CAPÍTULO IV – CRISE DOS TÍTULOS DE CRÉDITO CARTULARES
Devido à forte mudança que a informática impôs à sociedade, qualquer atividade que o ser humano desenvolva certamente necessitará de um computador. O indivíduo que se nega a conviver com a informática está fadado a viver às margens do progresso, sendo taxado de retrógrado ou obsoleto.
No âmbito das relações comerciais, o computador é algo extremamente essencial. Ele proporciona dinamismo e redução tempo e de custos, sendo primordial para qualquer empresa sobreviver num mercado tão competitivo. Marcos Paulo Félix da Silva, assim, comenta:
Mirando a lente para uma só parte da lâmina logo se nota a interferência da informática no cotidiano dos consumidores, contribuintes, investidores, trabalhadores e empresários. E é na empresa, no modo de atuar do empresário, que se faz sentir com maior intensidade o abrupto impacto da modernização da administração empresarial. [121]
Paulo Salvador Frontini vai mais adiante quando assevera que:
Esse impacto não se resume, como todos sabemos, às operações de crédito. Também os métodos tradicionais de pagamento em dinheiro estão sendo seguidamente afetados pela engenharia eletrônica aplicada às transações financeiras (a começar pela figura do cartão magnético de movimentação de conta de depósito bancário, até o extremo da circulação internacional de capital financeiro (a volatilização de capitais), tudo isso tem, como pressuposto operacional, em sua retaguarda, a utilização de instrumental eletrônico. Há mesmo quem, a partir da constatação dessa realidade, afirme que o próprio dinheiro, enquanto papel-moeda, com existência física, estaria fadado a desaparecer. [122]
Assim, alguns conceitos ditos estanques tiveram, ao longo do tempo, a necessidade de se adaptar sob pena de desaparecerem. No caso dos títulos de crédito, toda sua teoria jurídica é baseada no documento escrito, necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido. Tomemos novamente o pensamento de Paulo Salvador Frontini:
Assim, é evidente que, em prazo que reputamos breve, o Direito, especialmente o Direito Comercial, deve repensar consideravelmente a doutrina sobre circulação de direitos materializados em títulos (ou seja, direitos literalmente declarados sobre um documento de papel, as "cártulas"), longamente elaborada pela teoria geral dos títulos de crédito. Imaginamos que os títulos de crédito não deixarão de existir, mas terão sua utilização reduzida. Declarações cambiais da maior importância como, por exemplo, o aceite e o aval, histórica e legalmente apostas sobre o papel em que se consubstancia a cártula, deverão ser reformuladas, simplesmente porque o título, enquanto documento matéria ("papel"), dotado de natureza de coisa corpórea, está deixando de existir em sua forma física. [123]
Dessa forma, os princípios cambiais merecem ser analisados diante dessa nova realidade que lhe é imposta.
4.1.1 Cartularidade
O credor só poderá exigir os direitos de um título de crédito se estiver de posse deste. A formatação do título de crédito sobre um papel, com existência física no mundo das coisas corpóreas, revela a priori uma evidente incompatibilidade da estrutura documental em relação ao feitio virtual dos instrumentos virtuais.
O princípio da cartularidade se destina a impedir a cobrança do título por quem não seja o seu titular. Como o documento eletrônico sempre incorporará a informação atualizada sobre a titularidade do crédito, não há o risco de um antigo credor apresentar-se como sendo ainda o titular do direito.
José Carlos Rezende faz um breve histórico desse princípio e explica o motivo da introdução dos títulos sem papel como suporte:
Na relação jurídica celebrada entre dois contratantes, é emitido um documento cartular, que representa o crédito materialmente. A função deste documento é a de consignar o direito do credor a uma prestação pecuniária, e a do devedor é cumprir essa prestação. Tudo em conformidade com o documento, portanto a cartularidade sempre foi um princípio acerca do qual não pairavam dúvidas. Sempre incontestável dentro dos princípios cambiários, a cartularidade vem sofrendo nos últimos anos certa perturbação, principalmente pelas novas práticas empresariais, em especial as bancárias, que buscaram de forma incessante, alternativa para implementar suas atividades e elevar os níveis de seus serviços, dando mais agilidade e rapidez com redução de custo. [124]
Fábio Ulhoa Coelho afirma que o princípio da cartularidade não pode ser aplicado aos títulos de crédito virtuais:
O princípio da cartularidade, que pressupõe a posse do documento para o exercício do direito nele mencionado, não se ajusta ao ambiente eletrônico. Como o documento eletrônico sempre incorporará a informação atualizada sobre a titularidade do crédito, não há o risco de o antigo credor apresentar-se como sendo ainda o titular do direito. Em nada preocupa, assim, o fim do Princípio da Cartularidade. [125]
Ligia Paula Pires Pinto, por sua vez, em acertado juízo, entende que a cartularidade continua a ser aplicada, aclarando que o "elemento da ‘cartularidade’ do título de crédito torna necessária a constituição de um ‘documento’, mas não o atrela a um suporte específico, podendo este ser papel ou outro, eletrônico inclusive" [126].
As informações que constituirão o título de crédito repousam agora sobre bits, e não sobre átomos. O suporte não é exclusivamente o papel, pois existe outro meio viável para se depositar informações.
4.1.2 Literalidade
Todas as obrigações só têm valor se estiverem descritas no título, não sendo possível dar validade àquelas que forem anexadas. Assim, a literalidade limita o título ao que nele está estipulado, oferecendo segurança na liberação da obrigação, que deve ser cumprida no limite do que está descrito no documento. O princípio da literalidade refere-se ao direito literal representado no documento, ou seja, vale aquilo que estiver escrito nele. Dessarte, nem o devedor pode ser obrigado pagar a mais, nem o credor pode ser obrigado a receber menos.
Na visão de Eversio Donizete de Oliveira, não existe a categoria de título ao portador para os títulos de crédito eletrônicos, "visto que há maiores probabilidades de que a sua posse, dado à vulnerabilidade do sistema, tenha-se originado em vícios de consentimento, tais como dolo e coação civil." [127]
Já Fábio Ulhoa Coelho assim elucida:
O que não há no registro eletrônico, não há no mundo – será o brocardo daqui para a frente. Quer dizer, quando tiver o título de crédito suporte eletrônico, não produzirá efeitos cambiais, por exemplo, o aval concedido num instrumento papelizado. [128]
Dessa forma, o princípio da literalidade não desaparece, devendo ser ajustado ao suporte eletrônico.
4.1.3 Autonomia
Quando se diz que os títulos de créditos são autônomos, tal autonomia não se refere à relação de débito e crédito que lhe deu origem, e sim ao relacionamento entre o devedor e terceiros. Na medida em que o título circula, ele vai se tornando independente da obrigação anterior.
José Carlos Rezende afirma que:
Se para os títulos de crédito eletrônicos está assegurada a circulação, também estará assegurada sua autonomia [...]. Portanto não há justificativa para excluir o princípio da autonomia em se tratando de título de crédito eletrônico, pois o mesmo não está diretamente ligado ao fato de ser o documento materializado em papel ou emitido de forma eletrônica, este independe da forma de suporte do crédito. [129]
Fábio Ulhoa Coelho, assim, conclui:
Graças à preservação do princípio da autonomia e ao ajuste do da literalidade, a cambial eletrônica continuará a cumprir a mesma função de facilitar a agilização e mobilização do crédito comercial que vinham cumprindo satisfatoriamente os títulos papelizados desde sua criação na Idade Média.
Percebe-se que esse é o único dos princípios que não é alterado com o emprego dos títulos de crédito com arrimo em bytes.
Segundo o que foi exposto, nada impede a aplicação desses princípios aos títulos de crédito criados e transferidos por meios eletrônicos. Mas é necessário que haja a cautela devida com a qualificação e autenticidade do documento eletrônico que, de resto, já tem sua força probatória reconhecida em nossa legislação.
4.2 A inovação do artigo 889 § 3º do Código Civil
As regras do novo Código Civil que dizem respeito aos títulos de crédito foram criadas em consonância com as do Codex Civil italiano de 1942. Neste, existe o princípio da liberdade de criação e emissão dos títulos atípicos ou inominados. [130]
Marcos Paulo Félix da Silva assevera que a introdução da matéria cambial em nossa compilação civil:
decorre da recomendação do Prof. Mauro Rodrigues Penteado, que sintonizado com a influência da propagação da informática e das modernas técnicas de administração no campo do direito cambiário, especificamente nas operações de desconto e cobrança de duplicatas, teve acolhida sua proposta de legalização do fenômeno por ele designado de "descartularização", naquilo em que, a seu ver, já estaria estável e bem experimentado na prática, uma vez que, não seria possível regulamentar o fenômeno da descartularização por inteiro em razão de não estar de todo sedimentado. A intenção manifestada em normatizar parcialmente o fenômeno foi o de dar o primeiro passo para "uma futura elaboração mais completa". [131]
O parágrafo em comento, assim, estabelece: Art. 889 [...] § 3º. O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo.
A introdução desse texto em nosso ordenamento é uma inegável inovação. Tendo em vista o atual estágio tecnológico da sociedade, esse fato novo seria a solução para compatibilizar as grandes conquistas da teoria dos títulos de crédito com a instrumentalização eletrônica, conforme a conveniência das partes. A legislação de títulos de crédito teria, assim, a plasticidade que a informática impõe, dentro de um figurino eletrônico cuja elaboração final está longe de ser alcançada. [132]
Luiz Emygdio F. da Rosa Junior afirma que o disposto nesse artigo:
poderá ajudar a resolver os problemas jurídicos relativos à duplicata virtual, [...]. Assim, se o título virtual está relacionado pelo parágrafo terceiro do art. 889 que se posiciona nas Disposições Gerais, entendemos que não se poderá mais negar a executividade à duplicata virtual, por ser reconhecida como título de crédito e, conseqüentemente, consubstanciar obrigação líquida e certa, desde que os caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente constem da escrituração do emitente e o título observe os requisitos mínimos previstos no art. 889. [133]
Há quem entenda que os títulos emitidos com base no art. 889 § 3º são atípicos. Dessa forma, eles não poderiam ser nem protestados nem executados. Para se tornarem típicos, seria necessária uma legislação que disciplinasse sobre esse título de crédito. Filiamo-nos ao pensamento de Marcos Paulo Félix da Silva. Aduz ele que:
se aceita a tese pela qual sobre os títulos de crédito típicos, isto é, aqueles disciplinados em lei especial, incidem suplementarmente as normas do Código Civil, regulamentada estaria a emissão eletrônica das duplicatas e juridicamente respaldada a sua utilização no meio empresarial, por força do § 3º, do art. 889, em consonância com o previsto no art. 903, da nova lei civil, ambos combinados com as disposições da Lei 5.474/68, com as quais nesse ponto não colidem. [134]
A autenticidade, a integridade, bem como qualquer manifestação cambial a ser dada no título de crédito (o aceite, por exemplo) ficam a cargo da assinatura digital, que é equivalente à firma autógrafa, não existindo nenhum problema acerca da validade dos títulos de crédito eletrônicos.
Desta forma, com o Código Civil, foi dado um passo importante para a aceitação legal da emissão de título de crédito a partir do computador. Na verdade, antes mesmo de existir previsão legal, a duplicata já era emitida em meio informático. Todavia, a relação entre credor e devedor se desenvolvia na base da confiança, diferentemente do que ocorre hoje.
4.4 Lacuna no Ordenamento Jurídico brasileiro
Analisando o nosso ordenamento jurídico, é claramente perceptível que o legislador não tem dado a devida atenção para a temática da executividade e da eficácia de todos dos documentos eletrônicos.
De concreto, até o momento, os principais dispositivos legais que podem ser utilizados para dar total validade às duplicatas virtuais são: a) o art. 8º parágrafo único da Lei nº 9.492/97 (versa sobre a transmissão por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados do protesto por indicações); b) a Medida Provisória nº 2.200-02/2001 (que dispõe sobre a assinatura digital e estabelece a ICP-Brasil); c) o art. 889 §3º do Código Civil (que permite a criação de títulos de crédito por meio do computador); e, recentemente, d) a Lei nº 11.419/2006 (regula a informatização do processo judicial).
Fábio Ulhoa Coelho faz um comentário bastante tímido acerca disso quando assevera que "o direito positivo brasileiro, graças à extraordinária invenção da duplicata, encontra-se suficientemente aparelhado para, sem alteração legislativa, conferir executividade ao crédito registrado e negociado apenas em suporte magnético." [135] Entretanto, é de bom grado que os documentos "despapelizados" tenham uma lei própria, eliminando assim qualquer controvérsia em relação a sua legitimidade.
Dessarte, a jurisprudência ainda não tem uma posição unânime no que diz respeito a aceitar uma execução fundada na duplicata virtual.
Favoravelmente, podemos expor os seguintes arestos:
EMBARGOS DO DEVEDOR. EXECUÇÃO APARELHADA COM NOTAS FISCAIS E BOLETOS BANCÁRIOS DE PAGAMENTOS PROTESTADOS, CONSTITUINDO VERDADEIRA DUPLICATA "VIRTUAL". POSSIBILIDADE. Considerando que a embargante não nega a existência de relação comercial com a empresa sacadora, bem como sua inadimplência, advém a possibilidade de emissão de duplicata. Título que surge de lançamento contábil, sendo desnecessária, portanto, a impressão via papel da cártula. Indicações presentes nos boletos bancários que não são negadas pela sacada, autorizando, como decorrência, o seu aponte e posterior execução. Existência da chamada duplicata virtual. APELO DESPROVIDO. [136]
EXECUÇÃO POR TITULO EXTRAJUDICIAL - DUPLICATA - INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL - CASO EM QUE O JUIZ ENTENDEU OBRIGATÓRIA A EXIBIÇÃO MATERIAL DA CAMBIAL - UTILIZAÇÃO DE MEIO ELETRÔNICO - ADMISSIBILIDADE - EXEQUENTE QUE INSTRUIU O PEDIDO COM A CERTIDÃO DO PROTESTO, AS NOTAS FISCAIS REFERENTES À VENDA MERCANTIL E OS COMPROVANTES DE RECEBIMENTO DAS MERCADORIAS ASSINADAS PELA EXECUTADA - DOCUMENTOS QUE ATENDEM ÀS EXIGÊNCIAS DA LEI - INTELIGÊNCIA DO ART 15, INCISO II, DA LEI 5.474/68E ART 889, § 3°, DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 - SENTENÇA ANULADA–DETERMINADO O PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO - RECURSO PROVIDO. [137]
Em sentido oposto, é o entendimento da seguinte decisão:
Apelação Cível. Requerimento de falência instruído, no caso, com duplicata virtual, gerada por sistema bancário online. Protesto da duplicata virtual em tela efetivado. Exigência de cartularidade deste título de crédito, de molde a torná-lo apto a instruir requerimento de falência. Precedentes jurisprudenciais, neste sentido, do STJ. O aceite pelo devedor do saque virtual do título de crédito referido, bem como a emissão de sua assinatura nos canhotos das notas fiscais, relativas ao recebimento de mercadorias a ele vendidas pela confecção apelante, não podem substituir a natureza formal e nem a materialidade do título aludido. Recurso conhecido e improvido. [138]
Por último, é necessário ressaltar o grandioso passo que o Superior Tribunal de Justiça – STJ está dando ao implantar o processo eletrônico. No dia 8 de junho do corrente ano, essa corte deu início à distribuição eletrônica de processos [139]. Esta implementação pelo Judiciário da desmaterialização dos processos, além de estar em consonância com o princípio da celeridade processual, (celeridade essa que inevitavelmente a informática oferece), será um estímulo a mais para a consolidação do meio eletrônico no mundo jurídico.