A capitalização de juros – prática na qual os juros vencidos são considerados pelo credor como capital para fins de incidência de novos juros – tem sido normalmente rechaçada pelos tribunais, dependendo das peculiaridades de cada caso.
Como fato extintivo / modificativo de ocorrência da capitalização, tornou-se lugar comum os bancos fazerem coro pela aplicação do instituto da imputação em pagamento, regra atualmente vigente no artigo 354 do Código Civil.
- Art. 354. Havendo capital e juros, o pagamento imputar-se-á primeiro nos juros vencidos, e depois no capital, salvo estipulação em contrário, ou se o credor passar a quitação por conta do capital.
Com base em uma leitura simplória do referido artigo, os bancos passaram a sustentar que, quando do cálculo da exclusão dos valores cobrados a título de capitalização, todos os depósitos ocorridos na conta devem ser considerados imputados no pagamento dos juros.
Essa tese vem ganhando corpo no acórdão de alguns Tribunais, entretanto, tal aplicação do instituto da imputação se mostra equivocada e errônea, mormente nas operações ocorridas em contratos de abertura de crédito em conta corrente.
Isso se dá porque, prima facie, se verifica que o artigo apresenta em sua forma ‘abstrata’ uma clara dicotomia entre sua primeira e sua segunda parte.
Ou seja, o dispositivo permite ‘abstratamente’ que no ‘caso concreto’, o credor decida se vai considerar o pagamento efetuado como direcionado aos juros, ou então, ao capital que o originou.
Ocorre que no ‘caso concreto’, na sua relação com o correntista, o banco não usa da imputação em pagamento dos juros em primeiro lugar, ao contrário, usa os créditos para abater o capital mutuado, consoante a segunda parte do artigo 354 do CC.
A não utilização da imputação para pagar os juros se dá por uma questão de procedimento contábil, qual seja, o banco não dá tratamento apartado entre a parcela de juros e o capital que a originou.
E no caso, para contabilmente utilizar-se da imputação, o credor não pode lançar os juros vencidos na base de cálculo do capital que o originou, deve ao revés, mantê-lo em apartado do capital, aguardando o ‘crédito’, para viabilizar a quitação facultada no art. 354.
A manutenção em separado dos juros ‘vencidos’ para viabilizar a ‘imputação’ em seu pagamento, decorre do mais básico conceito da ciência contábil: a diversidade de natureza de capital (principal) e juros (acessório).
No caso, depois de lançados os juros na própria base de cálculo que os originou, não é mais possível imputar os futuros créditos em seu pagamento, porque ao serem contabilizados na base de cálculo, os juros deixam de existir como ‘juro’, perdendo sua natureza acessória diferenciada do capital que o originou, bem como, a condição de valor ‘vencido’ e ‘líquido’.
Isso se evidência porque, se ainda ostentassem a condição de ‘vencidos’ após lançados na base de cálculo, tais valores viriam a sofrer incidência de juros moratórios ou de comissão de permanência o que não acontece. Ao contrário, esses valores integrados no saldo, sofrem incidência de juros remuneratórios nos períodos seguintes, eis que já contabilizados pelo banco como capital mutuado.
Outrossim, como no saldo apurado no dia subseqüente ao seu lançamento em conta, os juros já são inexistentes como rubrica de natureza acessória diferenciada do capital, seus valores deixaram de ser ‘líquidos’.
Passa ai a incidir a vedação do artigo 352 do CC, que exige na aplicação da imputação em pagamento, que os valores a que se quer imputar sejam líquidos e vencidos, requisito que já não detêm os juros após contabilizados no saldo em conta-corrente.
A questão já foi abordada pelo TJ do Estado de São Paulo na Apelação Cível 7054453900, Relator(a): Mauro Conti Machado, Órgão julgador: 19ª Câmara de Direito Privado, Data de registro: 04/03/2009, verbis:
AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL C/C REPETIÇÃO DE INDÉBITO. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. APURAÇÃO EM PERÍCIA TÉCNICA REALIZADA, DA APLICAÇÃO INDEVIDA DE JUROS CAPITALIZADOS. IMPUTAÇÃO DO PAGAMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE ADOÇÃO DESTE REGIME EM FACE AO APARECIMENTO DE NOVA REALIDADE JURÍDICA INCINDÍVEL COM A CAPITALIZAÇÃO OPERADA MENSALMENTE. RECURSO DE APELAÇÃO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
- Com a capitalização de juros promovida à época, adveio com o saldo apurado uma nova realidade jurídica que naturalmente impedia dissociar os juros do capital encontrado mensalmente – ou às vezes até em período inferior - para permitir que fosse realizado primeiro o pagamento dos juros e depois do capital, porquanto agora jungidos como se fosse uma só coisa incindível para esse fim. Não se aplica a regra prevista no artigo 354 do Código Gvil ao caso, porquanto se trata de contrato de abertura de crédito em conta corrente, onde falta o requisito da liquidez. Assim, o novo cálculo deve ser realizado sem a observância desta regra.
Assim, quando banco lança os juros na conta, o saldo dessa restou imediatamente capitalizado, eis que os juros já foram considerados capital para fins de cobrança de novos juros, e não mais detêm natureza acessória.
A partir daí, todos os créditos efetuados na conta só abatem o capital mutuado, nos exatos termos da segunda parte do art. 354 do CC.
Esclarecido que no procedimento contábil, os bancos usam a segunda parte do artigo 354, quitando o capital já capitalizado (sic), resta explanar sobre a aplicação equivocada do instituto da imputação que vem sendo albergada por alguns Tribunais.
No caso, alguns tribunais, desconhecendo qual foi a forma de imputação adotada pelo banco no caso concreto, bem como, que o banco utilizava da segunda parte do artigo 354 do CC, tem determinado que no cálculo da exclusão dos valores cobrados a título de capitalização, todos os depósitos ocorridos na conta fossem considerados imputados no pagamento dos juros, consoante a primeira parte do artigo 354 do CC.
Essa determinação entra em contradição com a decisão que excluí a capitalização, porque apesar de no caso concreto não ter ocorrido efetivamente a imputação no pagamento dos juros, haverá no cálculo (por ficção) essa amortização de juros, e não haverá (no cálculo) a incidência de juros compostos, por imperativo lógico.
Assim, apesar do correntista ter suportado (concretamente) valores a titulo de capitalização de juros, no cálculo se fará uma ficção, na qual a capitalização não existe porque os juros teriam sido fictamente pagos pela imputação, quando no caso concreto nada disso ocorreu.
Opera-se assim, verdadeira fraude contábil em desfavor do correntista que ganhou o direito de receber de volta os valores pagos a título de capitalização, pois em aplicada essa ficção no cálculo, os bancos pouco ou nada devolvem ao correntista a título de capitalização, eis que no cálculo fictício a capitalização é mascarada e fica aparentemente inexistente.
De outra monta, como os contratos bancários são regidos por legislação especial desde a edição da Lei 4.595/64, cabe ao Conselho Monetário Nacional e ao BACEN sua disciplina e regulação por meio de instruções normativas, não cabendo a aplicação do Código Civil (art. 354) no que contrariar a disciplina específica.
E no caso, a Resolução do BACEN 2.878/01 dispõe em seu artigo 18, I que:
- é vedado as instituições transferir automaticamente os recurso da conta de depósitos à vista (...) para realizar qualquer operação sem previa autorização do cliente.
Ou seja, sem prévia e específica autorização, o banco não pode dispor dos depósitos a vista para fazer qualquer operação e, portanto, nem imputá-los em pagamento de forma unilateral.
Assim, em razão serviço bancário ser regido por legislação especial, sem que haja uma específica e prévia autorização do correntista, resta afastada do banco a possibilidade de utilização do art. 354 do CC, para dispor dos depósitos a vista e efetuar operações de pagamento de juros por imputação.
Por fim, os bancos também difundiram a tese de que os juros lançados em conta configurariam uma nova operação de crédito, fato que seria capaz de afastar a capitalização dos juros vencidos.
Ocorre que a tese não tem o condão de afastar a capitalização, pois para afastar a capitalização, teria que existir uma típica novação, na qual a divida antiga (capital + juros vencidos) seriam quitados pela assunção de uma nova dívida, agora como capital mutuado.
Entretanto, na conta-corrente, tal hipótese se ressente da ausência dos requisitos para sua configuração, pois falta o elemento novo (aliquid novi), inexiste a intenção de novar (animus novandi) e existe continuidade negocial.
No caso, evidenciada a continuidade negocial das transações, não há que se sustentar que os valores oriundos de juros lançados na conta corrente convalesceriam e seriam agora novos valores (novo capital mutuado), imaculados na origem e livres de produzir a capitalização, pois continuam originários de juros.
De fato, não existe novação quando se evidencia a continuidade negocial das transações entre as partes, pois o animus novandi não se presume, deve ser inequívoco, visto que se a intenção de novar não se revelar claramente, deve-se entender que as partes quiseram tão-somente confirmar o negócio feito anteriormente, sem alterá-lo, já que para haver novação a mudança deve ocorrer no objeto principal da obrigação, em sua natureza e na causa jurídica.
Em não sendo assim, terá a segunda obrigação apenas confirmado a primeira, à luz do artigo 1.000 do Código Beviláqua.
Assim, não há – nos casos explanados - que se fazer um cálculo partindo da premissa falsa de que não haveria capitalização, ou que juros teriam sido pagos pela imputação em pagamento.