6 A (IN) CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA IMPOSIÇÃO DO REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS PARA OS MAIORES DE SESSENTA ANOS.
Propõe-se, nesta oportunidade, um estudo mais detido, acerca da norma inserta no art. 1641, II do Código Civil de 2002, a qual estabelece a obrigatoriedade do regime da separação de bens para os maiores de sessenta anos, demonstrando-se em que medida a mesma afigura-se inconstitucional.
O Código Civil de 2002, ao elencar, no art. 1641, as hipóteses em que o regime da separação de bens é obrigatória, trouxe, no inc. II, a pessoa maior de sessenta anos. Tal regramento está disposto no Título II, que trata " Do Direito Patrimonial".
Ab initio, já possível afirmar que ao instituir tal obrigatoriedade o legislador civilista de 2002 incorreu em flagrante inconstitucionalidade material, haja vista a total incompatibilidade desta norma com os princípios e valores presentes na Carta Magna. Senão vejamos.
Sempre que uma norma dispensa tratamentos distintos a indíviduos que se encontram numa mesma situação jurídica, é preciso indagar, como sugere o prof.° Celso Antonio Bandeira de Melo [204], se o fator de discrímen levado a cabo para justificar a discriminação encontra justificativa razoável e compatível com os preceitos constitucionais. A nosso ver, definitivamente, a norma analisada não atende a tais requisitos.
O legislador infraconstitucional, a priori, não está autorizado a fazer discriminação pela lei. Todavia, há casos em que se verifica uma "discriminação justificada", que por ditames de justiça reclamam tratamentos diversos para que haja efetiva observância do princípio da isonomia em seu aspecto material. É o que ocorre nas ações afirmativas. Mas, em nenhum momento, o legislador poderá se afastar da diretriz da razoabilidade que deve o informar em sua atividade legiferante [205].
Logo, sempre a "anomalia jurídica" (inconstitucionalidade) ultrapassar, o que não se espera, o crivo o Poder Legislativo, urge que o Judiciário esteja a postos a fim de amenizar os efeitos deste equívoco cometido pelo legislador, que no exercício de sua atribuição constitucional desviou a atenção da Carta Magna se permitindo editar leis em manifesta desconformidade com a mesma.
Certo é: uma norma inconstitucional e injusta, não pode incidir na esfera jurídica do cidadão lhe causando gravame, sendo necessário que enquanto não seja movida uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pelos seus legitimados, cada juiz ou tribunal, em sede de controle difuso, afaste a incidência de tal norma com o fito de não chancelar inconstitucionalidades flagrantes como a que está a se discutir, já que a lei, por si só, não trouxe nenhuma hipótese de discricionariedade do magistrado, como a que se verifica no art. 1.523, parágrafo único, do Código Civil de 2002.
Feliz em sua crítica, Maria Berenice Dias, [206] assevera:
(...) em todas as demais hipóteses em que a lei impõe esse regime de bens, pode o juiz excluir dita apenação (CC 1.523 parágrafo único). Tal chance não é dada aos noivos idosos. Mesmo que provem a sinceridade de seu amor, sua higidez mental e que nem têm família a quem deixar seus bens. Não há outra opção. A lei é implacável. Ora, se a seqüela legal pode ser afastada para os demais, nada justifica que não possa ser eliminada a imposição coacta aos sexagenários.
Veja que o desafio maior encontra-se nas mãos de cada magistrado, que ante ao caso concreto deverá ter em mente que "a missão do jurista não se exaure na interpretação e no desenvolvimento da vontade legislativa [207]," antes, como ensina Francesco Ferrara [208]:
[...] exige aptidões ou disposições de que nem todos os juristas são dotados. Pois não basta conhecer, ainda que profundamente, o direito para saber traduzir a realidade, e há teóricos distintos que não são capazes desta elasticidade mental que os torne mestres no manejo dos princípios na arte de decidir.
Precioso frisar, ainda, que não há qualquer restrição nesse sentido, para aquelas pessoas idosas que optem pela comunhão plena de vida pelo vínculo da união estável, mostrando-se manifesta a desigualdade entre as duas espécies de entidades familiares. Observe que a via da união estável torna-se muito mais vantajosa. Clarividente, portanto, a inobservância do princípio da igualdade quando: (a) comparado o tratamento dispensado ao idoso frente ao dispensado ao mancebo; (b) se levado em conta a desvantagem de um idoso que escolha o casamento em detrimento de outro idoso que opte por constituir união estável, tendo este à sua disposição um leque enorme de opções acerca da comunicabilidade de seu acervo patrimonial com o companheiro. [209]
Importante que se diga estarmos tratando, como se percebe pela própria localização do dispositivo legal, de direito tipicamente patrimonial, e, indiscutivelmente, privado. Não podemos olvidar, que o direito civil ainda constitui o principal eixo do direito privado, [210] no qual ao Estado somente é dado intervir a fim de impedir que a autonomia da vontade, que orienta este ramo do direito, dê azo à práticas de injustiças.
É o princípio da autonomia da vontade que consagra a liberdade das pessoas privadas de se obrigarem da maneira que lhes aprouver, de poderem decidir, pela simples vontade, o objeto e as prestações contratuais. A autonomia privada, sem dúvida, "é a mais importante manifestação do princípio da liberdade jurídica, um dos princípios fundamentais do direito civil." [211] Retirar dos particulares essa autonomia, sem razões, ao mínimo aceitáveis, é descaracterizar o caráter privado que norteia o direito civil. Dado a isso, só se mostrará legítima e justificada a inserção de normas cogentes no direito privado quando a matéria ventilada exigir, com o objetivo de garantir o equilíbrio das relações particulares e o interesse social maior.
No caso em tela, o que se vislumbra é que ao se imiscuir nessa questão a qual, certamente, não reclamava sua atuação, O Estado findou por lesar certos direitos fundamentais do idoso como: a isonomia, a liberdade individual e, por fim, a dignidade da pessoa humana, infringindo, dessa forma, seu dever de abstenção que tais direitos lhe impõem. Sobre este último direito fundamental, assevera Rolf Madaleno, apud Maria Berenice Dias [212]:
(...) manter a punição da adoção obrigatória de um regime sem a comunicação de bens, porque as pessoas (...) contavam mais de sessenta anos (...) é ignorar princípios elementares de direito constitucional. Atinge direito cravado na porta entrada da Carta Política de 1988, cuja tábua de valores coloca em linha de prioridade o princípio da dignidade da pessoa humana.
Segue-se, portanto, inconcebível essa interferência estatal no âmbito da vida privada, já que evidencia direito eminentemente patrimonial, e, sendo assim, disponível, impondo uma restrição injustificada juridicamente à liberdade individual do idoso, impedindo-o de gerir livremente seu patrimônio.
Há situações em que tal previsão alcança nível máximo de injustiça, como se verifica quando ambos os nubentes possuem mais de sessenta anos. Em hipóteses como esta, se mostra ainda muito mais difícil para aqueles que procuram sustentar a constitucionalidade da norma em apreço, com base nos seguintes fundamentos: (a) interesse da prole em ver o patrimônio da família resguardado e para que (b) o idoso não seja vítima do popularmente conhecido "golpe do baú", isto é, envolvido em "engodo" capaz de ludibriá-lo e levá-lo ao "altar".
Certamente, não se está a dizer que não existam pessoas oportunistas que procuram tirar proveito econômico de casamento com o idoso. Pessoas oportunistas estão por toda a parte. Contudo, se ele pode vender, doar e dá a destinação que entender correta a seu acervo patrimonial, então, o legislador não pode partir do pressuposto de que seja "presa fácil" para golpes a serem perpetrados pela via do matrimônio, limitando injustificadamente sua liberdade individual. Analisando o indivíduo em sua inefável singularidade e variedade, Humboldt, apud Noberto Bobbio [213], conclui:
O homem verdadeiramente razoável não pode desejar outro Estado que não aquele no qual cada indivíduo possa gozar da mais ilimitada liberdade de desenvolver a si mesmo, em sua singularidade inconfundível, e a natureza física não receba das mãos do homem outra forma que não a que cada indivíduo, na medida de suas carências e inclinações, a ela pode dar por seu livre arbítrio, com as únicas restrições que derivam dos limites de suas forças e de seu direito.
Entendemos que se o indivíduo encontra-se no pleno gozo de suas faculdades mentais, torna-se indiferente, para fins de escolha do regime de bens, se possui cinqüenta e nove, sessenta e um, ou, até mesmo, vinte anos. Em todo caso, não há critério justo, razoável e que respeite os princípios da igualdade, da liberdade individual e da dignidade da pessoa humana, que justifique a existência de tratamentos legais distintos, tendo por critério objetivo a mera idade do nubente.
De modo que se o idoso entender por bem contrair matrimônio pelo regime da comunhão universal, partilhando com seu consorte a meação de tudo o que adquiriu até o casamento ou que venha adquirir daí para frente, ou, se, ao contrário, entender ser mais prudente realizar o casamento pelo regime da separação convencional ou da comunhão parcial, a escolha, em qualquer das hipóteses, deverá permanecer nas mãos do indivíduo e jamais ser fruto de imposição legal.
É de solar clareza que o interesse resguardado pela norma restritiva, repita-se, é meramente patrimonial, e, sendo assim, cabe ao particular definir acerca do mesmo. Tal norma não se propõe a tutelar a família como tal, em sua essência, o que autorizaria a imposição de normas cogentes no direito privado. Assim, assevera Maria Berenice Dias: [214]
(...) trata-se de mera tentativa de limitar o desejo dos nubentes mediante verdadeira ameaça. A forma encontrada pelo legislador para evidenciar sua insatisfação frente à teimosia de quem desobedece ao conselho legal e insiste em realizar o sonho de se casar é impor sanções patrimoniais. (...) Das várias previsões que visam a suspender a realização do casamento, nenhuma delas justifica o risco de enriquecimento sem causa. Porém, das hipóteses em que a lei determina o regime de separação obrigatória de bens, a mais desarrazoada é a que impõe tal sanção aos nubentes maiores de 60 anos (CC 1.0641 II), em flagrante afronta ao Estatuto do Idoso.
Na verdade, ao procurar proteger o patrimônio da família, o legislador desconsiderou o desconforto que tal norma causaria às pessoas idosas, pois sugere uma "presunção absoluta de incapacidade [215]" das mesmas para determinado ato da vida civil (escolha do regime de bens). Dá-se a entender que aventuras amorosas na juventude (até sessenta anos) são permitidas, a partir daí, o Estado até suporta, mas resolveu diminuir os "riscos e emoções" dessa "aventura", já que patrimônio não está mais em jogo!
Incólume permanece, então, a segurança patrimonial da família, ou melhor, dos herdeiros do idoso, que podem dormir tranqüilos, afinal, evoluindo o idoso ao óbito, nada terão que garantir ao cônjuge viúvo, recebendo, assim, a totalidade da herança [216].
Nesse sentido, obrigatória se apresenta a objeção de Maria Berenice Dias, à norma em questão:
Com relação aos idosos, há presunção absoluta de senilidade. De forma aleatória e sem buscar algum subsídio probatório, o legislador limita a capacidade de alguém exclusivamente para um único fim: subtrair a liberdade de escolher o regime de bens quando do casamento. A imposição é de incomunicabilidade absoluta, não estando prevista nenhuma possibilidade de ser afastada a condenação legal.
Pensamos que a preocupação do legislador com o possível casamento do indivíduo senil, não se justifica até mesmo pelo fato de que provada alguma fraude, o ordenamento já dispõe de meios próprios para que os familiares possam se resguardar.
Fato curioso é que não obstante a norma queira proteger aquele idoso sem condições de perceber que o casamento só lhe vai ocorrer pelo fato de o outro cônjuge estar alimentando interesses meramente econômicos, o que se percebe na prática é outra realidade. Geralmente, a paixão que envolve os mais jovens é mais avassaladora e irracional do que a paixão que arremata o idoso. Este é sempre mais cauteloso, precavido, e, apesar de carente, dificilmente fica "cego" de paixão a ponto de fazer "loucuras", ao revés do que se verifica com muitos jovens, os quais, uma vez apaixonados, jamais poderiam discernir se o parceiro, pretenso cônjuge, é motivado por algum outro interesse que não o "amor".
Outro fato interessante é que a iniciativa desta norma proibitiva não partiu dos idosos preocupados em garantir seu patrimônio. Não foi fruto de anseio popular. Ao contrário, embora muitos idosos concordem que se fossem casar talvez optassem pelo regime da separação de bens, são avessos à idéia de que somente eles não podem optar livremente pelo regime de bens, em clara desigualdade com os mais jovens.
Nesse sentido, escrevendo ainda sob a égide do Código Civil de 1916, que estipulava esta mesma obrigatoriedade, mas com a diferença de que para o cônjuge virago a vedação se dava a partir dos cinqüenta anos de idade, Silvio Rodrigues, [217] já criticava tal limitação legal. Dizia ele:
Tal restrição, a meu ver, é atentatória da liberdade individual. A tutela excessiva do Estado sobre pessoa maior e capaz decerto é descabida e injustificável. Aliás, talvez se possa dizer que uma das vantagens da fortuna consiste em aumentar os atrativos matrimoniais de quem a detém. Não há inconveniente social de qualquer espécie em permitir que um sexagenário ou quinqüagenária ricos se casem pelo regime da comunhão, se assim lhes aprouver.
Washington de Barros Monteiro [218], por sua vez, posiciona-se em sentido diverso, criticando o enfoque dado à liberdade individual tutelada na Constituição Federal. Vejamos:
(...) é preciso lembrar que o direito à liberdade, tutelado na Lei Maior, em vários incisos de seu art. 5°, é o poder de fazer tudo aquilo o que se quer, nos limites resultantes do ordenamento jurídico. Portanto, os limites à liberdade individual existem em várias regras desse ordenamento, especialmente no direito de família, que vão dos impedimentos matrimoniais (art. 1.521, n. I a VII), que vedam o casamento de certas pessoas, até a fidelidade, que limita a liberdade sexual fora do casamento (art. 1.566, n. I). É ainda de salientar-se que não se pode o direito de família aceitar que, se reconhecidos os maiores atrativos de quem tem a fortuna, um casamento seja realizado por meros interesses financeiros, em prejuízo do cônjuge idoso e de seus familiares de sangue.
Além destes, o referido autor [219] invoca os argumentos trazidos à baila pelo senador Josaphat Marinho, ao justificar a manutenção da norma restritiva no art. 1641, II do Código Civil 2002, concluindo:
Trata-se de prudência legislativa em favor das pessoas e de suas famílias, considerando a idade dos nubentes. É de lembrar que, conforme os anos passam, a idade avançada acarreta maiores carências afetivas e, portanto, maiores riscos corre aquele que tem mais de sessenta anos de sujeitar-se a um casamento em que o outro nubente tenha em vista somente vantagens financeiras. Possibilitar, por exemplo, a adoção do regime da comunhão universal de bens, num casamento assim celebrado, pode acarretar conseqüências desastrosas ao cônjuge idoso, numa dissolução inter vivos de sua sociedade conjugal, ou mesmo a seus filhos, numa dissolução causa mortis do casamento.
Em que pese o prestígio desfrutado pelos autores que defendem a manutenção do artigo ora em análise, entendemos que este não é o melhor entendimento. Washington de Barros Monteiro, ao esboçar sua opinião acerca do tema, parece, data venia, ter se equivocado, na medida em que exemplifica como limitação autorizada à liberdade individual as hipóteses do art. 1521, I a VII e do art. 1566, I, ambos do Código Civil 2002.
Tais hipóteses não podem jamais serem trazidas à baila, a guisa de comparação, haja vista que os motivos que levaram o legislador a estabelecer alguns impedimentos para o casamento e a fidelidade recíproca como dever de ambos os cônjuges, são de total aceitação social, vez que visam claramente proteger a família em sua essência primeira, qual seja "de célula básica da sociedade. [...] unidade afetiva, uma comunidade de afetos, relações e aspirações solidárias" [220], verdadeiro "eixo em torno do qual se desenvolve a saúde e a doença psíquica de seus membros". [221]
Não cumpriria a família tal fim caso o legislador não estabelecesse, por exemplo, a fidelidade recíproca dos cônjuges como dever a ser observado, colocando em xeque a credibilidade das relações familiares. Situação mais gravosa, ainda, seria se não houvesse posto obstáculo como o que impede pai ou mãe de contraírem matrimônio com seus respectivos filhos, sejam de origem natural ou civil, a fim de manter incólume a idoneidade da família. Foi infeliz, por conseguinte, esse renomado autor em sua colocação, já que se mostra clarividente a necessidade da ingerência estatal em casos como os do art. 1521, I a VII e do art. 1566, I, ambos do Código Civil, para que a família seja resguardada das mazelas da sociedade, e, desta forma, se apresente como o ambiente saudável e perfeito para construção da identidade e caráter do ser humano.
Não obstante posicionamentos isolados como esse, felizmente, a doutrina majoritária e mais consentânea com os ditames constitucionais tem se firmado no sentido aqui sustentado, entendendo que a disposição normativa inserta no art. 1641, II, do Código Civil 2002, não condiz com os princípios e valores ventilados do Texto Constitucional.
Na visão de Caio Mario [222]:
Não encontra justificativa econômica ou moral, pois que a desconfiança contra o casamento dessas pessoas não tem razão para subsistir. Se é certo que podem ocorrer esses matrimônios por interesse nessas faixas etárias, certo também que em todas as idades o mesmo pode existir.
No mesmo sentido, João Baptista Villela, apud Caio Mário da Silva Pereira [223], e Maria Helena Diniz, [224]respectivamente:
A proibição na verdade, é bem um reflexo da postura patrimonialista do Código e constitui mais um dos ultrajes gratuitos que a nossa cultura inflige na terceira idade.
(...) não se pode olvidar que o nubente, que sofre tal capitis diminutio imposta pelo Estado, tem maturidade suficiente para tomar uma decisão relativamente aos seus bens e é plenamente capaz de exercer atos da vida civil, logo, parece-nos que, juridicamente, não teria sentido essa restrição legal em função de idade avançada do nubente.
Acrescenta-se, ainda, a opinião de Paulo Luiz Netto Lobo, apud Carlos Roberto Gonçalves: [225]
(...) a hipótese é atentatória do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-la à tutela reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a Constituição não faz. Consequentemente, é inconstitucional esse ônus.
Apesar de todo esforço da doutrina e boa parte da jurisprudência em repugnar essa norma civilista restritiva, a Câmara dos Deputados, após ter aprovado, por unanimidade na Comissão de Seguridade Social e Família, aprovou também, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, em caráter conclusivo, o Projeto de Lei nº 108/07, de autoria da deputada Solange Amaral (DEM-RJ), que estabelece como obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de 70 anos. Como se vê, a proposta pretende alterar o art. 1641, II do Código Civil de 2002, que hoje fixa essa idade em 60 anos [226].
Assim, a notícia veiculava [227]:
O deputado José Genoíno (PT-SP), votou pela "constitucionalidade, juridicidade e boa técnica legislativa". Quanto ao mérito, ele salienta que, de acordo com a pesquisa Tábua de Vida de 2005, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a esperança de vida do brasileiro passou de 71,7 anos, em 2004, para 71,9 anos, em 2005. "Esse indicador estima que a geração que nasceu em 2005 viverá, em média, até os 71,9 anos, número seguramente maior que a expectativa de vida do brasileiro em 1916, quando foi editado o antigo Código Civil".
Lamentavelmente, a referida Casa Legislativa não atentou para o fato de que o verdadeiro problema não é o marco inicial ser sessenta ou setenta anos para incidência de tal proibição, mas a mácula que enseja sua inconstitucionalidade reside em que não há critério objetivo, científico que justifique esta "presunção de incapacidade absoluta" criada, casuisticamente, pela lei. Ora estando o cidadão em pleno gozo de suas faculdades mentais, inconcebível restrição deste jaez. O que parece ficar claro em projetos como este é que o Congresso Nacional se mostra indiferente aos debates na doutrina, na jurisprudência e, na própria sociedade, acerca de temas polêmicos como esse.
Fatos como este, podem ser enquadrados na visão de Piero Calamandrei [228], como efetiva crise e possível solução está em:
[...] uma renovação profunda dos espíritos, uma impulsão moral como ainda não se viu, feita de verdadeira solidariedade humana, de compreensão pelas verdadeiras misérias alheias, materiais e morais, de profundo amor ao próximo. Não se trata se fazer leis, nem de tratar artifícios jurídicos peregrinos, como não se trata de adotar providencias econômicas de circunstâncias, nem de criar sempre novos organismos internacionais. A solução pode-se esperar somente pelas forças espirituais mais sublimes [...] um despertar fundamental da consciência que consiga fazer sentir e operar a solidariedade entre todos os homens, a unidade e a fraternidade do gênero humano, o qual, como disse felizmente Windelband, não é um conceito naturalístico para ser aplicado, mas um fim moral a perseguir, uma idéia no sentido kantiano.
Mais uma vez ficará a cargo da doutrina e, sobretudo, da jurisprudência a adequação destas normas editadas em dissonância com o Diploma Constitucional, haja vista que ante ao fenômeno da constitucionalização do direito Civil há a necessidade impostergável de certa "filtragem constitucional [229]", vez que "erigida a Constituição ao vértice do ordenamento jurídico, o Código Civil perde a sua posição de centralidade nas relações privadas." [230]
Não pode, portanto, vigorar tal vedação, mormente, após a edição da Lei n° 10.741/03, que consagrou o Estatuto do Idoso, vez que esta consubstancia-se em medida protetiva do idoso e não tolera discriminação desta natureza, que desprestigia o indivíduo senil tão somente pela sua senilidade, incorrendo em grave inconstitucionalidade e injustiça. Sua permanência no ordenamento traduz-se, indubitavelmente, em sacrifício de princípios supedâneos do próprio Estado Democrático de Direito.
Salutar, nesse sentido, a lição de Rafael Carvalho de Oliveira, [231]para quem:
[...] o reconhecimento da normatividade dos princípios constitucionais, renegada por muito tempo pelo positivismo, aproximou o direito da idéia de justiça. O princípio da dignidade da pessoa humana passa a ser o vértice axiológico do ordenamento jurídico, potencializando a importância dos valores existenciais no direito civil em oposição aos valores exclusivamente patrimoniais.
Impôs desse modo, a Constituição Federal, o abandono daquela posição eminentemente patrimonialista, legado do séc. XIX e influência do Código de Napoleão, para que, ao contrário, prevaleça uma concepção humanista, a qual privilegia o desenvolvimento humano considerado concretamente nas suas relações interpessoais e visando a sua emancipação. [232]
Conclui-se, ante todo exposto, que a norma que impõe o regime da separação obrigatória de bens para os maiores de sessenta anos é totalmente incompatível com os princípios e valores, assinalados alhures, que irradiam do Texto Maior, idôneos estes, de per si, para tornar inadmissível todo e qualquer tratamento discriminatório que exponha o idoso a situações vexantes.