5. Uma visão prospectiva da organização sindical – À guisa de conclusão
Por tais ferramentas disponibilizadas ao julgador pela nova estrutura civil, entra em especial destaque a cláusula geral da "boa-fé objetiva", integrante do conceito de eticidade, por meio da qual, em qualquer relação ou negócio jurídico, o ordenamento jurídico brasileiro impõe regra de conduta, ínsita aos artigos 187 [32] e 422 [33] do NCCB para as partes envolvidas e, pelo artigo 113 [34], frise-se, regra de interpretação ao julgador [35], com o que o magistrado e os tribunais, no sistema aberto querido pelo NCCB, terão a difícil incumbência de adequar o direito ao caso concreto, propiciando, em conseqüência, e para o tema ora em debate, uma permanente atualização para adequar a solução jurisdicional aos princípios maiores constitucionais, aos direitos fundamentais reconhecidos constitucionalmente, como é o caso da pouca liberdade sindical que se apresenta na norma de fachada do artigo 8º da Constituição Federal.
Ao proibir a conduta do venire contra factum proprium, a boa-fé objetiva implementa, normativamente, no Brasil, a crença na aparência de licitude ou da convicção de não se estar a lesar direito alheio no tráfego negocial [36], além de fomentar um dever, aos agentes sociais (e por que não aos sindicatos, à organização sindical?), de transparência, de cooperação para que os vínculos relacionais (para os sindicatos, na negociação com o lado patronal e vice-versa e, ainda, na estrutura interna, na comunicação, no debate constante com as bases representadas em assembléia) atendam aos interesses legítimos de todos os envolvidos, sem surpresas, uma que vez que a boa-fé objetiva impõe a consideração dos interesses da outra parte.
A aplicação dessa principiologia à organização sindical é perfeita. Pelo canal das cláusulas gerais, mormente a da boa-fé objetiva, é possível se chegar e se identificar verdadeiras representações coletivas, sindicais, de trabalhadores ou de empregadores, fora do mundo artificial dos normativos do Ministério do Trabalho e Emprego, para, com base nesse novo material, se decidir a respeito de processos envolvendo desmembramentos ou dissociações sindicais e de conflitos em torno de representação sindical.
Se um determinado ente sindical mantém, ativa, uma democracia sindical interna, com constantes eleições sindicais (a promover a rotatividade no poder dos dirigentes sindicais), com prestação de informações às assembléias categorias licitamente convocadas e para a deliberação de pautas assembleares de prévio conhecimento da coletividade, com o desenvolvimento de sua função negocial e com o respeito à outra parte (e, se do lado patronal o ente sindical, com a natural prestação de informações, ao simétrico ente sindical obreiro, para o desenrolar de uma verdadeira negociação coletiva), poder-se-á identificar, sem artificialismos jurídicos, o verdadeiro representante sindical.
De mais a mais, não se deve esquecer, aliado à eticidade, à sociabilidade ou socialidade e à operabilidade do NCCB, do disposto no artigo 519, alíneas "a", "b" e "c", da CLT, injustamente desconsiderado pelos juslaboralistas, não obstante apresentar critérios objetivos, em um passado da história brasileira considerados pertinentes pelo ordenamento jurídico para a aferição de representatividade sindical – desde, obviamente, que interpretado sob o pilar da liberdade sindical, e não sob o contexto da "investidura sindical" de antes da Constituição Federal de 1988 –, mediante a qual o Ministro de Estado do Trabalho e Emprego tinha o poder discricionário para reconhecer a "associação profissional" mais representativa. A doutrina de maior densidade e vanguarda, nesse sentido, pontifica:
"Não obstante o claro delineamento em torno do papel que cabe ao Poder Judiciário na interpretação do art. 8º, II, da Constituição Federal, uma dúvida ainda subsiste: Em se adotando o paradigma da maior representatividade – como decorrência do cotejo entre o art. 8º, II, da Constituição Federal e os postulados democráticos e pluralistas – quais seriam os critérios para se aferir a legitimidade dos entes postulantes?
A resposta para tal indagação reside no art. 519, da CLT, cuja interpretação conforme à Constituição recomenda, de um lado, a recepção do dispositivo em apreço na parte em que consagra a maior representatividade como critério para o preenchimento da regra constitucional da unicidade e, de outro, a exclusão de qualquer poder discricionário na outorga da personalidade sindical.
Ou seja, ao adotar o paradigma da maior representatividade em um caso concreto envolvendo o conflito entre duas entidades, o Poder Judiciário verificará ‘o número de associados’ dos dois entes, ‘os serviços sociais fundados e mantidos’, bem como ‘o valor do patrimônio’ dos litigantes, tal como determina aquele dispositivo celetário.
Da análise em concreto dos três requisitos, o Poder Judiciário verificará qual das entidades litigantes os possui em maior medida e, ato contínuo, irá assegurar a esta última o direito de representar a categoria em sua respectiva base territorial." [37]
Por tudo, e acompanhando Enoque Ribeiro dos Santos, não há dúvidas de que o Direito Coletivo do Trabalho moderno "há que ter como princípios nucleares os valores éticos, a sociabilidade, a cooperação e a solidariedade humana (não a simples caridade), o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, pela exigência da probidade e da boa-fé, que devem nortear não apenas a feitura de conclusão, como a execução dos negócios jurídicos, entre eles os contratos coletivos de trabalho, sob as mais variadas configurações" [38].
E não há possibilidades técnicas de se permitir o desenvolvimento de leais negociações coletivas, com observância aos princípios norteadores do NCCB, mormente o da eticidade, que conduz à regra de conduta e à regra de interpretação das relações e negócios jurídicos da boa-fé objetiva, se a organização sindical, em sua estrutura interna e externa, também não se funda nessa principiologia para implacar a representatividade sindical real, no mundo dos fatos.
Não sem razão a boa-fé é, pela quase unanimidade doutrinária, indicada como princípio norteador da negociação coletiva [39] e, até, como se pretendeu no Anteprojeto de Lei de Relações Sindicais, mote para, quando não observada, caracterizar prática anti-sindical na negociação coletiva (artigos 99, § 2º; 103, § 1º; e 175, inciso X), capaz de sujeitar as entidades sindicais de trabalhadores e de empregados, inclusive, à perda da personalidade jurídica sindical [40].
Como se sabe, a busca pela identificação da verdadeira representatividade sindical é inerente ao desenvolvimento do Direito Coletivo do Trabalho, que se ocupa não do indivíduo, mas, isso sim, do grupo, do interesse abstrato da coletividade, do interesse coletivo. Se a organização sindical peca na demonstração de sua representatividade sindical, na proximidade entre bases representadas e ente representante, esgarça-se a finalidade do Direito Coletivo do Trabalho e que, ao contrário do Direito Individual do Trabalho, inovou no mundo do direito [41] quando, surpreendendo o direito comum, pressupôs o grupo, o coletivo, que, antes, se ignorava.
Uma visão prospectiva da jurisprudência para além do formalismo artificial que a montagem da organização sindical no Brasil acabou impondo a todos configura, com as ferramentas possíveis, advindas do NCCB, mesmo que em sistema de unicidade sindical, uma contribuição efetiva para a busca, na solução dos conflitos apresentados à Justiça do Trabalho e considerando a mitigada liberdade sindical brasileira, dos verdadeiros representantes coletivos, quer de trabalhadores, quer de empregadores.
Se, no Brasil, convive-se com um mínimo de liberdade sindical (artigo 8º, inciso I, da Constituição Federal) decorrente da autonomia sindical, a conclusão é a de que essa mínima liberdade decorre do princípio de proteção também. Nas relações individuais de trabalho, em que a heteronomia prevalece, a lei liberta e protege. Nas relações coletivas de trabalho, para as quais se projeta a organização sindical para o exercício da liberdade sindical coletiva em sua vertente dinâmica, de ação sindical efetiva, em que a autonomia prevalece no desenvolvimento da função negocial dos entes sindicais, para a negociação coletiva e para a entabulação de instrumentos coletivos de trabalho, a liberdade sindical, como direito humano, é que liberta e protege [42].
A falta de comprometimento na busca e na identificação de verdadeiras representatividades sindicais contribui para a deterioração, cada vez mais, do sistema brasileiro de relações coletivas de trabalho, do sistema brasileiro de estruturação da organização sindical, já prejudicado pelo próprio Estado e pelo princípio constitucional da unicidade sindical.
Se o Direito Processual do Trabalho foi o único ramo, mormente após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que teve algum impulso, mormente para, no que diz respeito à competência da Justiça do Trabalho, o trato largo de matérias referentes a Direito Sindical, o Poder Judiciário tem, nos anos que virão, a responsabilidade enorme de, no que for possível, batalhar por essa mínima liberdade sindical que ainda se tem, adotando uma visão prospectiva, e não formalista, livre das rédeas dos normativos estatais, para a promoção de verdadeiras, e legítimas, representações coletivas, de trabalhadores e de empregadores.
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