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A conduta criminosa dos guardadores clandestinos de veículos (flanelinhas) e a legislação penal

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Agenda 19/07/2009 às 00:00

A abordagem dos guardadores é comumente acompanhada de ameaças implícitas. Muitos não se contentam com a quantia que lhes dada pelos motoristas e exigem, de forma intimidadora, o pagamento de determinado valor.

SUMÁRIO: Introdução. 1. A conduta dos flanelinhas e o Código Penal. 1.1. Extorsão. 1.2. Constrangimento ilegal. 1.3. Estelionato / Usurpação de função pública. 1.4. Exercício arbitrário das próprias razões. 2. A conduta dos flanelinhas e a Lei de Contravenções Penais. 2.1. Vadiagem / Mendicância. 2.2. Exercício Ilegal de profissão ou atividade. 3. Delitos secundários. Conclusão. Bibliografia


INTRODUÇÃO

A insegurança na sociedade atual passou constituir um grande obstáculo ao exercício dos direitos de cidadania, principalmente nas grandes metrópoles brasileiras. Diante do medo do cidadão em relação à violência urbana e da sua desconfiança nas instituições do poder público encarregadas na implementação e execução das políticas de segurança, tarefas rotineiras como estacionar o carro estão se tornado mais árduas que os doze trabalhos de Hércules.

No que se refere a esse calvário nos estacionamentos, tal fato decorre da atuação injustificável dos chamados flanelinhas, pessoas que exigem dos motoristas uma contraprestação pecuniária por um suposto serviço de vigilância sobre veículos, quando se sabe que o que faz alguém dar dinheiro a um guardador quase sempre é o temor suscitado por sua presença, afinal é do conhecimento de todos o fato de que, por muitas vezes, o flanelinha causa danos aos carros, isso quando não ocorrem violências diretas ao condutor, sejam verbais ou físicas.

Em um artigo anterior intitulado "Guardadores clandestinos de veículos (flanelinhas): O impacto deletério na sociedade e o fracasso de sua regulamentação legal" [01] demonstrei que a legislação pátria contempla uma regulação para essa atividade através de uma lei federal [02], fato este desconhecido ou ignorado pela maior parte da população. Porém, após mais de trinta anos de vigência, essa normatização está longe de alcançar o seu objetivo de conter o loteamento das ruas e os abusos habitualmente praticados (problemas estes que apenas aumentaram desde sua edição).

Além de ignorada e de ser ineficaz na repressão dos delitos decorrentes da atividade, a referida regulamentação apresenta série de irregularidades, sendo patentemente contrária ao ordenamento jurídico como um todo. Em síntese, não pode uma lei legitimar a apropriação de um espaço público e a cobrança imposta por particular pela prestação de um serviço que legal e constitucionalmente é atribuído aos órgãos estatais. Aliás, o serviço que o guardador se propõe a fazer, além de desnecessário, sequer é realizado.

Na realidade a exploração das vagas de estacionamento em vias públicas sempre caminhou no sentido oposto ao da formalidade. A ruas encontram-se loteadas e cada flanelinha se auto intitula dono de determinado local, passando a tratá-lo como propriedade privada. Essa demarcação de território muitas vezes se dá de forma violenta, até mesmo armada, o que faz com que a intimidação seja intrínseca ao próprio exercício da atividade.

A abordagem dos guardadores é comumente acompanhada de ameaças implícitas. Muitos não se contentam com a quantia que lhes dada pelos motoristas e exigem, de forma intimidadora, o pagamento de determinado valor. A situação é ainda mais preocupante pelo fato de que grande parte dos flanelinhas colecionam passagens pela polícia, principalmente por furto ou roubo.

O valor exigido varia de acordo com a localização e disponibilidade de vagas . A renda mensal dos guardadores também é variável, mas sabe-se que a lucratividade do ofício tem aumentado na medida em que cresce o temor dos motoristas em relação às retaliações costumeiramente praticadas.

Embora exista uma enorme reprovação pública em relação a essa injusta abordagem cotidiana, a fiscalização e repressão da conduta praticamente inexistem na maior parte das cidades, apesar de que eventualmente a polícia militar promova tímidas operações para combatê-la. Entretanto, via de regra, os flanelinhas detidos são liberados logo em seguida e voltam a atuar em seus "pontos", o que gera profunda indignação na população pela atuação pusilânime do poder público.

O presente artigo buscará demonstrar em que hipóteses a ação dos guardadores clandestinos pode ser enquadrada nos tipos penais contidos na legislação vigente. Dessa forma, busca-se evidenciar que a referida conduta demanda uma urgente intervenção estatal, devendo ser coibida com veemência pelas autoridades competes.


1- A CONDUTA DOS FLANELINHAS E O CÓDIGO PENAL

A ação dos flanelinhas por si só não representa crime algum pois não há na legislação penal pátria um dispositivo específico para sua tipificação (situação que pode vir a mudar caso seja aprovado o Projeto de Lei n° 4501/08, atualmente em tramitação no Congresso nacional). Entretanto, a partir da análise de cada caso concreto é possível o enquadramento da conduta dos guardadores clandestinos como alguns dos delitos atualmente previstos no ordenamento. Trata-se de uma tendência recente e controversa, visto que o poder público sempre se manteve apático diante dos ilícitos praticados.

A tipificação da conduta dos flanelinhas como crime ainda não é um consenso, apesar de recentes decisões de magistrados entenderem pela caracterização. Dentre entre estas sentenças, duas se destacam. A primeira foi proferida pelo Juiz Daniel Ribeiro Lagos, da 3ª Vara Criminal de Porto Velho (RO), que condenou um guardador clandestino de veículos a quatro anos e seis meses de reclusão pela prática do crime de extorsão. Nesta decisão de repercussão nacional, o magistrado aproveitou para chamar atenção do poder público para essa perturbadora situação cotidiana, afirmando que "está passada a hora das autoridades assumirem uma postura desprovida de hipocrisia em relação à atuação nefasta dos chamados ‘flanelinhas’ que, a pretexto de trabalho, exigem dos motoristas pagamento por serviços de vigilância para estacionar em via pública, arvorando-se ‘donos’ do espaço público, quando se sabe que o que se cobra não é vigilância, mas pagamento para não ter o bem danificado..."

A outra recente e importante decisão foi proferida pela a Juíza Liana Bardini Alves, da 2ª Vara Criminal da Comarca de Balneário Camboriú (SC), na sentença em que condenou um flanelinha a quatro anos de prisão em regime aberto por tentativa de extorsão contra uma moradora da cidade [03]. A magistrada também criticou a ação de guardadores de carros nas metrópoles e asseverou que "não há dúvidas de que vivemos em um país de grandes desigualdades sociais e onde o emprego é escasso. Todavia, tal fato não implica em flanelinhas lotearem grande parte das vias públicas, exigindo preços altíssimos para que os veículos permaneçam incólumes".

Sobre o enquadramento da conduta como crime, há divergências até mesmo entre os órgãos policias, conforme noticiado pelo jornal O Globo:

Os comandos das polícias Civil e Militar discordam sobre a possível conduta criminosa na abordagem dos flanelinhas. Para a Polícia Militar, no simples fato de pedir dinheiro para guardar os carros, os flanelinhas já ameaçam os motoristas, pois está subentendido que, se a pessoa não pagar, algo pode acontecer com o veículo. Isso caracteriza extorsão, segundo a PM. Já a Polícia Civil afirma que, para se caracterizar a extorsão, o flanelinha teria que ameaçar o motorista ao pedir o dinheiro. [04]

Para o Juiz Ruy Alberto L. Cavalheiro, pioneiro na condenação severa a flanelinhas no país, eles cometem o crime de extorsão. "Tanto os guardadores quanto aqueles que ficam no semáforo com o rodinho na mão intimidam o motorista". O magistrado assevera ainda que não são todos os que atuam nesta atividade que estão cometendo o crime, cuja caracterização apenas ocorre se existe uma ameaça, mesmo que velada. [05]

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O Deputado Federal Celso Russomano (PP-SP), elaborou em seu livro, dedicado a dar conselhos jurídicos aos cidadãos, um breve manual de como lidar com guardadores, no qual orienta que o motorista pague com cheque ou anote o número das cédulas para que possa comprovar o crime. Após isso, o condutor deve chamar a polícia e comunicar o fato como extorsão. [06]

Em sentido contrário, o Deputado Federal Marcelo Ortiz (PV-SP), na condição de relator do Projeto de Lei n° 2953/04, que pretendia tipificar a conduta como espécie de extorsão indireta, entendeu que a atividade dos flanelinhas não se coaduna com o crime de extorsão, embora considere que esta prática já pode inclusive ser enquadrada em outros tipos previstos na legislação penal, como constrangimento ilegal, dano ou ameaça, a depender da análise das circunstâncias de cada caso. [07]

Observa-se que, apesar das discordâncias, parcela significativa das opiniões em torno do tema advoga no sentindo de que a ação dos guardadores clandestinos estaria de alguma forma relacionada com o crime de extorsão. Desse modo, faz-se mister uma abordagem da conduta sob esse prisma. Em seguida, a ação dos flanelinhas será ainda relacionada com outros crimes pertinentes, a saber, constrangimento ilegal, estelionato, usurpação de função pública e exercício arbitrário das próprias razões.

Ressalta-se que embora existam outros crimes usualmente associados à ação dos guardadores, tais como dano, furto e até mesmo tráfico de drogas, estes não serão abordados de forma pormenorizada neste capítulo por se relacionarem com a atividade apenas de forma indireta, constituindo condutas secundárias.

1. 1- EXTORSÃO

Curiosamente, em sua origem o crime de extorsão guarda relação com a atividade dos flanelinhas. Este delito já era delineado no Direito Romano, conhecido como concussio, primeiramente entendido como crime de cobrança indevida de taxas públicas [08]. Séculos depois a cena se repete, sendo que atualmente são os guardadores de veículos que exigem indevidas taxas por supostos serviços de vigilância sobre os carros estacionados em vias públicas.

O crime em tela está assim descrito no Código Penal:

Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa.

Pena - reclusão, de 4 a 10 anos, e multa.

A extorsão, tratando-se de crime complexo, tem por objetos jurídicos "a vida, a integridade física, a tranqüilidade de espírito e a liberdade pessoal, além de proteger à inviolabilidade do patrimônio" [09]. Em razão de ser um crime pluriofensivo, o enquadramento do guardador neste delito tem a proteção dirigida não apenas à pessoa do motorista vítima da ação delituosa, mas também a seu veículo pelos eventuais danos causados [10].

O ilustre penalista Luís Regis Prado aponta os seguintes requisitos para a caracterização do delito:

a) constrangimento do sujeito passivo, mediante emprego de violência ou grave ameaça, para que faça, deixe de fazer, ou tolere que se faça alguma coisa; b) finalidade de obter (para si ou para outrem) indevida vantagem econômica. [11]

Assim, conforme as peculiaridades do caso concreto, é possível o enquadramento da conduta do guardador neste tipo sempre que atendidos ambos requisitos apontados pelo autor.

Em relação à primeira condição, para que o flanelinha venha a responder por extorsão é indispensável a demonstração de constrangimento do motorista, seja mediante emprego de violência ou grave ameaça.

A violência (vis absoluta ou corporalis) é entendida em seu sentido próprio como a força física empregada para suplantar a resistência oposta pelo sujeito passivo. [12] Apesar de ocorrer em alguns casos, não é este o meio executivo do delito de extorsão mais empregado pelo guardador irregular, que costumeiramente intimida o motorista através da forma ameaçadora com que faz sua cobrança [13].

A ameaça (vis compulsiva ou animo illata), é a violência moral, que se destina a perturbar a liberdade psíquica e a tranqüilidade da vítima, pela intimidação. Segundo lição de Heleno Cláudio Fragoso, "consiste na revelação do propósito de causar mal futuro, cuja superveniência dependerá da vontade do agente" [14].

A doutrina afirma que esse mal ao qual a ameaça se refere tem de ser grave e verossímil. Fernando Capez considera grave aquele que atinge um bem jurídico relevante e verossímil o possível de ser cumprido [15].

O mal anunciado pelo flanelinha é grave por atingir ao patrimônio, à liberdade individual e/ou à integridade física do motorista e é verossímil, visto que, conforme a praxe tem demonstrado, não se está apenas diante de um mal possível, mas sim provável. Somasse a isto o fato de ser um mal injusto, pois ainda que se tratasse de um guardador regularizado, jamais lhe seria dado o direito de atentar contra a pessoa do condutor ou sua propriedade.

Há posicionamentos que apontam como óbice para esse enquadramento da conduta o fato de que a intimidação muitas vezes não é feita de maneira inequívoca, explícita. Entretanto, doutrina e jurisprudência há muito tempo tem se mostrado flexíveis quanto ao conceito, reconhecendo o delito ainda que a ameaça esteja implícita, isto é, mesmo que a bravata se dê de forma velada. Essa ameça implícita, para Luís Regis Prado, seria aquela "feita através de subterfúgios ou de maneira velada, que encobre o propósito de intimidar (v.g. alguém afirma a outrem que ‘costuma resolver suas dívidas com sangue’)" [16]. Damásio também faz alusão à ameaça implícita citando como exemplo o sujeito que afirma não temer ir para a cadeia para solucionar o problema. [17]

Assim sendo, não é imprescindível o flanelinha anunciar de forma clara que o não pagamento da cobrança estará sujeito a retaliações. Para configuração da extorsão, bastarão as costumeiras observações por eles proferidas, tais como: "não me responsabilizo se alguma coisa acontecer com seu carro".

Reforça a possibilidade de caracterização da ameaça implícita o entendimento jurisprudencial majoritário no sentido de que "a avaliação da intimidação não é abalizada pelo acusado, mas sim pela vítima, contra a qual dirigida a promessa de mal" [18]. Assim, indiferente será o fato de a ameaça ser implícita ou explicita, pois sua análise recairá sobre a potencialidade que a mesma exerce sobre a pessoa do motorista.

Ademais, sendo a ameaça uma prática delitiva de forma livre, a doutrina admite tanto a forma real (por intermédio de gestos ou olhares) quanto a simbólica. [19] Diante disso, a conduta do guardador poderá caracterizar uma extorsão ainda que este não profira uma palavra sequer, mas expresse através movimentos, sinais ou códigos que inadimplemento do motorista importará em conseqüências deletérias.

Entrementes, considerando que o presente trabalho advoga que a política de repressão a atividade deverá sempre respeitar os limites e garantias existentes em um Estado Democrático de Direito, cumpri aqui ressaltar o equívoco daqueles que entendem ser a própria pessoa do flanelinha um meio simbólico de intimidação, isto é, que sua presença por si só bastaria para caracterizar a ameaça e a conseqüente extorsão. Embora seja empiricamente verdadeiro (a simples presença de um flanelinha é, de fato, capaz de fazer com que um motorista se sinta intimidado), tal posicionamento não pode prosperar, pois a configuração da ameaça nessa hipótese dependerá de um ato do guardador capaz de atemoriza-lo, ainda que indiretamente. Em respeito à descrição do tipo em dela, não é admissível punir a pessoa do guardador em si (o consagraria um direito penal do autor), mas sim a conduta por ele realizada. Se o flanelinha apenas está próximo ao veículo e sequer dirigi-se ao condutor que ora estaciona seu carro, a ameaça não se fará presente.

A segunda condição necessária para caracterização da extorsão é a finalidade de obter (para si ou para outrem) indevida vantagem econômica.

A vantagem visada pelo flanelinha é econômica, patrimonial, visto que ele cobra valor em dinheiro pelo suposto serviço de vigilância prestado, e indevida, por estar em desacordo com a legislação pertinente e resultar do uso ilegal do patrimônio público com se propriedade privada fosse.

A Súmula 96 do Superior Tribunal de Justiça dispõe que "o crime de extorsão consuma-se independentemente da vantagem indevida". Isto significa que, não obstante a superada controvérsia doutrinária a respeito, o crime de extorsão é de natureza formal de mera conduta, não exigindo o resultado para sua consumação. [20] Consoante o iminente jurista Guilherme de Souza Nucci, "ocorrendo a indevida obtenção de vantagem econômica, ter-se-á apenas o exaurimento da extorsão, a qual já se encontrava consumada" [21]

Assim, é necessário apenas que o guardador pretenda a injusta vantagem, estando configurada a extorsão ainda que o motorista resista à intimidação e negue o pagamento que lhe é exigido.

Diante do exposto, pode-se concluir que a conduta do flanelinha pode ser enquadrada como crime de extorsão, mas isso dependerá da análise de cada caso concreto, estando a tipificação condicionada a existência de violência ou ameça, ainda que implícita, e da finalidade de obter a indevida vantagem econômica. Se o guardador apenas se oferece para vigiar o veículo sem exigir qualquer valor, não estará presente o delito em tela, embora tal conduta possa configurar exercício ilegal de profissão ou atividade, contravenção prevista no art. 41 do Decreto-lei 3.688/41 e que será analisada mais adiante.

1. 2- CONSTRANGIMENTO ILEGAL

O Código Penal conceitua o crime de constrangimento ilegal nos seguintes termos:

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

Pena - detenção, de 3 meses a 1 ano, ou multa.

Neste delito, o bem jurídico protegido é a liberdade individual, ou seja, a "liberdade pessoal de autodeterminação da vontade e da ação". [22] A disposição tem assento constitucional: "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (CF, art. 5º, II)

Embora tanto no crime de extorsão quanto no de constrangimento ilegal o sujeito empregue violência ou grave ameaça contra a vítima, no sentido de que faça ou deixe de fazer alguma coisa, neste último o sujeito ativo deseja que a vítima se comporte de determinada maneira, sem pretender com isso obter indevida vantagem econômica.

É possível que a conduta do guardador irregular de carros configure o crime de constrangimento ilegal, desde que sua atuação não vise obter vantagem pecuniária do motorista que sofre a abordagem abusiva. Pode-se exemplificar esse enquadramento na hipótese (freqüente) de o flanelinha vir a impedir que um condutor estacione em determinada vaga por saber que ele não lhe o pagaria ou em virtude de a vaga estar reservada para um cliente seu. Estaria o flanelinha constrangendo o motorista "a não fazer que lei permite", a saber, usufruir do espaço público. [23]

Neste contexto, uma prática inconcebível tem surgido. Trata-se de uma espécie de "disk-flanelinha", na qual o guardador divulga o número de seu celular através de cartões entregues aos motoristas ou do número estampado em seu colete. Qualquer um pode ligar e reservar uma vaga para determinado horário e ele impedirá outros condutores estacionem naquele local. É comum os flanelinhas usarem cones, cavaletes ou o que estiver ao seu alcance para obstar a utilização das vagas por pessoas alheias ao seu interesse.

Em decorrência da objetividade jurídica do constrangimento ilegal (liberdade pessoal), existe entendimento jurisprudencial no sentido de que a conduta usual do flanelinha, isto é, a cobrança pelo estacionamento em vias públicas "tipifica constrangimento ilegal, e não delito de extorsão, vez que ausente a intenção de simplesmente obter indevida vantagem econômica, restando vulnerada a liberdade pessoal da vítima, e não seu patrimônio material" [24].

Contudo, considerando a opinião majoritária na doutrina e jurisprudência, tal posicionamento não deve prosperar visto que o crime de constrangimento ilegal tem cunho eminentemente subsidiário, é um meio repressivo suplementar. Quando a liberdade pessoal é atingida para consecução de fins diversos, o atentado a ela é absorvido pelo crime-fim. [25] Dessa foram, se o constrangimento passa a ser meio para obtenção de uma vantagem indevida, o crime transmuda-se para extorsão. [26]

1. 3- ESTELIONATO / USURPAÇÃO DE FUNÇÃO PÚBLICA

A previsão legal para o crime de estelionato encontrasse no CP da seguinte forma:

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.

Pena - reclusão, de 1 a 5 anos, e multa.

Segundo lição de Júlio Fábbrini Mirabete:

O crime de estelionato existe quando o agente emprega qualquer meio fraudulento, induzindo alguém em erro ou mantendo-o nessa situação e conseguindo, assim, uma vantagem indevida para si ou para outrem, com lesão patrimonial alheia. [27]

O guardador irregular de veículos, cuja atividade é costumeiramente associada ao crime de extorsão, em determinadas situações poderá responder pelo crime de estelionato. Faz-se necessária uma sucinta comparação entre os institutos.

Ambos são crimes em que a ofensa ao patrimônio se realiza através da cooperação voluntária da pessoa da vítima [28], que entrega a coisa ao agente. No entanto, no estelionato a migração do bem é levada a efeito por erro da vítima, que tem vontade viciada pela fraude perpetrada, enquanto na extorsão a entrega é efetuada pela coação exercida mediante violência ou grave ameaça, a fim de se evitar um mal maior.

No caso do flanelinha, deve-se analisar no caso concreto qual o meio por ele empregado para obtenção da vantagem patrimonial do motorista. Se o fizer através de constrangimento, de forma ameaçadora, estará configurada a extorsão. Por outro lado se o guardador se valer de uma trapaça para que o condutor espontaneamente lhe pague determinada quantia em dinheiro, a conduta caracterizará o crime de estelionato.

Pode-se citar como exemplo de comportamento fraudulento o do guardador que, apesar de irregular, utilize colete ou crachá com intuito de passar a falsa aparência de que sua situação é regularizada junto aos órgãos competentes.

Também é ardilosa a conduta do flanelinha que, mesmo não possuindo qualquer vínculo empregatício com empresa circunvizinha, se apresenta ao motorista como se fosse funcionário da mesma. Da mesma forma, pratica estelionato o flanelinha que, nas cidades onde se adota o sistema bilhetes de estacionamento (Zona Azul), vender aos motoristas tíquetes falsificados.

Por outro lado, entende a jurisprudência que "conjugando-se constrangimento e ardil fraudulento para obtenção de indevida vantagem econômica, o crime a reconhecer é o de extorsão, porque a vítima cede pela coação, embora a eficácia seja gerada pela fraude, pelo engano". [29]

Assim sendo, se apesar de fraudulento, o meio empregado pelo flanelinha na cobrança atemorizou e coagiu o motorista, é de se reconhecer o crime de extorsão e não de simples estelionato.

Quanto à usurpação de função pública, sua definição consta no art. 328 do CP:

Art. 328 – Usurpar o exercício de função pública.

Pena - reclusão, de 1 a 5 anos, e multa.

Parágrafo único. Se do fato o agente aufere vantagem:

Pena – reclusão, de 2 a 5 anos, e multa.

Usurpar significa assumir o exercício por fraude [30], apoderar-se; logo, para os fins deste artigo, deve-se considerar a conduta de quem executa função pública sem a devida legitimação. O objeto da tutela penal é a probidade da Administração Pública, no que concerne ao regular desenvolvimento de suas atividades, que não pode ficar submetido à interferência de estranhos, exercendo funções que não são suas.

Sabe-se que a exploração de estacionamento em vias públicas compete ao poder municipal nos termos do art. 24, inc. X, do CTB. Neste locais, conhecidos como "área azul", a cobrança pela utilização das vagas é efetuada por agentes municipais ou funcionários de uma empresa terceirizada vencedora de uma licitação (que também atuam no exercício de uma função pública).

Quando um guardador clandestino se utiliza de meios capciosos para passar-se por um destes agentes, não responderá por estelionato, mas sim pelo crime de usurpação de função pública. Entretanto, o simples fato de o flanelinha se apresentar como guardador oficial do município sem efetuar a exação não caracteriza o delito em tela, embora esta prática já seja suficiente para o enquadramento na contravenção prevista no art. 45 do Decreto-lei 3.688/41 [31], a saber, simulação da qualidade de funcionário.

Uma vez realizada a cobrança, responderá pela usurpação. Ressalta-se que se o motorista efetuar o pagamento exigido, estará o flanelinha sujeito a pena mais severa prevista no parágrafo único do 328 do CP, visto que a obtenção de benefícios espúrios denota maior reprovabilidade da conduta.

1. 4- EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES

Na hipótese de constrangimento do motorista decorrente da conduta de um guardador regular de veículos, isto é, de um guardador devidamente registrado na Delegacia Regional do trabalho nos termos da Lei n° 6.242/75, estará caracterizado o crime de exercício arbitrário das próprias razões, já havendo inclusive decisões judiciais neste sentido [32].

Não estará presente o crime de extorsão, pois, segundo os tribunais, "o dolo específico da obtenção de vantagem patrimonial indevida é pressuposto para configuração do delito do art. 158 do CP" [33]. Na situação descrita a vantagem será devida, visto que realizada guardador devidamente autorizado a exercer a função.

Apesar de a regulamentação legal da atividade ser flagrantemente inconstitucional por delegar a um particular a realização de um serviço público sem o devido processo licitatório [34], isto não é levado em conta nesta caracterização do crime de exercício arbitrário das próprias razões porque a referida lei ainda não foi expurgada do ordenamento [35]. Mas considerando esta tese de que a cobrança de estacionamento em vias públicas tem natureza de serviço público e deve ser efetuada apenas por agentes estatais ou delegatários, uma eventual cobrança descomedida realizada por um servidor público configuraria o crime de excesso de exação, previsto art.316, par. 1° do CP [36].

Voltando ao crime de exercício arbitrário das próprias razões, este encontra-se descrito no art. 345 do CP:

Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:

Pena - detenção, de 15 dias a 1 mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.

Neste delito "tutela-se a administração da Justiça, enquanto o cidadão substitui o poder público e à função jurisdicional do Estado, atentando contra a ordem jurídica e a tutela do direito." [37]

Este crime é cometido pelo guardador de veículos que está apto a exercer a atividade, mas a desempenha de maneira descomedida. Cabe ressaltar que segundo a legislação pertinente, o guardador, via de regra, deve contentar-se com o valor que lhe oferecido como gorjeta, não sendo cabível a exigência de um valor previamente determinado. Tampouco lhe é dado o direito de impor a pagamento de maneira imoderada.

A conduta abusiva do guardador regular configura verdadeira "justiça feita pelas próprias mãos", na qual o agente busca receber a valor devido pela utilização da vaga através de seus próprios métodos, isto é, pretende dirimir a contenda em que está envolvido de modo particular.

Quando alguém tem um direito ou julga tê-lo por razões convincentes, e a outra parte envolvida se recusa a cumprir a obrigação, o prejudicado deve procurar o Poder Judiciário para que o seu direito seja declarado e a pretensão seja satisfeita. Não pode o particular usurpar a função do magistrado e assim atentar contra o poder judiciário.

Se o guardador regular, diante da negativa do motorista em pagar-lhe, resolve utilizar-se de meios imoderados na cobrança, responderá pelo delito previsto no art. 345 do CP. Nesta situação, guardador tem consciência de "fazer uma coisa injusta na forma, porém, substancialmente justa" [38]. Se o delito for praticado com violência, haverá concurso material de crimes [39].

Sobre o autor
Oneir Vitor Oliveira Guedes

Advogado inscrito na OAB/RJ, formado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUEDES, Oneir Vitor Oliveira. A conduta criminosa dos guardadores clandestinos de veículos (flanelinhas) e a legislação penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2209, 19 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13144. Acesso em: 2 nov. 2024.

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