5 CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA DO COMPANHEIRO COM O CÔNJUGE SOBREVIVENTE
Com o advento da Constituição federal de 1988 houve uma profunda modificação no Direito de Família, sendo que no âmbito de sua constituição passou a prevalecer à proteção à dignidade da pessoa humana igualitária a todos os seus membros.
Destarte, todas as entidades familiares devem ter o mesmo grau de proteção, a mesma relevância no ordenamento jurídico brasileiro, independente da forma de constituição escolhida por cada um, oportuna a ponderação feita por Paulo Luiz Netto Lobo: "Consulta a dignidade da pessoa humana a liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial". [83]
Com a Constituição Federal de 1988, também houve relevante alteração no conceito de família, houve o rompimento com a premissa de que as uniões matrimonializadas eram o único instituto formador e legitimador da família brasileira, quando em seu artigo 226, outorga especial proteção as formas plurais de família.
Em seu § 3º, reconhece a existência da união estável, concedendo-lhe a mesma proteção outorgada ao casamento. Ocorre que algumas dessas uniões, não têm merecido tratamento jurídico, como no caso em uma relação estável mantida entre um homem e uma mulher impedidos de casar, hodiernamente chamadas de uniões dúplices.
Ressalta-se que os relacionamentos estáveis existentes entre um homem e uma mulher fora do casamento sempre existiram, porém o legislador não cuidou de dar tratamento jurídico aos efeitos dela decorrentes, limitou-se a ressurgir a velha figura do "concubinato", disposto no art. 1.727: "As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato". [84]
A doutrina pouco aborda este tipo de relação, analisando menos ainda os efeitos patrimoniais dela decorrentes. Neste sentido vislumbra Rizzardo:
A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inc. VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. Ou seja, não incidem, nas situações acima, as normas que regulamentam a união estável e o direito sucessório. Uma vez envolvendo a união estável pessoas impedidas de casarem, cuja relação ditada no art. 1.521, não encontra amparo na busca da meação e da quota hereditária.[...] [85]
Neste contexto, nota-se que a união dúplice não é merecedora da concessão dos mesmos direitos outorgados à família formada pelo casamento ou pela união estável.
Outrossim, se a constituição outorgando especial proteção às entidades familiares em seu art. 226, não restringiu em seu § 3º a união estável entre um homem e uma mulher impedidos de casar, a união supra mencionada, desde que revestida dos requisitos que caracterizam a união estável, também se encontra abrigada pela norma constitucional, merecendo a proteção do Estado.
Como já mencionado, a Carta Magna, ao preconizar o princípio da Dignidade Humana, provoca uma profunda alteração no paradigma de família. A partir dele, os requisitos para a constituição de uma entidade familiar não são mais jurídicos e sim fáticos: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor.
Destarte, existindo a possibilidade de manifestação de afeto, através da convivência pública e duradoura, estaremos diante de uma entidade familiar, negar essa perspectiva significa negar a própria realidade da sociedade contemporânea.
Com efeito, os casos de união estável concomitante com o casamento foram aparecendo nos tribunais com o objetivo de achar a solução quanto à partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum, evitando assim que o cônjuge saia enriquecido de forma injusta, portanto é de suma importância analisar o entendimento dos tribunais em face de posição esposada.
Em lapidar decisão, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pela sua 8º Câmara Civil, na Apelação Civil, relatada pelo Desembargador Rui Portanova, reconheceu à companheira direito à chamada triação, concedendo a ela os mesmos direitos patrimoniais reconhecidos à esposa.
Nas conclusões do voto, o relator afirma que:
Não é de hoje, que tenho entendido possível o reconhecimento das uniões paralelas ou uniões dúplices.
Tenho sustentado que, se a partir do cotejo dos elementos específicos que o caso concreto apresenta, restarem evidenciados os requisitos caracterizadores da união estável (art. 1.723 do CC), considero o reconhecimento da segunda união, em concomitância ao casamento, ser a medida mais adequada à realidade e ao estágio atual de convivência entre as pessoas em nossa sociedade.
O contrário disso, é fechar os olhos a uma realidade que cada vez mais tem batido à porta do Judiciário, não sendo possível o Estado deixar de dar a devida tutela a toda uma história de vida das pessoas envolvidas no litígio, sob pena de causar uma grave injustiça. [86] [grifou-se]
Neste sentido, interessante colacionar as palavras da conceituada magistrada Maria Berenice Dias, em voto proferido no julgamento da Apelação Cível:
O ordenamento civil, consubstanciado no princípio da monogamia, não reconhece efeitos à união estável quando um do par ainda mantém íntegro o casamento (art. 1.723, §1º, do Código Civil). Certamente, esse é o ideal da sociedade: um relacionamento livre de toda a ordem de traições e, se possível, eterno até que "a morte os separe".
Contudo, a realidade que se apresenta é diversa, porquanto comprovada a duplicidade de células familiares. E conferir tratamento desigual a essa situação fática importaria grave violação ao princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana. O Judiciário não pode se esquivar de tutelar as relações baseadas no afeto, não obstante as formalidades muitas vezes impingidas pela sociedade para que uma união seja "digna" de reconhecimento judicial.[87][grifou-se]
Neste contexto a corte do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a partir de recentes julgamentos, vem reconhecendo a possibilidade de existência de uniões paralelas, conforme arestos que seguem:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união estável entre a autora e o de cujus em período concomitante ao seu casamento. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. DERAM PROVIMENTO. [88]
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. RELACIONAMENTO PARALELO AO CASAMENTO. Se mesmo não estando separado de fato da esposa, vivia o falecido em união estável com a autora/companheira, entidade familiar perfeitamente caracterizada nos autos, deve ser reconhecida a sua existência, paralela ao casamento, com a conseqüente partilha de bens. Precedentes. Apelação parcialmente provida, por maioria. (SEGREDO DE JUSTIÇA). [89]
EMENTA: EMBARGOS INFRINGENTES. UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO. RECONHECIMENTO. Ainda que o falecido não tenha se separado de fato e nem formalmente da esposa, existindo a convivência pública, contínua, duradoura e o objetivo de constituir família com a companheira, há que se reconhecer a existência da união estável paralela ao casamento. O aparente óbice legal representado pelo § 1º do art. 1723 do Código Civil fica superado diante dos princípios fundamentais consagrados pela Constituição Federal de 1988, principalmente os da dignidade e da igualdade. EMBARGOS INFRINGENTES DESACOLHIDOS, POR MAIORIA. (SEGREDO DE JUSTIÇA). [90]
O Superior Tribunal de Justiça, majoritariamente, não reconhece as uniões paralelas, sob o argumento de que esse posicionamento ofende a Lei 9.278/96 (Lei da União Estável), pois segundo a norma, não é possível o reconhecimento da união estável simultânea ao casamento, vejamos ementário que segue:
União estável. Reconhecimento de duas uniões concomitantes.
Equiparação ao casamento putativo. Lei nº 9.728/96.
1. Mantendo o autor da herança união estável com uma mulher, o posterior relacionamento com outra, sem que se haja desvinculado da primeira, com quem continuou a viver como se fossem marido e mulher, não há como configurar união estável concomitante, incabível a equiparação ao casamento putativo.
2. Recurso especial conhecido e provido. [91]
De acordo com o entendimento da ministra Nancy Andrighi, a existência de impedimento para se casar por parte de um dos companheiros, como, por exemplo, na hipótese de a pessoa já ser casada, mas não separada judicialmente, impede a constituição de união estável, conforme voto proferido pela Eminente ministra no recurso Especial:
Direito civil. Família. Recurso especial. Ação de reconhecimento de união estável.Casamento e concubinato simultâneos. Improcedência do pedido.
- A união estável pressupõe a ausência de impedimentos para o casamento, ou, pelo menos, que esteja o companheiro(a) separado de fato, enquanto que a figura do concubinato repousa sobre pessoas impedidas de casar.
- Se os elementos probatórios atestam a simultaneidade das relações conjugal e de concubinato, impõe-se a prevalência dos interesses da mulher casada, cujo matrimônio não foi dissolvido, aos alegados direitos subjetivos pretendidos pela concubina, pois não há, sob o prisma do Direito de Família, prerrogativa desta à partilha dos bens deixados pelo concubino.
- Não há, portanto, como ser conferido status de união estável a relação
concubinária concomitante a casamento válido.
Recurso especial provido. [92]
Nota-se, que a relatora, reflete que, se a prova atesta a simultaneidade das relações conjugal e de concubinato, devem prevalecer os interesses da mulher casada, cujo matrimônio não foi dissolvido, pois não há sob a ótica do Direito de Família, prerrogativa desta partilha de bens.
Cumpre acrescer que efetivamente houve o estabelecimento de duas famílias e o judiciário não pode se esquivar de tutelar às relações, como interpretador da lei, têm sempre que se conduzir pelo mundo dos fatos.
Entretanto, mesmo que não se trate de objeto do presente estudo, a jurisprudência dos Tribunais de segunda instância, nos casos postos à análise que diz respeito com direito ao pensionamento em razão da morte do companheiro casado, vem conferindo efeito às uniões paralelas, conforme decisões prolatadas:
PENSÃO PREVIDENCIÁRIA. Partilha da pensão entre a viúva e a concubina. Coexistência de vínculo conjugal e a não separação de fato da esposa. Concubinato impuro de longa duração. "Circunstâncias especiais reconhecidas em juízo". Possibilidade de geração de direitos e obrigações, máxime, no plano da assistência social. Recurso especial não conhecido. (STJ – REsp 742685/RJ – 4ª T. – Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca – j. 4/8/2005). [93]
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 284 DO STF. SERVIDOR PÚBLICO. PENSÃO POR MORTE. RATEIO PROPORCIONAL ENTRE A ESPOSA LEGÍTIMA E A COMPANHEIRA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DESTA CORTE.
1. A alegação de ofensa genérica à lei federal, sem a particularização dos dispositivos legais tidos por vulnerados, implica deficiência de fundamentação, atraindo a incidência do verbete da Súmula n.º 284 do Supremo Tribunal Federal 2. Reconhecida a união estável com base no contexto probatório carreado aos autos, é vedada, em sede de recurso especial, a reforma do julgado, sob pena de afronta ao verbete sumular n.º 07 desta Corte.
3. Comprovada a vida em comum por outros meios, a designação da companheira como dependente para fins de pensão por morte é prescindível. Precedentes.
4. Inexistindo qualquer fundamento relevante que venha infirmar as razões consideradas no julgado agravado, deve ser mantida a decisão por seus próprios fundamentos.
5. Agravo regimental desprovido. [94]
Em suma, a duplicidade de uniões é uma realidade que se apresenta ao Judiciário, não sendo possível o Estado deixar de prestar a devida tutela por falta de previsão para este tipo de relação, pois destratar mencionada relação não lhe outorgando qualquer efeito, atenta contra o macro princípio da dignidade na pessoa de seus partícipes.
CONCLUSÃO
Após a implementação das profundas e substanciais alterações operadas pela Constituição Federal de 1988, o Direito de Família passa por um processo de reconstrução, exigindo releitura das normas sob o prisma dos princípios constitucionais, em especial à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, erigido como status do Estado Democrático de Direito.
Além disso, o monopólio do casamento como único meio legitimador da formação da família, caracterizado pela excessiva preocupação voltada para si mesmo e nas relações patrimoniais, deixou de existir com os princípios preconizados na Carta Magna, desviando o foco de proteção à família "nas pessoas de cada um dos que a integram".
Assim, há de se mencionar que a Carta Magna vigente, em seu art. 226, caput, assevera que "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado". Vai além nos §§ 3º e 4º, do mesmo artigo, quando reconhece a união estável e a família monoparental, respectivamente, como forma de constituição de família, propalando o princípio da pluralidade de formas de família.
Outrossim, o fato de a Constituição erigir como entidades familiares, as formadas pelo casamento, pela união estável e pelos grupos monoparentais não constituem elas numerus clausus, podendo-se incluir outras que preencham determinados requisitos.
Sublinhe-se que o constituinte, ao tratar de família, omitiu a locução "constituída pelo casamento", assim pode-se concluir que o caput do art. 226 é cláusula geral de inclusão, não sendo lícito excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade, com o objetivo de constituir família.
Destarte, as pessoas que constituem comunidades afetivas não explicitadas no art. 226 por livre escolha ou em virtude de circunstâncias existenciais, não podem sofrer restrições ou discriminações, deixando o Estado de prestar a devida tutela, o que comprometeria ao máximo a realização do princípio da dignidade humana.
Por outro lado, o Estado reconhece a impossibilidade de proteger ambas as entidades, não restando dúvida de que é um caso que foge dos parâmetros de normalidade, outrossim, as relações estabelecidas repercutem no mundo jurídico, a exigir regulamentação e proteção do Estado.
Por derradeiro, importa destacar-se que com a evolução do Direito e da visão de seus aplicadores, passou-se a entender que seria injusto proteger algumas entidades familiares em detrimento de outras, outorgando as uniões paralelas o mesmo status de entidade familiar e concedendo os efeitos patrimoniais dela decorrentes.
E suma, as uniões entre um homem e uma mulher impedidos de casar são recorrentes, não tem como se ocultar à existência de tais relações no âmbito social. Em momento algum pode o direito fechar os olhos à realidade e decidir as questões postas em julgamento com base em preconceitos pessoais e sociais.
Deve o juiz guiar-se pelos princípios gerais a fim de que se possa realizar a justiça social no caso concreto, em especial ao princípio da dignidade da pessoa humana, evitando assim tratar de maneira desigual os iguais.