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Devido processo legal substantivo e controle de constitucionalidade

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Agenda 07/06/2009 às 00:00

4 DA APLICAÇÃO DA GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

4.1 DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

O princípio da supremacia da Constituição impõe aos órgãos estatais que detêm a função de ordenação de condutas mediante a edição de normas gerais e abstratas, o dever de observar, quando da consecução do seu mister, os princípios e regras integrantes da Carta Magna, de modo que a norma editada seja consentânea com os ditames constitucionais, sob pena de invalidade. Ou seja: "[...] todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal" [34].

A Constituição Federal de 1998 cometeu ao Poder Judiciário a função de exercer o controle de constitucionalidade dos atos normativos infraconstitucionais, tendo adotado um sistema misto, onde subsistem, lado a lado, o controle concentrado, abstrato, de efeitos erga omnes, via ação direta, de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal; e o controle difuso, concreto, de efeitos inter partes, via exceção, que pode ser exercido incidentalmente, em qualquer processo, por qualquer órgão jurisdicional.

Os mecanismos erigidos pelo ordenamento constitucional como veiculadores do controle concentrado de constitucionalidade são os seguintes: (a) Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI); (b) Ação Direta de Constitucionalidade (ADC); (c) Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF); (d) Ação de Inconstitucionalidade por Omissão; (e) Ação de Inconstitucionalidade Interventiva. Destas, somente a ADI, a ADPF e a ADC têm a aptidão de expungir do ordenamento jurídico o ato normativo infraconstitucional que for reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como contrário à Constituição. Portanto, nosso estudo cingir-se-á à ADI, ADC e ADPF.

A legitimação para a propositura das ações afetas ao controle abstrato de constitucionalidade está elencada de forma taxativa - não admitindo a inclusão de outros co-legitimados - na Constituição Federal nos incisos do art. 103 (ADI) e, no que se refere à ADC, no parágrafo 4º deste dispositivo constitucional. Já o art. 2º, I, da Lei n. 9.822, de 3 de dezembro de 1999, confere legitimidade para o ajuizamento da ADPF aos legitimados para propor a ADI.

Já o controle difuso, também denominado de concreto e incidental, é aquele exercido por qualquer órgão jurisdicional, por provocação de qualquer dos interessados na solução do conflito intersubjetivo de interesses submetido à apreciação do Judiciário ou ex officio [35]. A arguição de inconstitucionalidade consubstancia uma questão prejudicial ao julgamento do pedido deduzido pelo autor.

Vale lembrar, quanto ao controle difuso, que o artigo 97 da Constituição Federal prescreve que "somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público".

4.2 DOS PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Supremo Tribunal Federal trata dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade - concretizadores do devido processo legal substantivo - como se fossem idênticos, tendo se utilizado, em grande parte dos seus julgados, dos termos razoabilidade e proporcionalidade para se referir a ambos os princípios.

Veja-se o caso da ADI n. 1.158-8, cujo objeto consistia na declaração de inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Amazonas, a qual estendia aos servidores inativos o abono - previsto no art. 7º, XVII, da Constituição - de 1/3 sobre as férias. O STF, ao deferir medida cautelar, entendeu que "incide o legislador comum em desvio ético-jurídico, quando concede a agentes estatais determinada vantagem pecuniária cuja razão de ser se revela destituída de causa". [36] Aplicou especificamente o princípio da razoabilidade como critério de aferição da congruência lógica entre a diferenciação ou equiparação proposta pela norma e a finalidade para a qual foi instituída. Nesse caso, o excelso pretório entendeu que a equiparação promovida pelo legislador não obedeceu ao princípio da razoabilidade.

Embora não conste expressamente do acórdão, entendemos que a lei estadual que concedeu abono a todos os servidores indistintamente, sem diferenciar os ativos dos inativos, não se mostrava congruente, porquanto em sendo a percepção de tal vantagem justificada pela opção do constituinte em propiciar ao trabalhador - através do acréscimo de 1/3 sobre a sua remuneração no período de férias - o pleno gozo do mês de descanso a que tem direito uma vez por ano, não encontra justificativa plausível a extensão de referido benefício aos servidores que deixaram de trabalhar em virtude da aposentadoria.

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Também com fundamento no princípio da razoabilidade, o pleno do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n. 2.019 (cujo objeto era a declaração de inconstitucionalidade de uma lei do Mato Grosso do Sul que instituíra programa de pensão de um salário mínimo para crianças cuja concepção resultasse de estupro), assentou que:

Ato normativo que, ao erigir em pressuposto de benefício assistencial não o estado de necessidade dos beneficiários, mas sim as circunstâncias em que foram eles gerados, contraria a princípio da razoabilidade, consagrado no mencionado dispositivo constitucional [art. 5º, LVI] [37].

Em seu voto, o relator, Ministro Ilmar Galvão, transcreve trecho de outro voto proferido quando do julgamento da medida cautelar, no qual, após rejeitar o fundamento de que a inconstitucionalidade da lei impugnada residia na ofensa ao princípio da isonomia, consignou que:

De ter-se, portanto, por relevante a questão não pelos fundamentos expostos na inicial, mas por ofensa à norma do art. 5º, LIV, da Carta Magna, posto patente a ausência de qualquer razoabilidade na discriminação estabelecida pela lei impugnada, ao tomar para pressuposto da concessão de benefício assistencial pelo Poder Público as circunstâncias em que foram eles gerados e não o estado de necessidade dos beneficiários, o que, induvidosamente, não faz sentido [38].

No entanto, em que o pese o entendimento do relator de que a lei em comento promovia uma discriminação não autorizada pelo princípio da razoabilidade, entendemos que a afronta à razoabilidade advém do fato de a lei equiparar (e não discriminar) todas as situações em que o beneficiário da pensão for concebido a partir de um estupro, independentemente da condição financeira de sua genitora.

O Supremo Tribunal Federal também já teve a oportunidade de aferir, aplicando o princípio da razoabilidade, acerca da constitucionalidade de lei que promove a discriminação de situações assemelhadas. Ao deferir a medida cautelar na ADI n. 1.753-2 - proposta pelo Conselho Federal da OAB com o objetivo de invalidar a Medida Provisória n. 1.577/97, que ampliava o prazo decadencial da ação rescisória de dois para cinco anos, quando proposta pela Fazenda Pública -, a nossa Corte Suprema entendeu que:

A igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law; quando uma das partes é o Estado, a jurisprudência tem transigido com alguns favores legais que, além da vetustez, tem sido reputados não arbitrários por visarem a compensar as dificuldades da defesa em juízo das entidades públicas; se ao contrário, desafiam a medida da razoabilidade ou da proporcionalidade, caracterizam privilégios inconstitucionais: parece ser esse o caso das inovações discutidas, de favorecimento unilateral aparentemente não explicável por diferenças reais entre as partes e que, somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conseqüência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular já reconhecido em juízo [39].

No que toca especificamente à aplicação do princípio da proporcionalidade, o nosso Pretório Excelso, em precedente que é citado pela doutrina como o primeiro no qual se aventou a possibilidade de limitação do poder legiferante [40], embora tenha se utilizado da fórmula cunhada pelo direito francês do desvio de poder [41], proclamou que:

O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e de indústria e com o direito de propriedade. É um poder, em suma, cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir. Não há que estranhar a invocação dessa doutrina ao propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados têm proclamado que o conflito entre norma comum e o preceito da Lei Maior pode-se acender não somente considerando a letra, o texto, como também, e principalmente, o espírito do dispositivo invocado [42].

A decisão proferida no julgamento da Representação n. 930, que tinha como objeto a declaração de inconstitucionalidade da Lei n. 4.116/62, a qual, a pretexto de regulamentar a profissão de corretor, estabeleceu exigências que, sob a ótica do Supremo Tribunal Federal, restringiam indevidamente o direito ao livre exercício profissional, também se inspirou no princípio da proporcionalidade. Em seu voto, o ministro relator consignou que:

A Constituição assegura a liberdade de exercício de profissão. O legislador ordinário não pode nulificar ou desconhecer esse direito ao livre exercício profissional. [...] Pode somente limitar ou disciplinar esse exercício pela exigência de condições de capacidade, pressupostos subjetivos referentes a conhecimentos técnicos ou a requisitos especiais, morais ou físicos. Ainda no tocante a essas condições de capacidade, não as pode estabelecer o legislador ordinário, em seu poder de polícia das profissões, sem atender ao critério da razoabilidade, cabendo ao Poder Judiciário apreciar se as restrições são adequadas e justificadas pelo interesse público, para julgá-las legítimas ou não. [43]

Em outra ocasião, já sob a égide da atual Constituição, ao deferir a medida cautelar na ADI n. 855-2, o plenário do Supremo Tribunal Federal utilizou – fazendo-lhe menção expressa - como fundamento o princípio da proporcionalidade, em acórdão assim ementado:

Gás liquefeito de petróleo: lei estadual que determina a pesagem de botijões entregues ou recebidos para substituição á vista do consumidor, com pagamento imediato de eventual diferença a menor: argüição de inconstitucionalidade fundada no arts. 22, IV e VI (energia e metrorologia), 24 e §§, 25, § 2º, e 238, além de violação ao princípio de proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos: plausibilidade jurídica da argüição que aconselha a suspensão cautelar da lei impugnada, a fim de evitar danos irreparáveis à economia do setor, no caso devir a declarar-se a inconstitucionalidade: liminar deferida. [44]

Ao apreciar o pedido de liminar na ADI n. 1.407, cujo relator foi o Ministro Celso de Melo, a nossa mais alta Corte de Justiça, embora tenha indeferido a medida cautelar, traçou em sua ementa a diretriz a ser observada na interpretação e aplicação da garantia do devido processo legal substantivo:

O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita a rígida observância da diretriz fundamental, que, encontrado suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade – que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law – acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à clausula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substative due process of law (CF art. 5, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso do poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislativo [45].

Em outra ocasião, entendeu o pretório excelso que a Medida Provisória n. 2.045-2, a qual suspendia, ressalvados os casos excepcionais nela previstos, o registro de armas de fogo afrontava o princípio da proporcionalidade radicado na garantia do devido processo legal substantivo, motivo pelo qual deferiu liminarmente a suspensão dos efeitos do ato normativo impugnado. Do voto do relator, Ministro Moreira Alves, destaca-se, pela sua pertinência, o seguinte trecho:

Restringe, de maneira tão drástica que praticamente inviabiliza, a comercialização de armas de fogo, especialmente no tocante ao comércio varejista, apesar de continuar ela lícita nesse período de suspensão de registro.

Ora, sem necessidade de entrar no exame de todos os diversos dispositivos tidos, pela inicial, como violados, um me basta para conferir plausibilidade jurídica suficiente à concessão da liminar requerida: a da ofensa ao princípio do devido processo legal em sentido material (artigo 5º, IV, da Carta Magma). Com efeito, afigura-se-me desarrazoada norma que, sem proibir a comercialização de armas de fogo, que continua, portanto, lícita, praticamente a inviabiliza de modo indireto e provisório, o que não é sequer adequado a produzir o resultado almejado (as permanentes segurança individual e coletiva e proteção do direito à vida), nem atende à proporcionalidade em sentido estrito [46].

No julgamento da ADI 1.969-4, ocorrido em 28 de junho de 2007, o Supremo Tribunal Federal, em acórdão da lavra do Ministro Ricardo Lewandowski, declarou a inconstitucionalidade de um decreto editado pelo governador do Distrito Federal que limitava a liberdade de reunião e de manifestação pública, sob o fundamento de que a "restrição ao direito de reunião estabelecida pelo Decreto distrital 20.098/99, a toda evidência mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung)" [47].

Nessa decisão a nossa corte maior aferiu a legitimidade da restrição imposta pela norma impugnada à luz dos (sub)princípios que compõem o princípio da proporcionalidade.

Sobre o autor
Odilair Carvalho Júnior

advogado em Teixeira de Freitas (BA), procurador do Estado da Bahia, pós-graduado em Direito Público, mestrando em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO JÚNIOR, Odilair. Devido processo legal substantivo e controle de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2167, 7 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12935. Acesso em: 19 dez. 2024.

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