5 - Lides de natureza previdenciária em face do INSS
Não mais existindo a restrição constitucional em razão das partes que compõe o litígio, como queria a anterior redação do artigo 114 da CF/88, ampliando-se para todas as lides que tenham como causa de pedir remota um contrato de trabalho, agora em tempos de Emenda Constitucional 45 de 2004, afigura-se completamente defensável a competência da Justiça do Trabalho para as lides entre trabalhador ou tomador e o INSS, desde que a controvérsia seja oriunda de uma relação de trabalho.
Para isso é preciso fazer uma interpretação sistemática do inciso I do artigo 109 da CF/88 e do inciso I do artigo 114 da mesma Carta Política, verbis:
"Art. 109 Aos juízes federais compete processar e julgar:
I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.
(...)
§ 3º. Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem partes instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.".
A Súmula 689 do STF prevê que: "O segurado pode ajuizar ação contra a instituição de previdenciária perante o juízo federal do seu domicílio ou nas varas federais da Capital do Estado-Membro.".
Pela leitura da regra do artigo 109, constatamos que a competência da Justiça Federal é firmada em razão das pessoas e dos interesses em litígio, pois em todas as vezes que a União ou entidade autárquica, como é o nosso exemplo, for parte na lide, a competência será da Justiça Federal. Essa é a regra geral. No entanto, mesmo que sejam parte no litígio as entidades descritas no caput, falecerá competência à Justiça Federal se as ações versarem sobre falência, acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.
Com efeito, a competência da Justiça Federal é residual, na medida em que somente serão de sua competência os litígios que envolvam interesse dos entes alinhados e quando esta lide não for de competência da Justiça do Trabalho. Como a redação anterior do artigo 114 não admitia outro litigante que não fosse o empregador no pólo da ação, não havia a possibilidade do INSS figurar em uma ação trabalhista, salvo em raríssimos casos em que alegado ser o empregador.
O itinerário para fixação da competência da Justiça Federal é em primeiro plano questionar se uma das partes do litígio é a União, entidade autárquica ou empresa pública federal. Se afirmativa a resposta, dever-se-á passar para uma segunda pergunta: Essa ação refere-se à falência, acidente de trabalho ou é sujeita à Justiça Eleitoral ou à Justiça do Trabalho. Se negativa a resposta, aí que se fixará a competência federal; caso contrário, se a competência se enquadrar em um dos incisos do artigo 114, a competência será da Justiça do Trabalho, não havendo espaço qualquer para competência residual federal comum.
A alteração do artigo 114 deu novos ares e alterou, reflexivamente, a regra de competência da Justiça Federal Comum. Como a competência trabalhista era mais restrita, os casos de ações em face do INSS de competência da Justiça do Trabalho também eram restritos. Como aumentou significativamente a competência da Justiça do Trabalho, por corolário existem tantas outras ações que são de sua competência, afastando a regra residual da parte final do caput do artigo 109.
Destarte, caso o litígio entre um tomador ou um prestador de serviços em face do INSS decorrer diretamente de uma relação de trabalho, estará fixada a competência da Justiça Especializada.
Em interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais citados, sempre com vistas nos princípios da máxima efetividade e da inexistência teórica de conflito de normas constitucionais, teríamos a plena convivência dos artigos 109 e 114 da Constituição Federal desde que para os litígios entre o INSS e os segurados ou beneficiários estes sejam decorrentes diretamente da relação de trabalho (v. g. valores devidos por auxílio-doença acidentário, contagem de tempo de serviço, pleito de concessão de aposentadoria por invalidez, liberação das parcelas do seguro-desemprego etc.); de outra banda, quanto a todos os demais pleitos em face da entidade de previdência oficial em que não se discute questão ligada à relação de trabalho (v. g. pensão por morte, auxílio reclusão etc.) será de competência da Justiça Comum, Federal ou Estadual, conforme o caso.
O STF sinaliza neste sentido, pois uma das sete primeiras propostas de Súmulas Vinculantes contempla o entendimento de que a Justiça do Trabalho tem competência para as lides em que se requer o reconhecimento do acidente de trabalho em face do INSS apenas para fins previdenciários, que antes era de indiscutível competência da Justiça Comum.
6 - Relação de trabalho e servidores públicos (estatutários)
Durante a vigência das Constituições anteriores, mormente a Carta de 1967, o Estado mantinha três regimes para seus servidores: o celetista, o estatutário e o especial, este último para os servidores admitidos em serviços de caráter temporário ou contratados para funções de natureza técnica especializada, ex vi do artigo 106 da Constituição de 1967, com redação dada pela Emenda de 69.
Em razão das celeumas interpretativas que surgiam naquele período, o legislador constitucional originário de 1988 resolveu extirpar tal situação, batizando em nosso ordenamento a previsão de dois regimes para os servidores públicos: o regime celetista, para os empregados públicos, e o regime único, para os servidores públicos stricto sensu. Os contratados por prazo determinado para atender situação de excepcional interesse público poderiam ser enquadrados em um ou outro dos regimes jurídicos, cabendo a legislação ordinária de cada ente federal, quando da disciplina das hipóteses de contratação, o enquadramento em um deles.
Após a promulgação da atual Constituição Federal, a doutrina e a jurisprudência mergulharam em caloroso debate acerca da definição da competência da Justiça do Trabalho para dirimir as controvérsias entre os trabalhadores dos dois regimes e os entes da administração pública direta e indireta.
O c. Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar sobre o problema, tendo nos termos do voto condutor do Ministro CARLOS VELLOSO, na ação direta de inconstitucionalidade nº 492-1, pronunciado pela competência da Justiça Comum para conhecer e julgar as controvérsias entre os servidores estatutários e a Administração Pública, englobados os ocupantes das funções de excepcional interesse público, desde que sujeitos ao estatuto.
Pois bem.
Recentemente, com a publicação da Emenda Constitucional 45/2004, tal sistemática parecia ter sido mudada, em razão da clara redação do inciso I do novel artigo 114 da CF/88, que prescreve que a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar:
"As ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;".
A redação aprovada na Câmara dos Deputados, a qual foi publicada, foi emendada pelo Senado Federal para incluir regra de exceção. A Casa Alta ressalvou a competência da Justiça do Trabalho, para nela não incluir "os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da federação".
Ocorre que a alteração do Senado retornou para nova votação na Câmara, motivo pelo qual foi publicada a emenda sem a ressalva imposta pela casa revisora, contudo a Associação dos Juízes Federais (AJUFE), com apoio político dos servidores públicos estatutários, ajuizou ação direta questionando questão formal da emenda e requerendo interpretação conforme.
Por intermédio de decisão liminar na ADIn nº 3.395-DF, de fevereiro de 2005, o Presidente do Supremo Tribunal Federal reconheceu a competência da Justiça Comum para processar e julgar as ações envolvendo servidores públicos estatutários e o Poder Público, mesmo após a edição da emenda.
Recentemente a liminar foi referendada pelo Plenário do STF.
Oportuno ressaltar que a ação direta de inconstitucionalidade 3.395-DF foi proposta pela Associação dos Juizes Federais (AJUFE), entidade de classe de âmbito nacional que representa os interesses dos juizes federais, como quer a norma do inciso IX do artigo 103 da CF/88 que traz o rol de legitimados ativos.
Como corolário da legitimação ativa para a propositura da ação direta, o Supremo Tribunal Federal, jurisprudencialmente, dividiu o rol de legitimados ativos em dois grupos, quais sejam: legitimados gerais e especiais. Aqueles podem propor a ação direta em qualquer situação; estes somente podem propor a ação direta quando a matéria questionada estiver de acordo com seus fins institucionais, é a chamada pertinência temática do requerimento.
Trago acórdão paradigma relatado pelo e. Ministro MOREIRA ALVES que bem explica essa questão da legitimidade [15], verbis:
"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONFEDERAÇÃO NACIONAL DAS PROFISSÕES LIBERAIS. CNPL. FALTA DE LEGITIMIDADE ATIVA. Na ADI 1.792, a mesma Confederação Nacional das Profissões Liberais – CNPL não teve reconhecida sua legitimidade para propô-la por falta de pertinência temática entre a matéria disciplinada nos dispositivos então impugnados e os objetivos institucionais específicos dela, por se ter entendido que os notários e registradores não podem enquadrar-se no conceito de profissionais liberais. – Sendo a pertinência temática requisito implícito da legitimação, entre outros, das Confederações e entidades de classe, e requisito que não decorreu de disposição legal, mas da interpretação que esta Corte fez diretamente do texto constitucional, esse requisito persiste não obstante ter sido vetado o parágrafo único do artigo 2º da Lei 9.868, de 10.11.99. É de aplicar-se, portanto, no caso, o precedente acima referido. Ação Direta de Inconstitucionalidade não conhecida.".
Lastreado no posicionamento exposto pelo Excelso Pretório, a ilação lógica é que a Associação dos Juizes Federais não tem legitimação genérica para ajuizar a ADIn em qualquer hipótese, deverá, pois, demonstrar a pertinência temática entre o pedido feito e os fins institucionais da própria associação.
Como a AJUFE defende institucionalmente os interesses dos juizes federais, não teria, por lógico, pertinência temática o seu pleito de declaração de inconstitucionalidade do inciso I do novel artigo 114 da Constituição para declarar a competência da Justiça Estadual para julgar as lides envolvendo servidores públicos estaduais e municipais e os órgãos da Administração dos Estados e Municípios.
Logo, permanecem restritos os efeitos da liminar proferida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, e referendada pelo Plenário, nos autos da ADIn 3.395-DF, apenas quanto à competência da Justiça Comum Federal para julgar os processos envolvendo servidores estatutários da União. Os servidores públicos estaduais e municipais continuam de competência da Justiça do Trabalho, por falta de pertinência temática da AJUFE no pleito realizado em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
E mais. A citada EC 45/2004 também alterou a redação do § 2º do artigo 102 da CF/88 para advertir que, atualmente, somente as decisões definitivas de mérito em ação direta possuem efeitos vinculantes, diversamente da redação anterior que admitia os efeitos erga omnes em sede liminar. Logo, a liminar proferida pelo d. Presidente do STF não possui efeito vinculante para os demais juízes e tribunais do país, somente assim será após seu julgamento definitivo de mérito pelo plenário do Excelso Pretório.
Veja-se a citada novel disposição constitucional do § 2º do artigo 102, verbis: "As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.".
Como não houve decisão definitiva de mérito, não há vinculação, de lege lata. No entanto, a decisão do Excelso Pretório vem sendo observada por todos os órgãos da Justiça do Trabalho, nada obstante as ressalvas que lançamos.
Um último ponto que merece destaque é que a redação publicada não contempla a ressalva feita pelo Senado quanto aos estatutários. Um exemplo simples pode demonstrar o nosso raciocínio. Imagine que a Câmara dos Deputados aprovasse uma emenda atribuindo à Justiça do Trabalho competência para todos os empregados que utilizassem uniforme azul. Todos eles. Já o Senado Federal lança uma ressalva para dizer que concorda que todos os trabalhadores que usam roupa azul no trabalho, salvo os que utilizam azul turquesa. Como a ressalva em relação aqueles que utilizam azul turquesa não foi apreciada pela Câmara, publicou-se o texto geral, que foi por ambas as casas aprovado, incluindo todos os trabalhadores de azul, retornando a ressalva para a apreciação da Câmara dos Deputados.
Enquanto a ressalva que voltou para apreciação da Câmara não for aprovada e publicada, fica a competência geral, ou seja, todos os trabalhadores que usam todos os tons de azul no uniforme são de competência da Justiça do Trabalho. Somente se e quando for aprovada a ressalva é que se autorizará interpretação de forma restrita e seletiva em relação aos que utilizam uniforme azul turquesa.
É exatamente o que ocorreu na hipótese da Emenda 45 de 2004.
A ressalva do Senado Federal em relação aos estatutários ainda não foi apreciada pela Câmara dos Deputados, mas o Supremo Tribunal Federal, data máxima venia, já se apressou em interpretar a regra do inciso I com a ressalva não aprovada, fazendo as vezes de legislador positivo, prática condenada pelo próprio Tribunal. E se, por acaso, a Câmara resolver rejeitar a ressalva do Senado, será que o Excelso Pretório vai rever sua decisão? E as situações já consolidadas durante o período de vigência e vinculação [16] da decisão liminar?