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O poder investigatório do Ministério Público brasileiro na esfera criminal

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Agenda 05/04/2009 às 00:00

RESUMO

O presente estudo escolheu como objetivo a análise da possibilidade do desenvolvimento da investigação criminal direta por membro do Ministério Público. A importância e atualidade deste trabalho são latentes, ante o fervoroso debate que vem sendo travado na jurisprudência e na doutrina. A avaliação do referido tema partiu da origem e da formação histórica da Instituição, a qual alcançou, com a Constituição Federal de 1988, a maximização da sua importância na consolidação do novo paradigma de Estado brasileiro. Constatou-se que o Órgão Ministerial exsurge, protegido por um arcabouço de princípios e garantias constitucionais que o credenciam a titularizar a ação penal, requisitar diligências e a instauração de inquérito policial, fiscalizar a adequada aplicação da lei e desempenhar o controle externo da atividade policial, aproximando-o do campo investigatório. Em seguida, foi demonstrada, sem olvidar corrente que sustenta posicionamento diverso e o ambiente em que foi deflagrada a celeuma jurídica, a conformidade constitucional da função investigatória ministerial e o seu amparo em inúmeras normas infraconstitucionais, de modo a afastar a exclusividade policial na condução do procedimento investigatório penal, descortinando-se, ao fim, sugestões acerca da atuação do promotor investigador, a tendência mundial da investigação conduzida pelo Parquet, suas vantagens e desvantagens, bem como seus limites legais.

Palavras-chave: Ministério Público. Investigação Criminal. Poder Investigatório. Possibilidade. Instrumentalização. Limites.


1 INTRODUÇÃO

A presente monografia tem como finalidade analisar a possibilidade de o Ministério Público presidir sua própria investigação criminal, sem ter a pretensão de querer estabelecer qualquer tipo de axioma ou verdade absoluta sobre o tema.

Para tanto, utilizando como bússola a Carta Constitucional, procura-se navegar no conturbado cenário nacional, em que posições antagônicas são defendidas por renomados doutrinadores, bem como pelos mais variados Tribunais e entidades de classe, descortinando a contemporaneidade e relevância da temática.

Neste contexto, deve-se destacar que as posições contrárias à atuação do Ministério Público na investigação criminal ganharam força quando a elite brasileira, anteriormente, "imune" ao Direito Penal, passou a ser trazida à Justiça Criminal.

Ademais, não se pode deixar de registrar que a estrutura policial brasileira, submissa e deficitária, teve grande responsabilidade para efetivar a máxima milenar de que somente os pobres, os pretos e as prostitutas seriam alvo do inquérito policial.

Não é a proposta do presente trabalho, no entanto, diminuir ou menosprezar a atividade policial, mas creditar somente a Polícia Civil e a Polícia Federal a exclusividade da investigação criminal seria correr o risco de repetir a amarga história brasileira.

Superada a impunidade secular de uma elite econômica, que sempre elogiou a atuação ministerial no combate aos crimes, sobretudo patrimoniais, cometidos contra a mesma, passa a ser o Ministério Público, a partir de então, alvo de investidas, buscando aplacar a investigação ministerial, colocar medo, freio e, até mesmo, mordaça nos seus membros, como se numa ditadura estivesse o Brasil.

Assim, pretende-se, no primeiro capítulo, demonstrar como se deu a gênese da Instituição Ministerial, bem como seu desenvolvimento e sua consolidação com a Constituição de 1988, a qual assenta os pilares de sua atuação na hodierna sistemática jurídica brasileira.

No segundo capítulo, mergulha-se nas atribuições ministeriais na seara criminal, sepultando a figura do Promotor Implacável, durante muitos anos, atribuída aos membros do Parquet que militavam na persecução penal, pelo proativo defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

São trazidos, no capítulo final, os fundamentos da corrente que se posiciona contra a investigação ministerial, para, só então, demonstrar as bases nacionais e estrangeiras que, concessa maxima venia, descredenciam tal entendimento, bem como os balizamentos para consolidar uma atuação alinhada à preservação dos direitos e garantias fundamentais dos investigados.

Colocadas tais pontuações, fica o propósito de contribuir, humildemente, com o debate, no ansioso aguardo do seu desfecho, a ser proferido pelo Supremo Tribunal Federal, valoroso guardião da ordem constitucional pátria, e que, com certeza, qualquer que seja ele, não retirará do Ministério Público a nobre missão de velar pela promoção da Justiça.


2 O MINISTÉRIO PÚBLICO E SUA CONSOLIDAÇÃO NO BRASIL

2.1 ORIGEM DO MINISTÉRIO PÚBLICO

O Ministério Público tem sua origem ainda não pacificada, trilhando a doutrina variados posicionamentos sobre o assunto. Predomina, entretanto, o entendimento de que foi na França que a Instituição conseguiu dar seus primeiros passos em busca da sua atual formatação.

Deste modo, podem ser encontrados estudos que evidenciam os primeiros vestígios da atividade ministerial na figura egípcia do magiaí, detendo o mesmo as funções de ser os olhos e a fala do rei; castigar os rebeldes, reprimir os violentos e proteger os cidadãos comuns; acolher os pedidos que lhe fossem feitos por homens justos, perseguindo criminosos; ser o marido da viúva e pai dos órfãos; fazer ouvir as palavras da acusação, indicando os dispositivos legais pertinentes aplicáveis em cada caso concreto e tomar parte nas instruções, visando ao descobrimento da verdade [01].

De outro lado, existem indicações de que, na Antigüidade Clássica, foram realizados os contornos iniciais da Instituição, ora nos éforos de Esparta, os quais exerciam o ius accusatonis e deveriam manter o equilíbrio entre o poder real e o poder senatorial, ora nos thesmotetis ou temóstetas gregos, que velavam pela aplicação das leis, ora nas figuras romanas dos advocati fisci, e os procuratores caesaris, que tinham, respectivamente, o dever de defender o Estado Romano e Tesouro do Caesar.

Seguindo no curso da história, outras tantas possíveis fontes são apontadas para o Ministério Público, tais como os saions, bailos, senecais, missi dominici, gastaldi ou gemeiner anklager encartados na Idade Média, bem como o vindex religionis do direito canônico e o advocatus de parte publica ou os advogadori di comum della repubblica ou os conservatori delle leggi di Firenz, de origem italiana [02].

Por fim, tendo em vista que todas as tentativas de encontrar as raízes do Ministério Público utilizam como premissa a fiscalização de atos ilegais, é na figura dos procureurs du roi (procuradores do rei) do direito francês que se encontra sua origem mais precisa, como relata Paulo Rangel:

A origem, assim, mais aceita e bem delimitada do Ministério Público se dá no Direito Francês que, com o advento da Revolução Francesa, em 1789, deu uma estrutura mais adequada à instituição, tanto que a expressão até hoje usada por nós para significar o Ministério Público é francesa: parquet, que significa assoalho. [03]

Assim, com o transcorrer dos anos, a Instituição deixou de defender apenas os interesses pessoais do soberano francês, passando a desempenhar um mister público de interesse do Estado. Foram moldadas, embrionariamente, com as várias ordennances reais (1302, 1335, 1493, 1498, 1670) e o Decreto de 08 de maio de 1790, as funções ministeriais de dominus litis e a de custos legis, bem como a garantia da vitaliciedade de seus membros.

2.2 a formação HISTÓRICA do MP BRASILEIRO

De forte influência lusitana em seu primórdio, a formação histórica do Ministério Público no Brasil iniciou-se com as Ordenações Afonsinas de 1447, ante a previsão da figura do procurador de justiça a quem competia levar à Justiça, as viúvas, órfãos e pessoas miseráveis, ex vi do disposto no Título VIII (Do procurados dos nossos feitos), no Título XIII (Dos procuradores, e dos que nom podem fazer procuradores) [04].

Outrossim, foram as Ordenações Manuelinas de 1521 que fizeram a primeira menção expressa aos deveres do Promotor de Justiça, o qual deveria ser:

[...] letrado e bem entendido pera saber espertar, e aleguar as causas e razoes, que para lume e clareza da Justiça e para inteira conseruaçam della conuem, ao qual Mandamos que com grande cuidado, e diligencia requeira todas as cousas que pertencem aa Justiça, em tal guisa que por sua culpa, e negrigencia nom pereça, porque fazendo o contrairo, Nós lhe estranharemos segundo a culpa nello teur [05].

Já com as Ordenações Filipinas de 1603, criou-se a figura do Promotor de Justiça, nomeado pelo Rei e intitulado de Promotor de Justiça da Casa da Suplicação, tendo como funções básica "[...]requerer tôdas as cousas que tocam à Justiça, com cuidado e diligência, em tal maneira que por sua culpa e diligência não pereça; [...] formar libelos contra os seguros, ou presos, que por parte da justiça hão de ser acusados na Casa de Suplicação pôr acordo da Relação" [06].

De outro lado, o primeiro texto genuinamente brasileiro a fazer menção à figura do "Promotor de Justiça" [07] foi o diploma de 09 de janeiro de 1609 que regulamentou o Tribunal de Relação da Bahia, trazendo em sua composição 10 (dez) desembargadores, 1 (um) procurador dos feitos da Coroa e da Fazenda e 1 (um) promotor de justiça.

Com a Independência do Brasil, exsurge a Carta Política de 1824, a qual, embora marcada por fortes traços liberais, não conferiu sistematização constitucional ao Ministério Público, cabendo ao Código de Processo Criminal de 1832, dispor que competirá ao promotor de justiça ou a qualquer do povo o oferecimento de denúncia pela prática de infração penal, cabendo ao denunciante requerer a prisão e punição do infrator.

O Código de Processo Criminal foi reformado em 1841, sendo criada a figura do Promotor Público, nomeado e demitido pelo Imperador ou pelos Presidentes das províncias, preferindo sempre os Bacharéis formados, que foram "idôneos", podendo o Juiz de Direito, na falta ou impedimento, nomear outro interinamente [08].

Em 1890, com os Decretos de nº 848 e nº 1.030, que organizaram, respectivamente, a Justiça Federal e a Justiça do Distrito Federal, o Ministério Público passou a ser tratado como instituição democrática, adquirindo autonomia e estabilidade.

A história brasileira revela que a Constituição de 1891, malgrado tenha feito menção à escolha do Procurador-Geral da República dentre os membros do Supremo Tribunal Federal, no Capítulo que tratava do Poder Judiciário, não alçou o Ministério Público ao patamar constitucional, limitando-se a credenciar o chefe da Instituição a propor revisão criminal a favor do réu.

Ante a eclosão do golpe militar de 1930, encerrado foi o primeiro ciclo republicano brasileiro. Instalou-se um governo provisório, sendo convocada uma Assembléia Nacional Constituinte, promulgando, em 1934, a terceira Constituição do Brasil. O Ministério Público foi institucionalizado no seio constitucional, separado do Poder Judiciário, conseguindo seus membros estabilidade, a regulamentação do ingresso na carreira e a paridade de vencimentos com a magistratura.

Sempre experimentando conquistas efêmeras, a Instituição Ministerial, com a Constituição de 1937, promulgada num ambiente de instabilidade política interno e externo, sofre forte retrocesso, sendo lembrada, pontualmente, em alguns dispositivos que faziam menção ao Procurador-Geral da República e ao quinto constitucional.

O Código de Processo Civil, de 1939, trouxe a obrigatoriedade da intervenção ministerial em diversas situações jurídicas, como custos legis, na defesa de interesses considerados relevantes, ao passo que o Código de Processo Penal de 1941, chancelou ao Ministério Público o poder de requisitar a instauração de Inquérito Policial e diligências durante as investigações policiais, bem como a titularidade da ação penal.

Somente com a denominada Constituição Redentora, de 1946, foi que o Ministério Público teve proclamada sua independência em relação aos demais poderes, ganhando um título à parte. Restauraram-se as garantias da estabilidade, da inamovibilidade dos seus membros e do ingresso mediante concurso público, outorgando-lhe a representação da União em Juízo.

Não obstante tenha conseguido a legitimação para representar pela inconstitucionalidade de leis e atos normativos, o Procurador-Geral da República, ainda estava vinculado ao governo, como destaca Marcos Kac:

Para melhor compreensão do sistema constitucional vigente, um Promotor de Justiça que atuava no limite de suas atribuições, sem, contudo, dispor de parcela de poder estatal, tinha mais estabilidade que o Procurador-Geral da República, que podia a qualquer tempo ser destituído de seu cargo e substituído por alguém que melhor interessasse à política do governo, referência à chamada demissão ad nutum. [09]

Já a Carta de 1967, deflagrada num período ditatorial, recoloca o Ministério Público no capítulo do Poder Judiciário, mantendo a representação da União em Juízo e a nomeação do Procurador-Geral da República sob competência do Presidente da República, ad referendum do Senado. As prerrogativas de estabilidade e inamovibilidade foram preservadas, ficando o acesso inicial à carreira dependente de aprovação em concurso de provas e títulos.

Com a Carta de 1969 (Emenda Constitucional nº 1/69), retorna o Ministério Público ao capítulo do Poder Executivo, ficando asseguradas a autonomia de organização e a carreira, conforme os preceitos do ordenamento anterior. Retirados foram, no entanto, a isonomia de condições de aposentadoria e vencimentos dos magistrados, assim como a independência funcional, ante a submissão do Chefe da Instituição ao Poder Executivo.

Outros diplomas normativos surgem com o tempo, tais como o Código de Processo Civil de 1973, a Emenda Constitucional nº 07/77, a Emenda Constitucional nº 32/78, a Lei Complementar nº 40/81 e a Lei nº 7.347/87, dando uma roupagem mais robustecida ao Ministério Público. De um mero defensor dos interesses do Rei, passa o Parquet a ter seu caminho pavimentado para estrelar no papel principal do espetáculo da Democracia, que seria inaugurado com a Constituição Federal de 1988.

2.3 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E O NOVO MINISTÉRIO PÚBLICO

Após o Brasil desfrutar de tenebrosos períodos de incerteza e insegurança jurídica, ficando a lição de que o Ministério Público e a Democracia precisam um do outro para se fortalecer, ganha o Parquet, com a Carta Magna de 1988, o status constitucional de Instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

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Neste contexto, contemplando a Lex Fundamentalis os anseios populares que eclodiam nas ruas, foram guindados, como seus fundamentos, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Foram eleitos, como objetivos fundamentais, pela Carta de Outubro a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais; e a promoção do bem de todos, sem qualquer tipo de discriminação, na expectativa de tornar o Brasil do futuro numa uma potência do presente.

Não se limitando, contudo, a anunciar paradigmas para a construção de um novo Brasil, confiou a Norma Maior ao Ministério Público a missão de pautar sua atuação em busca de tais ideais, utilizando, como anuncia Carlos Jatahy, "o Direito como instrumento de transformação social da realidade social, fazendo com que os fatores que ensejam e mantêm a injustiça social sejam eliminados" [10].

Tratado de forma mais sistemática e adequada, estava o Parquet posto para garantir à sociedade, na definição de Tourinho Filho, "o direito de ter em seu favor um corpo institucional, que se alteia, com atribuições para repelir até mesmo, os desmandos do poder político, com somatório de força nunca visto" [11].

O Ministério Público passou a estar, a partir de então, dissociado de qualquer dos três Poderes, sendo-lhe concedida a iniciativa legislativa de criação e extinção de cargos e a fixação de vencimentos. Deferida, ainda, foi a capacidade de se auto-organizar, por meio de estatuto próprio, bem como de elaborar seu projeto orçamentário e de participar, ativamente, com a formulação de lista tríplice, da escolha de sua liderança, nos Estados e Distrito Federal, pelo Chefe do Poder Executivo.

Ademais, a destituição do Procurador-Geral da República e dos Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal somente passa a encontrar respaldo no aval da maioria absoluta do Senado Federal ou da Assembléia Legislativa, respectivamente.

Assim, criados estavam os mecanismos idôneos a credenciar o Ministério Público a assumir o papel mais importante de sua história, como assevera Celso Bastos:

Nenhuma das Constituições pretéritas deu ao Ministério Público o tratamento extensivo de que goza na Constituição de 1988. E não é de minúcias de que se trata. Mas sim de revesti-lo de prerrogativas e competências inéditas no passado.

O Ministério Público tem sua razão de ser na necessidade de ativar o Poder Judiciário, em pontos em que este remanesceria inerte porque o interesse agredido não diz respeito a pessoas determinadas, mas a toda coletividade [12].

No mesmo sentido, pontifica José Afonso da Silva:

O Ministério Público vem ocupando lugar cada vez mais destacado na organização do Estado, dado o alargamento de suas funções de proteção de direitos indisponíveis e de interesse coletivos. A constituição de 1891 não o mencionou, senão para dizer que um dos membros do Supremo Tribunal Federal seria designado Procurador-Geral da República, mas uma lei de 1890 (de n. 1030) já o organizava como instituição. A Constituição de 1934 o considerou como órgão de cooperação nas atividades governamentais. A de 1946 reservou-lhe um título autônomo, enquanto a de 1967 o incluiu numa seção do Poder Judiciário e a sua Emenda 1/69 o situou entre os órgãos do Poder Executivo. Agora, a Constituição lhe dá relevo de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. [13]

O Ministério Público brasileiro vira, desta forma, a página de sua história, deixando para trás um passado de subserviência aos interesses do Estado, de mero apêndice dos governos militares, para, hoje, assumir um papel, como perfilha Marcelo Zenkner, fundamental na defesa do Estado Democrático de Direito, "estando talvez na fase final de estabilização do perfil que a Constituição de 1988 lhe deu." [14]

Municiado, enfim, com arsenal de princípios, garantias e vedações constitucionais, assustadoramente, superior ao da Polícia ou de qualquer outra Instituição brasileira, encontra-se o Ministério Público legitimado para presidir, em determinadas situações, suas próprias investigações, como se pretende demonstrar a seguir.

2.3.1 Princípios Vetores do MP

Como é cediço, define Aurélio Buarque a palavra princípio, etimologicamente, como o "Momento ou local ou trecho em que algo tem origem; Causa primária; elemento predominante na constituição de um corpo orgânico [15]".

Dando contornos jurídicos ao termo princípio, percebe-se que princípios são normas fundamentais, na esteira do magistério de Aury Lopes Júnior, "fruto de uma generalização sucessiva e constituem a própria essência do sistema jurídico, com inegável caráter de norma" [16], possuindo as seguintes funções: a) fundamentadora, estabelecer as diretrizes básicas de todo um sistema de normais constitucionais; b) interpretativa, buscar o verdadeiro alcance da lei no momento de sua aplicação; e c) supletiva, integrar o ordenamento jurídico [17].

No mesmo trilhar, leciona Norberto Bobbio:

[...] se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devem ser normas também eles: se abstraio da espécie animal, obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são extraídos ou empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, função de regulamentar um caso [18].

Não se pode confundir, entretanto, os princípios com as regras, sendo relevante a distinção feita por Humberto Ávila:

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou os princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.

Como se vê, os princípios são normas finalísticas. Eles estabelecem um fim a ser atingido [19].

Ao aplicador do direito, não é dada jamais a petulância de, na sua atividade, desrespeitar os princípios, sob pena de colocar em xeque a própria ordem jurídica vigente, sendo valiosos os ensinamentos de Bandeira de Melo:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas ao específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada [20].

Feitas estas breves considerações, registrando que cada disciplina jurídica é constituída por um conjunto de princípios que lhe dá especificidade em relação do regime de outras disciplinas, impõe-se analisar os princípios afetos ao Ministério Público, enquanto Instituição.

Partindo do art. 127, §1º, da Constituição Federal de 1988, que faz referência expressa aos princípios institucionais da unidade, da indivisibilidade, e da independência funcional, tratar-se-á também do princípio do promotor natural, no intuito de fechar o arcabouço principiológico que imuniza a instituição de pressões, com epicentros externos e internos, na investigação, ação ou fiscalização, em qualquer ramo do Direito.

2.3.1.1 Princípio da Unidade

A unidade do Ministério Público significa que todos os órgãos que o integram compõem uma só instituição, sob a chefia do Procurador-Geral de Justiça. Os membros do Parquet, ao exercerem suas atribuições, atuam em nome da instituição, ainda que esboçando posicionamentos divergentes, sob o amparo do princípio da independência funcional.

A unidade ministerial deve ser concebida dentro de cada órgão, não se falando em unidade entre o Ministério Público da União e os Ministérios Públicos dos Estados, uma vez que cada qual possui autonomia financeira e orgânica, com suas respectivas chefias.

De outro lado, pode-se cogitar, numa óptica funcional, como destaca Emerson Garcia, a possibilidade da existência de um único Ministério Público, "[...]já que a instituição por intermédio de cada um dos seus ramos, desempenha, no seu âmbito de atuação, as funções institucionais que lhe foram atribuídas pelo texto constitucional" [21].

Viabilizada, desse modo, fica a troca de informações sigilosas entre o Ministério Público Federal e o Ministério Estadual para a instrução de procedimento deste último ou vice-versa, bem como o litisconsórcio ativo entre Ministérios Públicos diversos, contemplado pelos art. 5º, § 5º, da Lei nº 7.347/85 e art. 210, § 1º, da Lei nº 8.069/90.

Com efeito, o salutar embate institucional também pode acontecer quando dois órgãos de Ministério Público distintos alegam ausente qualquer tipo de atribuição para funcionar em determinado caso. Cabe ao Supremo Tribunal Federal sepultar a discussão, nos termos do art. 102, inciso I, f, da Constituição Federal.

Nesta linha, posiciona-se Paulo Cezar Carneiro:

[...] não é necessária nenhuma interpretação extensiva ou implícita, lógica ou sistemática, para conferir ao STF a competência para dirimir conflitos de atribuições entre membros de Ministério Público de Estados diversos, pois este tipo de conflito se dá em realidade entre os próprios Estados através de seus respectivos órgãos, pois a partir deles é que o Estado atua. [22]

2.3.1.2 Princípio da Indivisibilidade

O princípio da indivisibilidade, transcendendo como reflexo do princípio da unidade, permite que um membro do Ministério Público substitua outro, na mesma função, sem acarretar qualquer tipo de mácula ou vício, no caso em que tal substituição revelar-se necessária.

Esta substituição deve observar a forma prevista em lei e nos atos administrativos prévios, não podendo ocorrer, de forma aleatória ou casuística, para atender os anseios do Procurador-Geral ou da Administração Superior, sob pena de violar o princípio do Promotor Natural, adiante estudado.

Plenificado dentro de cada Ministério Público, na esfera federal ou estadual, o princípio da indivisibilidade assegura a ininterrupção das atividades ministeriais, sendo lapidar a lição de Tourinho Filho:

Dentro de cada um desses Ministérios Públicos seus membros podem ser substituídos uns pelos outros. A substituição, contudo, como se infere da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, do Estatuto do Ministério Público da União e das Leis Orgânicas dos Ministérios Públicos de cada Estado, não pode ser feita ao bel-prazer do Procurador-Geral. Ela é prevista em lei, e nenhuma substituição pode ser feita ao arrepio. Não pode o chefe do Parquet designar este ou aquele membro do Ministério Público para agir em nome do titular, salvo nas hipóteses de remoção, promoção, suspeição, impedimento, vale dizer nas hipóteses legais. A indivisibilidade está contida na unidade, já que as substituições, nos casos previstos em lei, só podem ocorrer em cada um dos Ministérios Públicos. [...] Cada Ministério Público é um só corpo com o respectivo Chefe. Indivisível. Quando um dos seus membros fala, fala pela Instituição a que está vinculado. [23]

2.3.1.3 Princípio da Independência Funcional

Contempla o princípio da independência funcional a liberdade de convicção dos membros do Ministério Público, os quais devem exarar, fundamentadamente, suas manifestações, no exercício da atividade-fim, de acordo com sua consciência e os ditames da lei, dissociados de qualquer interferência hierárquica superior.

Mostra-se a independência funcional presente, exemplificativamente, no art. 28 do Código de Processo Penal, como assevera Alexandre de Moraes,

[...] pois, discordando o Procurador-Geral de Justiça da Justiça da promoção do arquivamento do Promotor de Justiça, poderá oferecer denúncia, determinar diligências, ou mesmo designar outro órgão ministerial para oferecê-la, mas jamais poderá determinar que o proponente do arquivamento inicie a ação penal [24].

Não têm o Procurador-Geral e a Administração Superior qualquer tipo de ingerência nas manifestações dos Promotores ou dos Procuradores, aquilatadas na seara judicial ou extrajudicial, visto que, como pontifica Hugo Mazzilli, "[...] os membros do Ministério Público são agentes políticos – ou seja, órgãos independentes do Estado, situados no topo da esfera hierárquica de competência, como o são os membros do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário" [25].

Protegidos contra as retaliações do poder político ou econômico, eventualmente, contrariado com a intervenção ministerial, estão os integrantes do Ministério Público, com duas garantias vitais, conferidas pelo princípio da independência funcional, para o pleno exercício de sua função, como resume Emerson Garcia:

a) podem atuar livremente, somente rendendo obediência à sua consciência e à lei, não estando vinculados às recomendações expedidas pelos órgãos superiores da Instituição em matérias relacionadas ao exercício de suas atribuições institucionais; b) não podem ser responsabilizados pelos atos que praticarem no exercício de suas funções, gozando de total independência para exercê-las em busca da consecução dos fins inerentes à atuação ministerial [26].

Vale registrar que a hierarquia existente no Ministério Público fica contida apenas às questões de caráter administrativo (deferimento de férias, licenças, afastamentos etc.), sendo crime de responsabilidade qualquer ato do Presidente da República que atentar contra o livre exercício do Órgão Ministerial (art. 85, inciso II, da CF/88).

O princípio da independência funcional, cristalizado como umas das maiores prerrogativas ministeriais, franqueia a discordância entre seus pares, até mesmo, dentro de um único processo. Pode um Promotor de Justiça, ao suceder ou substituir outro Promotor, divergir do entendimento antes esposado, bem como um Procurador de Justiça, ofertando seu opinativo, arremessar entendimento contrário ao do representante de primeiro grau.

2.3.1.4 Princípio do Promotor Natural

O princípio do promotor natural ou promotor legal, transbordando como conseqüência da independência funcional e da garantia da inamovibilidade, inadmite que seja retirada a atribuição de um Órgão do Ministério Público para designação de outro, de forma unilateral, pelo Procurador-Geral.

De matriz constitucional, encartada nos art. 5º, incisos XXXVII (não haverá juízo ou tribunal de exceção) e LIII (ninguém será processado senão pela autoridade competente), bem como no art. 129, inciso I (são funções institucionais do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei) e § 2º (as funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira), todos da Carta Magna, o princípio do promotor natural tira de cena as figuras do "Promotor Ad Hoc" e do "Promotor de Encomenda".

Outra não é posição de Hugo Mazzilli:

Há muitos nos temos posicionado contra os chamados promotores de encomenda, escolhidos livremente pelo procurador-geral de Justiça, que discricionariamente os designava e afastava – já o fazíamos sob época da ditadura militar, quando não eram comuns tais críticas. Na verdade, a verdadeira inamovibilidade não teria sentido se dissesse respeito apenas à impossibilidade de se remover o promotor do cargo: era mister agregar-lhe as respectivas funções [27].

O Promotor Natural é, como realça Paulo Rangel, o garantismo constitucional de toda pessoa ter um órgão de execução do Parquet, com suas atribuições previamente estabelecidas em lei, para acusá-la. A razão da existência do princípio é muito mais da sociedade do que da pessoa do Promotor de Justiça, visto que, num Estado Democrático de Direito, a atuação dos órgãos estatais deve ser pautada pelos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade [28].

Com maestria, sintetiza Hermano Queiroz o alcance do princípio do Promotor Natural:

Segundo esse princípio garantista o membro do Parquet, que atua como longa manus do Estado na condução da persecução criminal, deverá exercer o seu mister à luz da inamovibilidade e da independência, sem estar submisso a qualquer regra senão aquela que provenha da lei e dos princípios que informam o MP e o Ordenamento Jurídico pátrio.

A Lex Mater, no seu art. 5º, XXXVII e LIII trouxe a previsão do princípio do promotor natural, de forma implícita, bastando realizar uma autêntica interpretação sistemática do Texto Constitucional, com base nos demais princípios que fundamentam o atual processo penal democrático, para encontrá-lo vivo, palpitante, com eficácia e validade, atuando, sempre, em favor da justiça, do cidadão e da sociedade brasileira. Este princípio tornou-se imprescindível para o perfeito desenvolvimento da persecutio criminis e do devido processo legal, vez que se constitui numa garantia de todo processado de ter um promotor de justiça designado antes mesmo da prática do delito.

O princípio do promotor natural, ao contrário do que poucos acreditam, compatibiliza-se com a existência dos chamados grupos especiais, repudiando, sim, a nomeação dos chamados promotores ad hoc ou de encomenda e exercendo verdadeira restrição sobre os poderes do procurador-geral, que, hoje, encontram limites nesse princípio [29].

Neste diapasão, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou:

O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica destinada tanto a proteger o Membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente de seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e predeterminados, estabelecidos em lei [30].

Assim, fora das hipóteses legais que admitem, expressamente, as designações de Promotores de Justiça para determinados casos (art. 10, inciso IX, e art. 24, ambos da Lei nº 8.625/93), estaria o Procurador-Geral de Justiça satisfazendo somente seus anseios pessoais, em afronta direta ao aludido princípio, rememorando tempo passado, que não deixou saudade.

2.3.2 Garantias ministeriais

As garantias ministeriais são atributos que se destinam a assegurar o livre exercício da função do Ministério Público, enquanto instituição (autonomia funcional, autonomia administrativa e autonomia financeira) e de seus membros (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos), sendo importante destacá-las para sedimentar a possibilidade desta Entidade conduzir suas próprias investigações.

O fundamento desses predicamentos da Instituição e de seus membros, à luz do magistério de Hugo Mazzilli, não é criar uma casta privilegiada de funcionários públicos, mas sim "assegurar a alguns agentes do Estado, apenas em razão das funções que exercem, garantias para que efetivamente possam cumprir seus misteres, em proveito do interesse público" [31].

2.3.2.1 Garantias dos membros do MP

As garantias institucionais dos membros do Parquet, encontrando-se plasmadas no art. 128, § 5º, inciso I, da Carta da República, colocam os integrantes do Órgão em situação análoga a dos magistrados. Funcionam como oxigênio para uma atuação independente, comprometida apenas com os postulados de um Estado de Direito Concretizador.

2.3.2.1.1 Vitaliciedade

Superado o estágio probatório de dois anos de efetivo exercício do cargo, conquistado mediante valoroso concurso público de provas e títulos, adquire o membro do Ministério Público vitaliciedade, só podendo perder o cargo por sentença judicial transitada em julgado.

A garantia da vitaliciedade tem mais força do que a estabilidade conferida aos demais funcionários públicos, uma vez que a perda do cargo, como adverte Araújo Cintra, depende de sentença judicial, ao passo que a estabilidade assegura tão-somente a realização de regular processo administrativo [32].

O representante do Ministério Público, em estágio probatório, terá seu trabalho e sua conduta, regularmente, avaliados pela Corregedoria-Geral do Ministério Público, através de inspeções, correições e análise de peças. Ao final, o aludido Órgão Correcional, elabora relatório acerca do estágio probatório, cabendo ao Conselho Superior do Ministério Público deliberar sobre o vitaliciamento e ao Colégio de Procuradores julgar eventual recurso (art. 12, inciso VIII; art. 15, inciso VII; e art. 17, inciso III, todos da Lei nº 8.625/93).

A pena de demissão para integrantes do Parquet só pode ser aventada enquanto não vitalícios (art. 135 da Lei nº 8.625/93). Confirmado na carreira, somente pode perder o cargo em situações taxativamente especificadas na lei (art. 208, parágrafo único, e 240, inciso V, ambos da Lei Complementar nº 75/93 e art. 38, § 1º, da Lei nº 8.625/93).

Nesta esteira, ocorrendo uma das violações funcionais acima mencionadas, a sanção de perda do cargo deve ser proferida, em comando sentencial, pelo respectivo Tribunal, no bojo de ação própria. Ao Chefe da Instituição é dada tal atribuição, mediante autorização do Colégio de Procuradores (MP Estadual) ou Conselho Superior (MP da União).

2.3.2.1.2 Inamovibilidade

Os presentantes do Ministério Público, em regra, não podem ser removidos ou promovidos sem expressa anuência. A exceção reside na possibilidade da maioria absoluta dos integrantes do Conselho Superior do MP, catalisada pelo interesse público, remover o membro do Parquet do cargo ou função, assegurando-lhe ampla defesa.

Por se tratar de exceção, a flexibilização da garantia da inamovibilidade deve se limitar ao caso previsto no texto constitucional, em prol da preservação do interesse público. Não se deve olvidar que a previsão existente nas legislações estaduais [33] do afastamento cautelar do representante do Ministério Público, durante o transcurso de processo criminal ou disciplinar, em nada contraria tal garantia.

Ressalvando que permanece intocável o vínculo que une o agente ao seu órgão de execução com o afastamento cautelar, pontua Emerson Garcia:

É perfeitamente admissível que a lei orgânica estadual abrigue preceito que autorize o afastamento do membro do Ministério Público, do seu órgão de execução, durante o período integral de tramitação de processo criminal ou disciplinar a que esteja ele respondendo, ou mesmo por um lapso estabelecido, o que, em tese, em nada macularia a garantia constitucional da inamovibilidade, já que permaneceria íntegro o vínculo que une o agente ao seu órgão de execução.

Considerando que o poder geral de cautela é ínsito e inseparável do exercício da função jurisdicional, ainda que a possibilidade de afastamento cautelar não esteja expressamente contemplada na respectiva lei orgânica, não há óbice a que o Poder Judiciário, no curso de uma relação processual, delibere nesse sentido [34].

A remoção compulsória não tem caráter disciplinar, desvinculando-se da pessoa do membro do Ministério Público. Ao buscar preservar o interesse público, assume feição estritamente objetiva e torna facultativa qualquer menção as condições pessoais do agente (antecedentes pessoais, serviços prestados, postura, comprometimento etc.).

2.3.2.1.3 Irredutibilidade de vencimentos

É certo que a Instituição deve atrair os vocacionados para a árdua lida ministerial, sem a promessa de fortuna, mas com a perspectiva de estar credenciado a auferir pagamento digno em virtude da relevância da função. Facilita-se, assim, a seleção de bons profissionais e a permanência e dedicação exclusiva da classe, livrando-se das propostas sediciosas feitas, no passado, pelos demais Poderes.

Com subsídio fixado em patamar proporcional à nobreza da missão, ficam os órgãos de execução, ante a garantia da irredutibilidade de vencimentos, também estendida aos demais servidores públicos (art. 37, inciso X, da CF/88), impossibilitados de sofrer redução no valor dos subsídios mensalmente percebidos.

Em tempos de estabilidade econômica, a faceta mais polêmica da garantia da irredutibilidade, qual seja a irredutibilidade real, passa despercebida em razão da ausência aparente de inflação. De outra banda, calha gizar que, quando o processo inflacionário estava fora de controle, o alcance da mencionada garantia foi reduzido à irredutibilidade nominal, como escreve Hugo Mazzilli:

Tal garantia, porém, tem sido pura falácia, pois num país como o nosso, onde anos a fio tem predominado o total descontrole do governo sobre a inflação, este flagelo costuma reduzir a nada a suposta irredutibilidade, já que nossos tribunais, encampando tese da Suprema Corte norte-americana (em cujo país a inflação não desorganiza na mesma proporção a respectiva economia), têm-se recusado a reconhecer que a dita irredutibilidade seja real (isto é, com direito à atualização monetária) [35].

A garantia da irredutibilidade nominal acaba por enfraquecer a postura altiva e independente que se espera da Instituição, principalmente, nos trágicos tempos de crise econômica, deixando a recomposição das corrosivas perdas inflacionárias a mercê da "boa vontade" do Poder Executivo.

2.3.2.2 Garantias Institucionais

As garantias institucionais são tidas, em verdade, como autonomias (autonomia funcional, autonomia administrativa e autonomia financeira), encontrando sustentação no art. 127, §§ 2º e 3º, da Constituição Federal. Sob uma óptica relativista, a autonomia da Instituição evidencia-se no relacionamento com os outros órgãos ou Poderes, diferenciando-se da independência, a qual toma contorno absoluto.

É importante frisar que a autonomia não isenta o Ministério Público da fiscalização pelo Tribunal de Contas e pelo Conselho Nacional do Ministério Público nem exime seus membros que desempenham as funções da administração de eventual ação de improbidade administrativa, ação popular, ação civil pública ou ação criminal pela má gestão dos recursos.

2.3.2.2.1 Autonomia funcional

Enquanto a independência funcional refere-se ao agente político ministerial, a Autonomia funcional diz respeito ao Ministério Público enquanto instituição, órgão constitucional independente.

Ao cumprir os seus deveres institucionais, o membro do Parquet, como vocifera Pedro Lenza, "não se submeterá a nenhum outro "poder" (Legislativo, Executivo ou Judiciário), órgão ou autoridade pública etc. Deve observar, apenas, a Constituição, as leis e a sua própria consciência" [36].

2.3.2.2.2 Autonomia administrativa

A Autonomia administrativa é a capacidade chancelada ao Ministério Público de direcionar seu próprio rumo, plenificando o binômio: autogestão e auto-administração, sem a intervenção dos demais Poderes da República.

Na autonomia administrativa da Instituição, insere-se a iniciativa legislativa para propor a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público, bem como a iniciativa de lei relativa à organização, às atribuições, ao estatuto, à política remuneratória e aos planos de carreira.

2.3.2.2.3 Autonomia financeira

A Autonomia financeira consiste na possibilidade de a Instituição elaborar sua própria proposta orçamentária, gerindo a aplicação de seus recursos, dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias.

De outro lado, a realização de despesas ou assunção de obrigações que excedam os limites previstos na lei de diretrizes orçamentárias podem ser, excepcionalmente, aceitas, desde que autorizadas, com antecedência, mediante abertura de créditos suplementares ou especiais (art. 127, § 6º, da CF/88).

Delimitados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, os orçamentos do Ministério Público da União e dos Estados não podem exceder, para gastos com pessoal, o percentual de 0,6% (zero vírgula seis por cento) e 2% (dois por cento) da receita corrente líquida da União e dos Estados, respectivamente.

Sem olvidar que as necessidades são ilimitadas e os recursos, por sua vez, limitados, a revisão dos percentuais acima estabelecidos encontra-se na pauta do dia, não como forma de legitimar aumentos desproporcionais dos subsídios ministeriais, mas sim para permitir a continuidade do crescimento e fortalecimento da Instituição.

2.3.3 Vedações Constitucionais

As vedações impostas aos membros do Ministério Público encontram justificação, como coloca Hugo Mazzilli, na preservação da função, ou seja, visam a garantir independência, isenção e a dedicação dos seus pares, supondo, portanto, um fundamento racional [37].

A Constituição, no seu art. 128, § 5º, inciso II, impõe aos integrantes do Parquet inúmeras vedações, sendo reforçada pelos art. 44 da Lei nº 8.625/93 e art. 237 da Lei Complementar nº 75/93.

Fica, assim, o representante do Parquet impedido de receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais, uma vez que advogam em favor da sociedade, ao contrário dos Procuradores da Fazenda dos Estados e dos Municípios, que atuam na defesa dos interesses da Administração.

Obstacularizado também fica o exercício da advocacia, ainda que em causa própria, resguardando-se o direito de advogar aos presentantes do Ministério Público que adentraram na Instituição sob a égide de Ordenamento Constitucional anterior (art. 29, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) e antes da Lei Complementar nº 40/81, no que se refere ao Ministério Público dos Estados.

O agente ministerial não pode ser empresário ou participar de sociedade empresarial, o que não inviabiliza a aplicação de seus recursos em cotas de capital ou em ações. Dessa forma, obstado fica o membro do Ministério Público de exercer atividades de direção, gerência, administração ou participar das sociedades com qualquer poder de gestão.

À exceção do exercício do magistério, não pode o membro do Ministério Público desempenhar, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, valendo a ressalva acima referida para aqueles que ingressaram na Instituição antes da CF/88, sem se perder de vista as severas críticas impostas por Maria Sylvia Di Pietro:

A nomeação de membro do Ministério Público para a ocupação de cargo em comissão viola o "mínimo ético" a que está sujeita à administração pública. "Tome-se o seguinte exemplo concreto: a Constituição prevê a possibilidade de nomeação, sem concurso, para cargos em comissão declarados, em lei, de livre provimento e exoneração; supondo-se que, para determinados cargos, não haja qualquer exigência ou restrição específica, o Poder Executivo terá amplo leque de opções, todas elas válidas perante o Direito. Mas, se a sua escolha recair sobre um membro do Ministério Público, por exemplo, estarão solapadas as próprias bases dessa instituição, que não pode, com a necessária independência e isenção, exercer uma função essencialmente política, da confiança do Chefe do Executivo, cujos atos podem vir a ser objeto de denúncia perante a mesma instituição [38].

O exercício de atividade político-partidária, abarcando a candidatura a cargo eletivo, a participação na fundação de partido, a deliberação em assembléia e a filiação a partido político, é mais uma das restrições impostas aos agentes do Ministério Público.

Buscando fundamento na proteção da imparcialidade e da retidão da conduta dos representantes do Parquet, que podem ser colocados em perigo com o exercício de atividade político partidária, a Magna Carta resolveu afastar a Instituição, de uma vez por todas, da militância política com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/04.

É interessante anotar, no entanto, que o Conselho Nacional do Ministério Público, pela Resolução nº 05/06, de 20 de março de 2006, assegurou aos que entraram na Instituição antes da referida Emenda o exercício de atividade político-partidária.

O membro ministerial não pode receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei, a qual ainda não foi editada, sendo oportuno o esclarecimento de Emerson Garcia:

A vedação não pode resultar numa capitas diminutio dos membros do Ministério Público, alijando-os de atividades absolutamente líticas e passíveis de serem praticadas por qualquer cidadão (v.g.: figurarem como beneficiários num contrato de doação, com ou sem encargos). Impõem-se, assim, seja editada, com a maior brevidade possível, a norma prevista no texto constitucional, evitando sejam praticadas injustiças e despautérios com arrimo na amplitude dos seus termos [39].

Aplica-se, ainda, ao representante do Parquet a denominada quarentena, definida no art. 95, parágrafo único, da CF/88, como a proibição de exercer advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.

Por fim, ficam os integrantes da Instituição Ministerial impedidos de representar judicialmente ou prestar consultoria jurídica às entidades públicas (art. 129, inciso IX, da CF/88).

As vedações impostas aos componentes do Ministério Público, acrescidas do conjunto de princípios e garantias que cercam a Instituição, bem como dos inúmeros argumentos que serão adiante aduzidos, reforçam o credenciamento ministerial para desempenhar, de forma segura, o papel investigador criminal.

2.4 ÁREAS DE ATUAÇÃO DO MP

Habilitado pela Constituição Cidadã para atuar nos mais variados ramos do direito, deixou o Parquet de carregar apenas as marcas das emblemáticas figuras do Promotor do Júri, na esfera criminal, e do Promotor Fiscal da Lei, na área Cível, como carta de apresentação.

A Constituição Federal, de forma exemplificativa, no seu art. 129 e nove incisos, abriu o leque de atuação do Ministério Público, sendo seguida por farta legislação infraconstitucional que regulamentou outras atribuições [40].

Não se limitando a contemplar as missões que lhe foram conferidas pelo legislador, procurou o Parquet "fazer acontecer", no intuito de consolidar suas conquistas e buscar novos desafios, sendo valioso o posicionamento de Rogério Schietti Cruz:

Em verdade, o nosso trabalho consiste em servir à sociedade que nos legitimou a trabalhar em seu benefício. Mais do que à sociedade, servimos à humanidade, pois não fomos dotados de espírito e matéria apenas para ocupar em espaço físico no globo terrestre. Há um propósito maior. Nosso grande desafio no campo profissional, acredito, é desempenhar nossas funções de maneira inteligente, e, quando me refiro à inteligência, não faço alusão a uma cultura jurídica livresca – algo que qualquer pessoa com tempo e disposição à leitura pode adquirir – mas sim ao permanente esforço mental dirigido ao emprego do Direito como valiosa ferramenta para a realização dos valores e das virtudes superiores da humanidade [41].

Os ventos democráticos consolidaram, destarte, o Ministério Público como defensor da sociedade, credenciando-o a agir em prol do meio ambiente; dos direitos constitucionais do cidadão; do consumidor; das pessoas portadoras de deficiência; da criança e do adolescente; do idoso e na defesa da moralidade e do patrimônio público, dentre outros.

Destacado agente de transformação social, o Órgão Ministerial dialoga com os demais Poderes e parcelas da sociedade nas audiências públicas, ajusta as condutas tidas como incompatíveis com a ordem jurídica, por meio da celebração de Termos de Ajustamento, e instaura procedimentos administrativos para subsidiar o eventual ajuizamento de ação civil pública, na defesa dos interesses sociais relevantes.

Tendo que se colocar, muitas vezes, contra os interesses dos demais Poderes Republicanos, no incessante controle pelo correto gerenciamento da coisa pública, aduz Antônio Ferraz que o Ministério Público "assume o papel de verdadeiro ombudsman" [42], manejando as medidas judiciais e extrajudiciais a fim de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública.

Sem deixar de trabalhar nas questões que envolvem litígios familiares, fundacionais, acidentários, empresariais e de registros públicos, é na militância dos direitos transindividuais que o Ministério Público ganha seu maior destaque na esfera não-penal.

Na luta pelo meio ambiente equilibrado; por uma educação de qualidade; por uma prestação satisfatória dos serviços de saúde; por um sistema de segurança pública que proteja o cidadão, velando pela dignidade dos encarcerados; pela implementação de políticas públicas que, efetivamente, tutelem a criança e o adolescente, em síntese, na esperança de construir de um país melhor, reside a razão de ser do Ministério Público.

De outro lado, na esfera penal, estando em risco a liberdade do ser humano, sem dúvida o direito mais importante depois do direito à vida, o agir ministerial deve ser guiado por cautela redobrada, sem prejulgamentos e posicionamentos distorcidos, como, infelizmente, o clamor social e a mídia, muitas vezes, exigem.

Importante norte aos membros do Ministério Público que militam na área penal oferece Paulo Queiroz, na sua Carta a um Jovem Promotor de Justiça:

Bem sabes que, dentre as relevantes funções que agora exerces, está a de acusar, tarefa das mais graves e difíceis, por certo. Pois bem, quando acusares – e tu o farás muitas vezes, pois o teu dever o exige – não esqueças nunca que sob o rótulo de "acusado", "réu", "criminoso" etc. há sempre um homem, nem pior nem melhor do que ti; lembra que nosso crime em relação aos criminosos consiste em tratá-los como patifes (Nietzsche). Evita incorrer nessa censura! Acusa, pois, dignamente, justamente, humanamente!

Lembra que, entre os teus deveres, não está o de acusar implacavelmente, excessivamente, irresponsavelmente. Se seguires a Constituição, como é teu dever, e não simplesmente a tua vontade, atenta bem que a tua função maior reside na defesa da ordem jurídica e do regime democrático (CF, art. 127), e não da desordem jurídica, nem da tirania. E defendê-la significa, entre outras coisas, fazer a defesa intransigente dos direitos e garantias do acusado, inclusive; advogá-lo é guardar a própria Constituição, é defender a liberdade e o direito de todos, culpados e inocentes, criminosos e não criminosos.

Por isso, sempre que te convenceres da inocência do réu, não vacila em pugnar por sua pronta absolvição, ainda que tudo conspire contra isso; faz o mesmo sempre que a prova dos autos ensejar fundada dúvida sobre a culpa do acusado, pois, como sabes, é preferível absolver um culpado a condenar um inocente. Ousa, portanto, defender as garantias do réu, ainda que te acusem de mau-acusador, ainda que isso te custe a ascensão na carreira ou a amizade de teus pares. Assim, sempre que o teu dever o reclamar, não hesita em impetrar habeas corpus, em recorrer em favor do condenado, em endossar as razões do réu, e jamais te aproveita da eventual deficiência técnica do teu (suposto) oponente: luta, antes, pela Justiça! Lembra, enfim, que és Promotor de Justiça, e não de injustiça!

E quando te persuadires da correção do caminho a trilhar, segue sempre a tua verdade, a tua consciência, não cede à pressão da imprensa, nem de estranhos, nem de teus pares; sê fiel a ti mesmo, pois quem é fiel a si mesmo não trai a ninguém (Shakespeare), porque não cria falsas expectativas nem ilusões.

Trata a todos com respeito, com urbanidade; sê altivo com os poderosos e compreensivo com os humildes; lembra que quem se faz subserviente e se arrasta como verme não pode reclamar de ser pisoteado (Kant).

Evita o espetáculo, pois não és artista de circo nem parte de uma peça teatral; sê sereno, sê discreto, sê prudente, pois não te é dado entregares a tais veleidades;

Estuda, e estuda permanentemente, pois não te é lícito o acomodamento; não esqueças que toda discussão tecnológica encobre uma discussão ideológica; lê, pois, e aplica as leis criticamente; não olvidas que teu compromisso fundamental é com o Direito e a Justiça e não só com a Lei;

Não te julgues melhor do que os advogados, servidores, policiais, juízes e partes, nem melhor do que teus pares;

Não colocas a tua carreira acima de teus deveres éticos nem constitucionais;

Vigia a ti mesmo, continuamente, mesmo porque onde houver uso de poder haverá sempre a possibilidade do abuso, para mais ou para menos; antes de denunciar o argueiro que se oculta sob olhos dos outros, atenta bem para a trave que te impede de te ver a ti mesmo e a teus erros; lembra que as convicções são talvez inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras, e que a dependência patológica da sua óptica faz do convicto um fanático (Nietzsche);

Não te esqueças de que, por mais relevantes que sejam as tuas funções, és servidor público, nem mais, nem menos, por isso sê diligente, sê probo, sê forte, sê justo! [43]

Neste campo, a Constituição assegurou ao Ministério Público a privatividade da ação penal pública, a fiscalização da aplicação da lei, o controle externo da atividade policial, o poder requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, não colocando qualquer barreira, para, se for o caso, presidir suas próprias investigações, fortificando os pilares que sustentam a Instituição, salvaguardada pelo seu espectro de princípios e garantias, no efetivo combate ao crime, como será demonstrado oportunamente.

Sobre o autor
João Paulo Santos Schoucair

Promotor de Justiça de Olindina/BA. Ex-Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais AGES. Pós-graduado em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Membro do Grupo Nacional de Promotores de Justiça - GNPJ. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais –IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHOUCAIR, João Paulo Santos. O poder investigatório do Ministério Público brasileiro na esfera criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2104, 5 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12554. Acesso em: 5 nov. 2024.

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