2- A CONDUTA DOS FLANELINHAS E LEI DE CONTRAVENÇÕES PENAIS
Muitas vezes a conduta do guardador irregular de veículos é tipificada como contravenção, nos termos do Decreto-lei 3.688, de 3 de outubro de 1941. Isso ocorre principalmente quando são realizadas operações específicas pela polícia militar, nas quais camburões percorrem as ruas recolhendo flanelinhas, malabaristas de sinal, entre outros.
Como não há comparecimento do ofendido (o motorista lesado) diante da autoridade policial, fica impossibilitada a tipificação por uma infração mais grave e conduta acaba sendo enquadrada como mera contravenção, na maioria das vezes como exercício irregular de profissão ou atividade. Sendo esta uma infração de menor potencial ofensivo, sempre haverá possibilidade de transação penal, bem como não será lavrado auto de prisão em flagrante, caso o flanelinha se comprometa a comparecer a audiência, perante o juiz, quando intimado.
Dessa forma, os guardadores, via de regra, assinam o termo circunstanciado e são liberados. No dia seguinte a maioria estará novamente no seu "ponto", o que gera indignação da população quanto à fraca atuação do poder público na sua repreensão.
2.1- VADIAGEM / MENDICÂNCIA
Há quem defenda o enquadramento da atividade como vadiagem ou mendicância. Esses delitos constam nos arts. 59 e 60 da Lei de Contravenções Penais:
art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita.
Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses.
Art. 60. Mendigar, por ociosidade ou cupidez
Pena – prisão simples, de 15 ( quinze) dias a 3 (três)meses
Se em relação ao exercício ilegal de profissão não há maiores dúvidas quanto ao enquadramento da conduta do flanelinha, no que se refere as contravenções de vadiagem e mendicância, há grande controvérsia doutrinária e jurisprudencial.
Isto porque a maior parte da doutrina entende serem estes dispositivos flagrantemente inconstitucionais. Para Nilo Batista "o direito penal democrático não pode tratar de condições existenciais" [40]. Heleno Cláudio Fragoso observa que "trata-se de modelo jurídico-penal próprio das primeiras décadas do século passado, tão ao sabor das ideologias totalitárias que marcaram a Europa do pós Primeira Guerra Mundial" [41]. Para Guilherme Nucci a inconstitucionalidade dos dispositivos advém "não somente pela aplicação do princípio da intervenção mínima, mas, sobretudo, pelo seu caráter discriminatório [42]. Neste mesmo sentido está Paulo Queiroz [43].
Já Damásio E. de Jesus entende que quanto ao "guardador e limpador de carro na rua, só por exercer essas atividades não responde por estas contravenções" [44].
Com opinião oposta está Renato Amoedo N. Rodrigues, ao defender que "para a solução (da questão dos flanelinhas)... bastaria a aplicação das normas atuais que prescrevem a vadiagem e a mendicância como contravenções, combinadas com a eficácia, mesmo que remota, de um órgão de segurança pública que inibisse os danos, furtos e ações criminosas de todo gênero contra os veículos estacionados em vias públicas e seus condutores" [45].
A jurisprudência também mostra-se divergente quanto a estas contravenções. Por vezes entende que em razão da "impossibilidade de conseguir ocupação devido ao crescente desemprego no País, fica impossibilitada a caracterização" [46]. No mesmo sentido, há decisões que concluem não responder o flanelinha por vadiagem ou mendicância [47].
Por outro lado, há julgados propugnando um rigoroso tratamento aos flanelinhas nessa situação:
A atividade exercida por guardador de carros, constitui nada mais do que autêntica extorsão de numerários dos condutores dos veículos que são compelidos a pagar taxa de estacionamento nas vias públicas, de modo que, uma vez conduzido à delegacia, fica o agente instado a comprovar em 30 dias, o exercício de atividade lícita, a risco de ser dado como incurso no art. 59 da LCP, sem que isso represente afronta a seu direito, pois visa a Autoridade Policial proteger a coletividade, cujos interesses se sobrepõem aos daqueles que vivem no ócio e põem em xeque o patrimônio e a integridade das pessoas honestas. [48]
Este último julgado reflete o atual estágio de indignação da sociedade em relação aos guardadores de veículos, cujo comportamento atinge diretamente seu patrimônio e integridade. Aponta que a conduta figura não apenas como vadiagem, mas também como "autêntica extorsão", caracterizada pela imposição de uma "taxa de estacionamento nas vias públicas".
Em uma interpretação meramente literal, as contravenções de vadiagem e mendicância aparentemente estariam apropriadas a tipificar a ação dos flanelinhas.
A conduta poderia ser enquadrada como vadiagem na sua segunda acepção, a saber, "prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita" (atividade ou serviço contrário a lei). Entretanto mostra-se pertinente a crítica de Guilherme Nucci, segundo a qual essa modalidade de vadiagem é inaplicável no plano concreto. [49] Segundo o autor, sendo ilícita a ocupação, deve-se punir a atividade delituosa e não a suposta a condição de vadio do agente.
Assim sendo, no caso do guardador irregular de veículos, deve ser reprimida a infração cometida e não o fato de a mesma ser o único meio de subsistência do guardador. Além disso, não faz sentido considerar ocioso (preguiçoso, indolente) aquele que tem uma profissão, ainda que ilegal e imoral.
Por outro lado, há quem cogite o enquadramento da conduta como mendicância, na modalidade relativa a "cupidez" (ambição, avidez por dinheiro) onde incidiria também a causa de aumento referente ao "modo ameaçador" (art. 60, par. único, alínea a ). Aqui vale a mesma crítica acima exposta. A ameaça ao colaborador torna a situação mais grave, passível de tipificação em outro nível (extorsão, constrangimento ilegal, etc.), não incidindo a referida contravenção. Há que observar também que, segundo a jurisprudência, não se considera "esmola" quando a vantagem patrimonial é exigida [50], mas apenas quanto feita de forma altruísta (sabe-se que o guardador não pede esmola mas sim um pagamento por um suposto serviço de vigilância prestado). O flanelinha não é um mendigo, mas sim alguém que, aproveitando-se do medo do cidadão em relação à violência urbana, coage condutores de veículos a pagá-lo para não ter seus patrimônios danificados, uma conduta altamente acintosa a paz social e a ordem pública.
Além disso, "em tese, aquele que dá a esmola, ciente de tratar-se um mendigo, é partícipe na contravenção" [51]. Dessa forma, poder-se-ia chegar a situação absurda de punir não apenas o flanelinha mas também o motorista que, intimidado, paga pelo temor de ter seu veículo danificado, já que ambos estariam atentando contra os bons costumes.
2.2- EXERCÍCIO ILEGAL DE PROFISSÃO OU ATIVIDADE
Dentre todos os delitos referentes à atuação dos guardadores irregulares, este é o que mais adequado para o enquadramento da conduta, sendo comumente empregado pela autoridade policial para tipificar a ação dos flanelinhas quando não há manifestação do ofendido que possibilite o enquadramento em um delito mais grave. O Decreto-lei 3.688/41 conceitua esta contravenção nos seguintes termos:
Art. 41. Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício.
Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou multa
Segundo Guilherme Nucci, através deste delito "busca-se coibir o abuso de certas pessoas, ludibriando inocentes que acreditam estar diante de profissionais habilitados, quando, na realidade, trata-se de uma simulação de atividade laborativa especializada" [52].
O núcleo do tipo consiste em exercer (desempenhar habitualmente) ou anunciar (divulgar) que exerce profissão ou atividade econômica, sem para isso preencher as condições legais. Por "profissão" entende-se uma atividade especializada, regulamentada pelo Estado. Já ao termo "atividade econômica" mencionado no artigo pode ser entendido como qualquer meio de vida que proporcione renda.
Trata-se nitidamente de uma norma penal em branco, devendo-se conhecer quais são os requisitos estabelecidos em lei para o exercício da profissão ou atividade exercida (ou cujo exercício é anunciado) pelo agente. Esta contravenção tem nítida relação com a garantia fundamental prevista no art. 5, XIII, CF/88, que limita a liberdade do exercício do trabalho às qualificações que a lei estabelecer.
Sabe-se que a profissão exercida pelo flanelinha foi devidamente regulamentada pela Lei n° 6.242/75 [53], segundo a qual, o exercício da atividade de "guardador e lavador autônomo de veículos automotores", em qualquer parte do território nacional, somente será permitida aos profissionais devidamente registrados na Delegacia Regional do Trabalho e nos locais previamente delimitados pelo município.
Assim sendo, qualquer indivíduo que exercitar o referido ofício sem o correspondente registro estará praticando a contravenção penal em tela, pois estará exercendo uma profissão (guardador e lavador autônomo de veículos automotores) sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício (registro na Delegacia Regional do Trabalho).
Ocorre que, por muitas vezes, o motorista lesado e até a própria autoridade policial desconhecem a existência de uma lei que regulamente a profissão e por isso ignoram a ocorrência desta contravenção. Isto porque trata-se de uma lei redigida em frontal desacordo com a realidade, cuja observância nunca se deu de forma efetiva.
Apesar disso, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública paulista disse que diariamente flanelinhas são autuados por exercício irregular da profissão. O delegado seccional Dejar Gomes Neto afirma que "os guardadores assinam um termo circunstanciado e são liberados em seguida. Só podem ser acusados de extorsão se houver denúncia pela vítima" [54].
O sujeito passivo desta contravenção é o próprio Estado, cujo interesse é a proteção à organização do trabalho. Trata-se de um delito de mera conduta, ou seja, não é exigido que algum motorista tenha sofrido efetivo prejuízo com a atuação do flanelinha ou mesmo que este tenha auferido qualquer vantagem. O simples fato do agente se anunciar como flanelinha já é suficiente para tipificação, mas a tentativa é impunível (art. 4º, Decreto-lei 3.688/41).
Irrelevante será a concordância do motorista com a prática do guardador, ou seja, não estará caracterizada a excludente conhecida como consentimento do ofendido, já que, conforme dito, o Estado é o sujeito passivo.
No que se refere à exigência de comprovação da habitualidade da conduta do flanelinha para caracterização desta contravenção, costumava-se entender que habitualidade não integrava o tipo, ou seja, bastava que o guardador irregular pratica-se um único ato [55]. Entretanto, Hodiernamente "segundo entendimento jurisprudencial e doutrinário, a contravenção do art. 47 da LCP exige a habitualidade da conduta para ser reconhecida, desconsiderada a mera prática esporádica ou isolada" [56]. Como a habitualidade da ação do flanelinha é de difícil comprovação, tem esse novo entendimento favorecido a impunidade, já que os guardadores clandestinos são autuados mas a freqüência de sua conduta não é demonstrada no processo correspondente.
Ressalta-se que, por entender ser o exercício de profissão ou atividade econômica sem a formação exigida por lei um tipo de estelionato, o senador Valdir Raupp (PMDB-RO) apresentou projeto (PLS 55/06) que pretende tornar crime essa prática que atualmente não passa de mera contravenção, por entender ser o exercício de profissão ou atividade econômica sem a formação exigida por lei um tipo de estelionato. O parlamentar argumenta que o exercício ilegal de uma profissão induz a erro pessoas que são atendidas pelo suposto profissional, enquanto este obtém uma vantagem ilícita por meio da prática fraudulenta. O projeto ainda encontra-se em tramitação no congresso.
3- DELITOS SECUNDÁRIOS
Todas as infrações penais até então analisadas relacionam-se com atividade precípua dos guardadores clandestinos, ou seja, o enquadramento da conduta nos tipos mencionados decorre diretamente da cobrança pela utilização das vagas de estacionamento em vias públicas.
Todavia, observa-se que existem outros delitos associados a ação dos flanelinhas nos quais o modus operandi não se dá através da cobrança indevida, mas sim por meio de condutas acessórias, ações secundárias que normalmente decorrem da não pagamento da exação. Neste contexto, o Deputado Federal Antônio Carlos Biscaia (PT/RJ), Ex-secretário Nacional de Segurança Pública, afirma que "aqueles que se recusam a pagar as elevadas quantias exigidas, tem seus veículos furtados, danificados ou sofrem agressões físicas" [57].
Dentre estes delitos, o crime de dano [58] é aquele praticado com maior assiduidade pelos guardadores. Sua ocorrência se dá costumeiramente como conseqüência da negativa de pagamento pelo motorista e é justamente em razão da grande freqüência destes danos e de sua impunidade que muitos condutores acabam por sucumbir a exigência de pagamento. Pagam não pelo suposto serviço prestado, mas sim pelo temor de sofrer avarias em seus veículos, pois é fato notório que muitos flanelinhas furam pneus, arrancam retrovisores e, principalmente, arranham toda a lataria do automóvel.
Nota-se que o guardador clandestino se vale do dano como uma forma de sanção. Curiosamente, assim como a pena no direito penal, tem esse dano uma finalidade retributiva (punir motoristas inadimplentes) e preventiva (inibir que outros motoristas venha a se esquivar do pagamento exigido).
Outro crime praticado de forma secundária é o furto [59]. Muitos flanelinhas aproveitam-se da ausência dos condutores para subtraírem peças e acessórios dos carros ou atuarem como facilitadores para a ação de comparsas. Boa parte dos que exercem a atividade são gatunos experientes e por isso são capazes de praticar este crime com uma incrível destreza. Embora não existam números oficiais, em uma blitz realizada na cidade de São Paulo, verificou-se que 70% guardadores conduzidos ao Distrito Policial tinham antecedentes criminais, a maioria por prática de roubo e furto [60].
Um flanelinha contrariado muitas vezes assume um comportamento violento e motorista pode vir a ser vítima também do crime de lesão corporal [61] (embora se a violência for empregada para receber o valor cobrado estará configurado o crime de extorsão).
Entretanto, observa-se que as agressões ocorrem principalmente entre os próprios guardadores. Como não há demarcação legal do território de atuação de cada flanelinha, o domínio das ruas é sempre disputado de forma violenta, semelhantemente ao que acontece entre os traficantes na disputa por zonas de comercialização de drogas. Dessa forma, é comum ocorrem altercações entre os próprios guardadores, que muitas vezes cegam a trágicos resultados.
Essa violência na disputa por território muitas vezes não é de conhecimento público porque que na maioria dos casos não há notificação dos conflitos a autoridade policial já que o guardador naturalmente tem medo de manifestar-se em virtude da ilicitude de sua ocupação. Trata-se de uma "cifra negra", termo usado para designar crimes que não chegam ao conhecimento da polícia.
Estes são os principais delitos secundários, mas há ainda outros que podem ser citados, tais como o crime de corrupção ativa [62], verificado nos casos em que a conivência da policia e dos fiscais municipais é garantido por suborno, ou o crime de tráfico de drogas [63], já não são raros os episódios em que flanelinhas são presos por comercializarem entorpecentes.