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A filiação sócio-afetiva como hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 14, § 7º, CF/88

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Agenda 29/06/2009 às 00:00

7. OS "FILHOS DE CRIAÇÃO".

Denomina-se "filhos de criação" como sendo aqueles que se submetem a uma guarda de fato, ligando-se à família simplesmente por uma relação afetiva. São aqueles indivíduos que apesar de serem tratados como filhos pela família, não possuem qualquer vínculo biológico ou registral.

Acerca do tema, Belmiro Pedro Welter [29]:

A filiação afetiva também se corporifica naqueles casos em que, mesmo não havendo vínculo biológico, alguém educa uma criança ou adolescente por mera opção, denominado filho de criação, abrigando em um lar, tendo por fundamento o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto. É dizer, quando uma pessoa, constante e publicamente, tratou um filho como seu, quando o apresentou como tal em sua família e na sociedade, quando na qualidade de pai proveu sempre suas necessidades, sua manutenção e sua educação, é impossível não dizer que o reconheceu.

Da mesma forma Adalgisa Chaves designa os filhos de criação como ocorrendo nos casos em que alguém adota informalmente outrem, passando-o a tratá-lo como filho e apresentá-lo em sociedade como tal, embora não tenha sido providenciada a regularização do vínculo. [30]

Neste mesmo sentido, Maria Berenice Dias [31] disciplinou brevemente o assunto, apresentando inclusive críticas à expressão "filho de criação":

A partir do momento em que passou a vigorar o principio da proteção integral, a filiação não merece designações discriminatórias. A palavra filho não admite qualquer adjetivação. [...] A pejorativa complementação ‘de criação’ está mais que na hora de ser abolida.(DIAS, 2006 p. 398)

A expressão "filho de criação" apesar de soar com certo tom discriminatório, tem o condão de mostrar seus contornos, sendo assim utilizado popularmente, bem como pala jurisprudência e doutrina.

Outros termos como adoção de fato, adoção tácita ou guarda de fato, vêm sendo empregados por alguns autores.

Essa ligação entre o "filho de criação" e seus pais se origina sempre pela socioafetividade, possuindo em certos casos, efeitos mais verdadeiros e concretos que a ligação biológica.

Assim, não se deve levar em consideração o motivo pelo qual esse filho foi acolhido pela família, pois o que realmente importa é a reciprocidade do afeto na relação de filiação.

7.1. O reconhecimento dos "filhos de criação".

Apesar de nossa legislação civil ter sido há pouco tempo reformulada, acrescida ao fato da figura do "filho de criação" ter grande ocorrência em nossa sociedade, tal relação carece de uma tutela capaz de assegurar-lhe garantias jurídicas mais concretas.

Assim, diante da inexistência explícita de uma proteção à figura dos "filhos de criação", cada ato que necessitam praticar causa-lhes grande insegurança jurídica.

Fundamentos para que o reconhecimento dos direitos desses filhos sejam efetivados não faltam, tanto os de ordem legal quanto os de ordem principiológica, jurisprudencial e doutrinária.

Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade na filiação, insculpidos no art. 1º, inc. III [32] e art. 227, § 6º [33], respectivamente, fornecem embasamento legal para esses filhos marginalizados perante o direito tenham essa situação reconhecida. O reconhecimento assegurar-lhes-iam todos os direitos pessoais e patrimoniais atinentes à qualquer filho registral.

Além de tal relação ser amparada por diversos princípios constitucionais, diversos outros fundamentos infraconstitucionais também a tutelam.

O artigo 1.593 do Código Civil dispõe que "o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou de outra origem".

A expressão "outras origens" criou a possibilidade de se construir um conceito jurídico de filiação em sentido amplo, tornando possível o enquadramento da paternidade afetiva nessa brecha deixada pelo legislador.

Ainda nesse diapasão, Belmiro Welter [34] afirma:

Ser possível fundamentar a paternidade afetiva também no artigo 1596, que ratifica a igualdade constitucional prevista para a filiação; art. 1.597, V, que aceita a paternidade simplesmente sociológica nas hipóteses de inseminação artificial heteróloga; restando ainda a hipótese prevista no art. 1.605, II, no que diz respeito à prova da filiação derivada da posse de estado de filho afetivo.

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Ademais, o art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil determina que "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito".

Cediço é que a situação dos "filhos de criação" é prática mais que comum na sociedade brasileira, permitindo assim, diante da omissão da lei, decisões fundadas nesse costume.

Importante ressaltar também que os filhos de criação já tem alguns direitos expressamente reconhecidos, segundo o entendimento do Tribunal de Contas da União, que considerou a guarda de fato para fins previdenciários, ao tratar da pensão militar, na súmula 116 [35].

Assim, a ação de investigação de paternidade seria uma possibilidade do filho pleitear judicialmente seu reconhecimento, fundando-se a prova na posse de estado de filho, através da afetividade.

Para Belmiro Welter [36], "é cabível a propositura de uma ação de investigação de paternidade/maternidade em que a causa de pedir seja a filiação afetiva, sendo desnecessária qualquer legislação infraconstitucional para seu ajuizamento".

Diante da necessidade de regular essa situação, a jurisprudência começa a se posicionar no sentido de reconhecer os "filhos de criação", através de diversos tipos de ação propostas sendo pioneiros os seguintes julgados:

AÇÃO DECLARATÓRIA. ADOÇÃO INFORMAL. PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO. PATERNIDADE AFETIVA. POSSE DO ESTADO DE FILHO. PRINCÍPIO DA APARÊNCIA. ESTADO DE FILHO AFETIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE HUMANA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ATIVISMO JUDICIAL. JUIZ DE FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE. REGISTRO.APELAÇÃO PROVIDA, POR MAIORIA. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70008795775 COMARCA DE PORTO ALEGRE

APELAÇÃO CRIME - FURTO - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - DELITO PATRIMONIAL – ESCUSA ABSOLUTÓRIA - FILHA "DE CRIAÇÃO" – FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA - PARENTESCO CIVIL CARACTERIZADO - EXEGESE DOS ARTS. 1.593 DO CÓDIGO CIVIL, 181, II DO CÓDIGO PENAL E 227, § 6º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - EXCLUSÃO DA PUNIBILIDADE SOMENTE DA RÉ (ART. 183 DO CP) - INEXISTÊNCIA DE RECURSO DA ACUSAÇÃO - SÚMULA 146 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – PENA INFERIOR A UM ANO - PRESCRIÇÃO - INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 109, VI E 110, § 1º DO CÓDIGO PENAL - DECURSO DE LAPSO TEMPORAL SUPERIOR A DOIS ANOS ENTRE A DATA DA PRÁTICA DO DELITO E A DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA - PRESCRIÇÃO RETROATIVA - EXCLUSÃO E EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE DA RÉ E DO RÉU, RESPECTIVAMENTE - RECURSO PREJUDICADO. . Tribunal de Justiça do Estado do Paraná APELAÇÃO CRIME nº 342.796-7, DA COMARCA DE ARAPONGAS - VARA CRIMINAL E ANEXOS.

8. A REPERCUSSÃO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA NO DIREITO ELEITORAL.

É notório que a afetividade afirmou-se como o paradigma do amor autêntico que orienta grande parte das questões no direito de família.

No entanto, questão da socioafetividade não se limita apenas ao direito de família, estando presente em outros ramos do direito.

A Constituição Federal determina em seu art. 14, § 7º, que "são inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição".

Em julgamento feito pelo TRE do Maranhão, foi levantada a inelegibilidade de uma candidata que era irmã de criação do atual prefeito de um município, em seu segundo mandato. Na instrução de tal recurso, restou provado que a candidata tinha a fama e o tratamento de filha de criação dos pais do prefeito.

Apesar das inúmeras provas que apontavam a candidata como sendo irmã de criação do prefeito em exercício de um segundo mandato, o Tribunal descaracterizou a inelegibilidade pleiteada.

Eis a ementa do acórdão nº 5.593, de 02/09/2004, proferido pelo Re. Juiz Carlos Madeira:

Eleições 2004. Recurso inominado. Adoção de fato. Inelegibilidade. Descaracterização. Recurso conhecido e desprovido.

– Adoção meramente de fato não rende ensejo à inelegibilidade de que trata o art. 14, § 7º, da CF.

– Recurso conhecido e desprovido.

Neste mesmo sentido, o Tribunal Superior Eleitoral já havia se manifestado no que tange à adoção de fato, rejeitando a ocorrência da inelegibilidade, em acórdão que teve a seguinte ementa:

ACÓRDÃO N° 13.068

(11.3.97)

RECURSO ESPECIAL ELEITORAL N° 13.068 - PIAUÍ (62 Zona - Santo Antônio de Lisboa).

Relator: Ministro limar Galvão.

Recorrente: Diretório Municipal do PSDB.

Advogados: Drs. Erivan José da Silva e outro.

Recorrente: Paulo José da Luz, candidato a Prefeito pela Coligação "Para Recuperação do Município".

Advogado: Dr. Erivan José da Silva.

Recorrido: Diretório Regional do PTB, por seu Delegado.

Recorrida: Luzanete Rodrigues da Silva, candidata a Prefeita.

Advogados: Drs. Macário Galdino de Oliveira e outros.

REGISTRO DE CANDIDATURA. PARENTESCO.

ADOÇÃO.

A adoção meramente de fato não enseja a inelegibilidade prevista no art. 14, § 7°, da Constituição Federal. Recurso não conhecido.

Em razão da impossibilidade de se investigar a paternidade em sede de recurso eleitoral, o parentesco socioafetivo seria o meio mais hábil para se comprovar a filiação.

Como enfatiza a desembargadora Maria Berenice Dias [37], "em matéria de filiação, a verdade real é o fato de o filho gozar da posse de estado, a prova mais exuberante e convincente do vínculo parental".

Outro fator que poderá contribuir para a consolidação da inelegibilidade pautada na afetividade é a Súmula nº 7, do TSE, pois preceitua que "é inelegível para o cargo de prefeito a irmã da concubina do atual titular do mandato", sendo posteriormente revogada pela Resolução nº 20.920/TSE.

Analogicamente, o mesmo argumento adotado pelo TSE ao elaborar tal Súmula, poderá ser empregado para o reconhecimento da inelegibilidade do irmão de criação.

Isto porque, em votações recentes [38], a Súmula nº 7 TSE praticamente repristinou a Súmula nº 7, após a vigência do novo Código Civil, que trouxe a previsão legal (art. 1.595) para sustentar a incidência que antes não havia, pois o código anterior não reconhecia a união estável. [39]

Precedente maior para o reconhecimento da adoção de fato como causa de inelegibilidade foi aberto TSE, por meio do acordão nº 24.564 [40], onde este tribunal reconheceu a existência de união estável numa relação homoafetiva, submetendo-os à regra da inelegibilidade do art. 14, § 7º, CF.

Sobre o autor
Guilherme Ribeiro Teixeira

Bacharelando em Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos (Unipac)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Guilherme Ribeiro. A filiação sócio-afetiva como hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 14, § 7º, CF/88. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2189, 29 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13065. Acesso em: 9 mai. 2024.

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