece de aguda crise de efetividade, o que engendra repercussões sociológicas contrárias à finalidade mesma da norma penal (efeito reverso da prevenção geral positiva fundamentadora);

(5) no caso brasileiro, tal inefetividade é tributária de fenômenos como os lobbies empresariais, o anacronismo da legislação penal laboral, a atecnia dos tipos penais e a resistência ideológica das cortes e da doutrina;

(6) uma legislação penal laboral de caráter meramente simbólico tende a aprofundar a vulnerabilidade do valor-trabalho e de todas as suas concreções (direito à justa retribuição, liberdade profissional e de trabalho, liberdades sindicais, formalização dos empregos, tributação social, etc.), quando deveria preservá-los;

(7) a inflexão desse estado de coisas, com vistas à otimização da tutela preventivo-repressiva dos direitos sociais e ao superávit dos níveis de efetividade das normas gerais do trabalho, passa pela necessária refundação do Direito Penal do Trabalho, nas suas razões internas (matiz epistemológico) e nas suas razões de ser (matiz axiológico), com desdobramentos sensíveis na produção legislativa e no pensamento hermenêutico vigente. Um Direito Penal do Trabalho progressista, fiel à pletora de valores do Estado Democrático de Direito, não se basta com a realização dos direitos humanos de primeira geração, mas compreende também a blindagem dos valores constitucionais pós-liberais (direitos humanos de segunda e terceira gerações). Isso significa resguardar os limites mínimos de indenidade do valor-trabalho e de suas concreções, para além da necessária proscrição da justiça privada e das respostas alternativas anti-sociais.

Realmente, a perspectiva do Direito Penal mínimo não desautoriza essa revisão semântica. Afinal, em leitura mais cuidada, extrai-se do garantismo não apenas a «luta dos direitos contra os poderes», mas também a luta pelos direitos, seja na sua conservação, seja na sua fundação e transformação (FERRAJOLI, 2000, pp.334-336, 931-945). Não há plenas garantias políticas sem efetivas garantias sociais.

Ademais, para essa ordem de considerações, não é suficiente o dado científico-discursivo. Compreender as funções e a utilidade de um Direito Penal do Trabalho refundado, recobrado em sua efetividade e no seu potencial tuitivo, supõe ainda um exercício íntimo de sensibilidade.

Para esse fim, nas palestras que temos proferido a respeito do tema, é costume fazer uso das imagens, que sempre falam mais diretamente ao espírito. São retratos da realidade, denunciando o trabalho rural em condição análoga à de escravos, o trabalho infantil criminoso, os ambientes de trabalho perigosos, os acidentes típicos (optando-se, sempre, pelas cenas de menor impacto), etc. Em textos jurídicos, porém, não dispomos dos mesmos recursos. Mas o leitor poderá suprir essa deficiência, acorrendo às fontes. Há diversas imagens disponíveis na rede mundial de computadores, ilustrativas dos mais diversos riscos laborais [66]. Pode-se concluir, com pouco esforço, que o descaso no cumprimento das normas de higiene, segurança e medicina do trabalho pode ser tão letal quanto o disparo de uma arma de fogo. Basta procurar, constatar e refletir.

É o quanto basta. Acudindo ao prólogo de BOBBIO (1989, p.17), pode-se talvez isolar o binômio essencial de todo este debate, a bem resumir a tese da refundação: no marco dos direitos sociais, trata-se agora de buscar a efetividade, sem perder de vista a normatividade. Para isso, um novo Direito Penal do Trabalho.

Sobre o autor
Guilherme Guimarães Feliciano

Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Refundando o Direito Penal do Trabalho.: Primeiras aproximações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1987, 9 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12054. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Artigo baseado em palestra proferida na cidade de Montevidéu, em 08/08/2008, na Faculdade de Direito da Universidade de la Republica – UDELAR (Escuela de Posgrado), a convite da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região (AMATRA-IV), no Curso de posgrado sobre los cambios recientes en la legislación laboral.

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