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O poder investigatório do Ministério Público brasileiro na esfera criminal

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05/04/2009 às 00:00
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3 O PAPEL DO MP NA ESFERA CRIMINAL

3.1 TITULAR DA AÇÃO PENAL

O Legislador Constitucional confere ao Ministério Público, numa clara demonstração de sua opção pelo Sistema Processual Acusatório [44], o dever-poder de acusar, ante a privatividade da ação penal pública, ainda que, vez por outra, resíduos do Sistema Inquisitório teimem em se fazer presentes [45].

Sendo assim, uma série de dispositivos do vetusto Código de Processo Penal devem ser relidos à luz da Constituição Federal, perdendo a razão de figurar na nova ordem jurídica constitucional, como destaca Clèmerson Clève:

Não é crível que o Código de Processo Penal seja interpretado, ainda, sem levar em conta o processo de mutação desencadeado pela nova Constituição. É preciso sintonizar a legislação processual-penal com o texto constitucional, operar sua constitucionalização, fazer vazar as conseqüências da filtragem constitucional, realizar, enfim, a leitura da lei com os olhos voltados para a Constituição e para o futuro. [46]

O procedimento ex officio para as contravenções penais, a requisição de instauração de inquérito e de diligências investigatórias por parte do juiz, a análise judicial dos requerimentos de diligências formulados pelo Ministério Público [47], dentre outras situações, não mais encontram conformidade constitucional.

A regra é a ação penal pública, exercendo o Órgão Ministerial privativamente sua titularidade, não obstante, como relembra Marcellus Polastri Lima, exista previsão de casos de cabimento de ação penal de iniciativa privada no direito processual brasileiro, verdadeiro resquício da era da vingança privada [48].

Não se deve olvidar, entretanto, que a existência da ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública e a ação penal exclusivamente de iniciativa privada não afastam a participação processual do Ministério Público, o qual pode intervir em todos os termos do processo.

Assumindo o controle exclusivo da ação penal, nos casos de crime de ação pública, o Parquet tem a obrigatoriedade de promover a ação penal, iniciando a persecutio criminis in judicio, a fim de que o Estado Juiz possa restabelecer a ordem jurídica violada, como corrobora Guilherme Nucci:

O princípio da obrigatoriedade da ação penal significa não ter o órgão acusatório, nem tampouco o encarregado da investigação, a faculdade de investigar e buscar a punição do autor da infração penal, mas o dever de fazê-lo. Ocorrida a infração penal, ensejadora de ação pública incondicionada, deve a autoridade policial investigá-la e, em seguida, havendo elementos (prova da materialidade e indícios suficientes de autoria), é obrigatório que o promotor apresente denúncia [49].

Por outro lado, a ação penal não pode ser intentada ao bel prazer do órgão acusador, uma vez que o peso da figuração no banco dos réus por si só já traduz uma condenação, trazendo incontornáveis dramas para o acusado, sendo brilhante a lição de Francesco Carnelutti:

Infelizmente a Justiça humana é feita assim, que nem tanto faz sofrer os homens pra saber se são culpados ou inocentes. Está é, infelizmente, uma necessidade à qual o processo não se pode furtar, nem mesmo se o seu mecanismo fosse humanamente perfeito. Santo Agostinho escreveu a este propósito uma de suas páginas imortais; a tortura, nas formas mais cruéis, está abolida, ao menos sobre o papel; mas o processo por si mesmo é uma tortura. Até certo ponto, dizia, não se pode fazer por menos; mas a assim chamada civilização moderna tem exasperado de modo inverossímil e insuportável esta triste conseqüência do processo. O homem, quando é suspeito de um delito, é jogado às feras, como se dizia uma vez dos condenados oferecidos como alimento às feras. A fera, a indomável e insaciável fera, é a multidão. O artigo da Constituição, que se ilude de garantir a incolumidade do acusado, é praticamente inconciliável com aquele outro que sanciona a liberdade de imprensa. Logo que surge o suspeito, o acusado, a sua família, a sua casa, o seu trabalho são inquiridos, investigados, despidos na presença de todos. O indivíduo, assim, feito em pedaços. E o indivíduo, assim, relembremo-nos, é o único valor da civilização que deveria ser protegido [50].

De posse do procedimento investigatório ou de peças de informação, três são os caminhos para o Ministério Público: realização de novas diligências, arquivamento ou oferecimento de denúncia, devendo seu subscritor, antes de agir, avaliar, atentamente, a presença do preenchimento das clássicas condições da ação (legitimidade, interesse de agir e possibilidade jurídica), bem como da justa causa, descrita por Afrânio Jardim como "um lastro probatório mínimo que deve ter a ação penal relacionando-se com indícios de autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuridicidade e culpabilidade" [51].

Ao fim, é curial esclarecer que a promoção da ação penal deve ser vista de modo amplo, agregando todos os assuntos ligados ao crime, como acentua Valter Santin:

Inegavelmente, o oferecimento da denúncia, a participação na instrução judicial, a produção de provas, as alegações e apresentação de recursos e sua resposta são privativos do Ministério Público.

Além disso, a ação penal pública deve ser vista de modo amplo e abarcar todos os assuntos ligados ao crime: participação e acompanhamento da prevenção e política de segurança pública; conhecimento imediato de ocorrências; participação e interferência no trabalho de investigação criminal; movimentação privativa da máquina judiciária penal, atuação na instrução judicial e na efetiva realização jurisdicional por execução da pena; preservação dos direitos humanos nas diversas fases do influência do crime na sociedade e dos reflexos nos envolvidos [52].

3.2 FISCAL DA APLICAÇÃO DA LEI

Malgrado seja parte no processo, o Ministério Público deve, como traduz Mirabete, conduzir-se com imparcialidade [53], defendendo os interesses da sociedade, assim como fiscalizando a correta aplicação e execução das leis [54].

Tal função torna o ofício ministerial, na dicção de Calamandrei, mais árduo do que todas as outras funções judiciárias, tendo seu representante que ser advogado sem paixão, juiz sem imparcialidade, sob pena de perder, a cada instante, por amor à serenidade, a generosa combatividade do defensor ou, por amor à polêmica, a desapaixonada objetividade do magistrado [55].

Outra não é a visão de Jorge Americano citado por Roberto Lyra:

Obrigado a intervir, o Ministério Público estuda o fato e fiscaliza a aplicação do direito. Expõe seus argumentos com sobriedade e firmeza, com precisão e energia, mas sem paixão nem violência. Tem em vista a moralidade e a justiça. Responde aos argumentos dos diversos interessados, sem jamais sacrificar a verdade. Poupa a reputação alheia. Abandona gracejos e os doestos, economiza adjetivação. Encara o episódio como um fato jurídico e não como questão pessoal contra os demais interessados [56].

Dessa maneira, o acusador implacável cede passagem ao fiscal da justa aplicação da lei. A Tribuna do Júri assiste, a todo instante, a membros do Ministério Público pleiteando absolvição, alegações finais são ofertadas no juízo comum pugnando pelo decreto absolutório, pareceres são lançados fincando a improcedência da denúncia, recursos são interpostos em favor do réu, dentre outras tantas manifestações em defesa da estrita observância da lei e na perseguição do justo.

Os institutos do habeas corpus e do mandado de segurança, tidos, originalmente, como instrumentos da defesa, cristalizam-se dentre as ferramentas ministeriais contra os abusos do Poder Público, nos termos dos art. 6º, inciso VI, da Lei Complementar nº 75/93 [57] e art. 32, inciso I, da Lei nº 8.625/93 [58], devendo o representante do Parquet manejá-los sempre que evidenciar necessário para a proteção dos indivíduos.

Nesta linha de argumentação, destila Edilson Mougenot Bonfim:

Atuará, portanto, sempre como custos legis, inclusive nos processos em que figure na posição de autor da ação penal, podendo, portanto interpor mandado de segurança, impetrar habeas corpus ou mesmo recorrer em favor do réu. Da mesma forma, poderá também requerer a absolvição do acusado, quando julgar não estarem presentes elementos probatórios indicadores da culpa do imputado [59].

Com seu leme voltado para a persecução da Justiça, o Membro do Ministério Público deve velejar no curso do processo fiscalizando seu correto andamento, de modo a impedir a ocorrência de qualquer tipo de mácula e a efetivar o julgamento dentro de um prazo razoável [60].

Por fim, tendo em vista que o sedutor sonho de conseguir, facilmente, os bens de consumo do desenfreado processo globalizador brasileiro, com práticas criminosas, acaba se transformando no pesadelo do cárcere, onde são depositados milhares de excluídos, todos os dias, no Brasil, aumenta a responsabilidade do Ministério Público na luta pela aplicação dos benefícios legais aos mesmos (atenuantes, liberdade provisória, causas de diminuição de pena, livramento condicional, progressão de regime etc.), uma vez que a ausência de Defensoria Pública no Brasil, ainda, é uma realidade distante, quase vinte anos após a promulgação da Carta da República.

3.3 CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL

A Constituição Federal, de forma inovadora e vanguardista, confere ao Ministério Público atribuição para exercer o controle externo da atividade policial, cabendo à legislação complementar federal a regulamentação da matéria.

A inserção do poder de controle do Ministério Público sobre a polícia, no texto constitucional, decorreu, como entende Walter Sabella, da falta de comunicação entre as instituições, do elevado poder da polícia, da falta de controle do Ministério Público sobre o fato criminoso e da absoluta independência policial na apuração de crimes [61].

Não foi intenção do legislador, todavia, criar uma nova via correcional para a Polícia, mas sim outorgar ao Ministério Público a fiscalização sobre a atividade fim da polícia, no intuito de melhorar o trabalho da investigação e atenuar omissões e irregularidades na atividade policial, como registra Fauzi Choukr:

Falar em controle externo é abandonar o vínculo de subordinação hierárquica, como existe no modelo mexicano ou português, para instituir o modelo de subordinação funcional, como há no caso alemão, do Código Provincial de Tucamã e mesmo do Código Modelo para Ibero-América. No caso, a forma de controle será exercida sobre aquela parcela da polícia que empreenda as funções judiciárias, sobretudo por poderes requisitórios e de orientação por parte do controlador, mas sem que chegue este último a impor sanções punitivas em âmbito correcional àqueles servidores que exercitem as funções anunciadas [62].

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O objeto do controle deve ser exercido, enfim, sobre as seguintes áreas, como realça Hugo Mazzilli:

a) as notitiae criminis recebidas pela polícia, e que nem sempre, na prática, são canalizadas para a apuração criminal, que fica sob o puro arbítrio policial; b) a apuração de crimes em que são envolvidos os próprios policiais (violência tortura, corrupção, abuso de autoridade); c) os casos em que a polícia não demonstra interesse ou possibilidade de levar a bom termo as investigações; d) as visitas às delegacias de polícia; e) a fiscalização permanente da lavratura de boletins ou talões de ocorrências criminais; f) a instauração e tramitação de inquéritos policiais; g) o cumprimento de requisições ministeriais. [63]

Nesta linha de intelecção, a Lei Complementar nº 75/93 [64], parametizou a matéria no âmbito do Ministério Público da União:

Art. 3º O Ministério Público da União exercerá o controle externo da atividade policial tendo em vista:

a) o respeito aos fundamentos do Estado Democrático de Direito, aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, aos princípios informadores das relações internacionais, bem como aos direitos assegurados na Constituição Federal e na lei;

b) a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio público;

c) a prevenção e a correção de ilegalidade ou de abuso de poder;

d) a indisponibilidade da persecução penal;

e) a competência dos órgãos incumbidos da segurança pública.

Mais adiante, o referido Diploma Legal, enumera as posturas que devem ser adotadas pelos membros do Ministério Público da União no desempenho do controle externo:

Art. 9º O Ministério Público da União exercerá o controle externo da atividade policial por meio de medidas judiciais e extrajudiciais, podendo:

I - ter livre ingresso em estabelecimentos policiais ou prisionais;

II - ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade-fim policial;

III - representar à autoridade competente pela adoção de providências para sanar a omissão indevida, ou para prevenir ou corrigir ilegalidade ou abuso de poder;

IV - requisitar à autoridade competente a instauração de inquérito policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorrido no exercício da atividade policial;

V - promover a ação penal por abuso de poder.

Art. 10. A prisão de qualquer pessoa, por parte de autoridade federal ou do Distrito Federal e Territórios, deverá ser comunicada imediatamente ao Ministério Público competente, com indicação do lugar onde se encontra o preso e cópia dos documentos comprobatórios da legalidade da prisão.

No que se refere ao controle externo da atividade policial realizado pelos membros do Ministério Público Estadual, em virtude da não existência de Lei Complementar Federal cuidando da matéria, devem seus pares arrimar-se no art. 80 da Lei nº 8.625/93 [65], que permite a aplicação subsidiária da Lei Orgânica do Ministério Público da União aos Ministérios Públicos dos Estados.

O Ministério Público do Estado da Bahia criou o GACEP (Grupo de Atuação Especial para o Controle Externo da Atividade Policial) para desempenhar o controle externo da atividade policial na Capital do Estado, nos termos da Resolução nº 004/2006, de 24 de abril de 2006, e do Ato Normativo nº 002/2006, de 19 de junho de 2006.

Por sua vez, o Conselho Nacional do Ministério Público, buscando uniformizar a atuação dos representantes do Parquet em relação ao controle externo da atividade policial, deu importante contribuição para a regulamentação da matéria com a edição da Resolução nº 20/07, de 28 de maio de 2007 [66].

3.4 REQUISIÇÃO DE DILIGÊNCIAS E DE INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO

O poder ministerial de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial decorre da titularidade da ação penal, sendo contemplado pelo legislador constitucional e pela legislação institucional do Ministério Público (art. 26, inciso IV, da Lei nº 8.625/93 e art. 7º, inciso II, da Lei Complementar nº 75/93 [67]).

Chegando ao conhecimento da Instituição Ministerial notícia da prática de um crime, assegurado estará o poder de requisitar à autoridade policial a abertura de procedimento investigativo para melhor apuração dos fatos e embasamento para o ajuizamento de ação penal, caso não seja possível a propositura da denúncia de plano.

Outrossim, ao receber o inquérito policial, dando a autoridade policial por encerrada sua participação, pode o representante do Parquet devolver, diretamente, sem qualquer tipo de manifestação judicial, os autos à Delegacia de Polícia, ex vi do disposto no art. 16 do Código de Processo Penal, requisitando a realização de novas diligências, a fim de melhor formar seu convencimento, como escreve Marcellus Polastri Lima:

Com o advento da Constituição de 1988, entretanto, não há mais que se discutir a respeito, assistindo inteira razão ao citado magistrado Nagib Slaib Filho, já que, cabendo ao Ministério Público o exercício privativo da ação penal pública (art. 129, I) e o controle externo da atividade policial (art. 129, VII), derrogados restaram os artigos 16 e 13 do CPP, sendo retirada a expressão requerer do art. 16, só sendo possível a realização de diligência pelo juiz quando na busca da verdade real no processo e não na fase de investigação [68].

Destarte, não cabe à autoridade policial avaliar a conveniência ou oportunidade de atender a requisição do Órgão de Execução do Ministério Público, porque a mesma é ato de império, que não pode ser descumprida, em virtude da compulsoriedade de tal determinação.

3.5 OUTRAS ATIVIDADES COMPATÍVEIS

O Manto Constitucional, optando pela descrição de rol exemplificativo das atribuições ministeriais, possibilitou que outras funções fossem conferidas ao Ministério Público, desde que em sintonia com a defesa da ordem jurídica, do regime democrático de direito e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Criou-se uma "cláusula de abertura" [69], favorecendo que a legislação infraconstitucional franqueasse novas tarefas ao Ministério Público, que somada, principalmente, à titularidade da ação penal, ao poder de fiscalizar a atividade policial e ao poder de requisitar diligências e abertura de inquérito dão fundamento constitucional à legitimidade ministerial de presidir suas próprias investigação criminais.

Ao fim, vale registrar que a defesa do poder investigatório, que será aprofundada adiante, não pretende fazer desaparecer o Inquérito Policial nem diminuir a nobre função policial, mas tão-somente dotar o Estado de mais um mecanismo de atuação no combate ao crime.

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Sobre o autor
João Paulo Santos Schoucair

Promotor de Justiça de Olindina/BA. Ex-Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais AGES. Pós-graduado em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Membro do Grupo Nacional de Promotores de Justiça - GNPJ. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais –IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHOUCAIR, João Paulo Santos. O poder investigatório do Ministério Público brasileiro na esfera criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2104, 5 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12554. Acesso em: 20 abr. 2024.

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