4. A SÚMULA 377 DO STF – AINDA APLICÁVEL?
A Súmula 377 foi promulgada pelo Supremo Tribunal Federal no ano de 1964. Eis o seu conteúdo: "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento".
A súmula surgiu a partir dos questionamentos judiciais que envolviam a comunicabilidade dos bens na constância da sociedade conjugal, quando o regime era o da separação obrigatória. Já foi dito que, no regime da separação de bens, os cônjuges preservam o patrimônio individual, formado por bens, direitos e obrigações adquiridos antes e depois do casamento.
Contudo, na separação obrigatória, os cônjuges não tiveram liberdade de escolha do regime de bens. A separação lhes é imposta, por razões legislativas já ventiladas neste trabalho (proteção ao cônjuge e herdeiros). E as controvérsias judiciais que começaram a surgir, em relação à comunicabilidade ou não dos bens adquiridos na constância do casamento, fizeram com que o Supremo Tribunal Federal, enfrentando a questão, editasse a Súmula 377.
Sílvio Rodrigues [18] explica que a súmula ampliava a interpretação do revogado artigo 259 do Código de 1.916, que dispunha que "embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento".
Segundo o autor, acontecia que, embora os nubentes tenham escolhido o regime da separação de bens, haveria a comunicação dos aquestos (princípio da comunhão universal), a menos que existisse no pacto antenupcial disposição expressa acerca da incomunicabilidade. Silvio Rodrigues ainda esclarece que a disposição legal do art. 259 só existia devido a preferência do legislador pelo regime da comunhão.
A interpretação literal do art. 259 não deixava dúvidas que ele se aplicava apenas ao regime da separação convencional, mesmo porque se falava em "silêncio do contrato". Contudo, a jurisprudência começou a enfrentar a tese segundo a qual o citado artigo também gerava efeitos nos casamentos realizados sob o regime da separação obrigatória de bens. Assim, no ano de 1964 o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 377, quando começou a reinar nos Tribunais do País o entendimento segundo o qual na separação obrigatória, os bens adquiridos na constância da sociedade conjugal se comunicavam.
Caio Mário sempre rejeitou a ideia da Súmula, afirmando que o legislador, se quisesse, teria ampliado o efeito da comunicabilidade também para o regime legal. [19] Certo é que, apesar da respeitada opinião de Caio Mário da Silva Pereira, majoritariamente os Tribunais do País passaram a adotar a Súmula 377 do STF, essencialmente convencidos da ideia de que, mesmo no regime da separação de bens, estabelecia-se uma sociedade entre os cônjuges e os bens havidos após esse casamento pertenciam a essa sociedade. Da mesma forma, não seria razoável permitir o enriquecimento de um cônjuge, em detrimento do outro, simplesmente pela forma do regime do casamento.
Além disso, os Tribunais tinham que decidir sobre a necessidade ou não de prova do esforço comum dos cônjuges. Assim é que existiam partidários que defendiam a comunicabilidade dos bens, desde que houvesse prova do esforço comum dos cônjuges, bem como havia aqueles que dispensavam a prova do esforço comum, pois este é presumido numa sociedade conjugal.
Com o advento do Código Civil de 2002, onde não se verifica disposição semelhante ao artigo 259 do Código de 1.916, a questão que se coloca é sobre a manutenção do entendimento da Súmula 377 STF.
Com efeito, o legislador manteve o regime da separação obrigatória. Contudo, não avançou na questão relacionada à comunicabilidade dos aquestos. Poderia tê-lo feito, o que eliminaria a dúvida acerca da vigência da Súmula.
Assim, as opiniões que se verificam hoje são aquelas que defendem a revogação da Súmula 377 e outros que afirmam a vigência de seu conteúdo. É plenamente viável entender pela revogação da Súmula, diante da inércia e do silêncio do legislador acerca do tema da comunicabilidade dos aquestos na separação obrigatória. Se quisesse admitir a comunicabilidade, poderia ter disciplinado a matéria de forma especifica no Novo Código.
Lado outro, é também plenamente viável defender a manutenção da Súmula, já que privilegiar o esforço comum do casal e evitar o enriquecimento sem causa de um dos cônjuges ainda se apresenta como medida necessária, principalmente quando a lei se silencia nesse aspecto.
Podemos citar, como partidário do primeiro entendimento, o da revogação da Súmula, Sílvio Rodrigues [20], alegando que como o C.C/2002l não reproduziu o artigo 259 do Código de 1.916, a Súmula 377 do STF não mais se justifica e deve ser rejeitada. Arnaldo Rizzardo [21], a seu turno, defende a manutenção da Súmula, desde que haja prova do esforço comum do casal na aquisição dos bens durante o casamento. Opinião semelhante é a de Washington de Barros. [22].
Rolf Madaleno [23], sagaz crítico do regime da separação obrigatória, sustenta que o artigo 1.641 do Código Civil de 2002 viola princípios elementares de Direito Constitucional, em especial, a dignidade humana, e que tal ofensa já era combatida pela Súmula 377 do STF, razão pela qual ela se mantém vigente. Érica Verícia de Oliveira Canuto [24] vai mais longe. Além de afirmar a vigência da Súmula 377 defende que no Brasil não existe regime da separação obrigatória, já que os bens adquiridos na constância do casamento se comunicam. Registre-se ainda que a professora potiguar não cogita da prova do esforço comum, ou seja, este é presumido na aquisição dos bens na vigência da sociedade conjugal.
O casamento, conforme estabelece o artigo 1.511 do Código Civil, institui comunhão plena de vida e igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. A Constituição da República, por sua vez, estabelece no artigo 226, § 5º, que os direitos e deveres da sociedade conjugal são exercidos igualmente pelos cônjuges. O que se extrai desses dois dispositivos é que o casamento se fundamenta na ideia de mútua assistência entre cônjuges. Os nubentes se unem mediante casamento porque querem estabelecer uma comunhão de vida. Desejam os mesmos objetivos e vislumbram os mesmos planos para o futuro.
Por isso a interpretação que se mostra mais adequada é aquela que defende a manutenção da Súmula 377 do STF, pois ela se coaduna com os princípios norteadores do casamento e privilegia a divisão do patrimônio que tenha sido adquirido após a união. Vale lembrar que no regime da separação obrigatória os cônjuges não dispõem de liberdade de escolha do regime. A separação lhes é imposta. Se quiserem realmente estabelecer incomunicabilidade total dos bens, basta firmar pacto antenupcial nesse sentido, ou seja, basta realizar casamento adotando o regime da separação convencional.
Se não o fazem é porque de certa medida não querem firmar separação de bens, e só observam este regime porque ele é imposto pela lei. Ademais, pelas características inerentes ao casamento, é mais razoável defender que os aquestos adquiridos na vigência da sociedade conjugal se comuniquem, pois eles se materializaram através da união do casal. Por oportuno, cabe dizer que a prova do esforço comum é prescindível, já que implícito na relação conjugal.
No casamento os cônjuges se ajudam mutuamente, no aspecto material e imaterial. Por isso é mais aceitável que não seja necessário prova do esforço comum. Não se deve sequer cogitar deste elemento/requisito. Não se pode esquecer que esta interpretação evita ainda o enriquecimento indevido de um cônjuge em detrimento do outro.
Ou seja, tratando-se de regime de separação obrigatória, comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento, o que leva à mesma conclusão defendida pela Professora Érica Canuto: no Brasil, qual seja, não existe regime da separação obrigatória de bens, diante da complementação interpretativa da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal.
5. O MAIOR DE 60 ANOS E A IMPOSSIBILIDADE DE ESCOLHA DO REGIME DE BENS
Através do artigo 1.641, II, o C.C/2002 determina que o regime de bens será o da separação, quando um dos nubentes contar com mais de sessenta anos. A regra é incisiva e clara, não deixa dúvidas: se um dos nubentes tiver idade superior a sessenta anos, o casal não poderá escolher o regime de bens que melhor atenda aos seus interesses.
O Código de 1.916 trazia a mesma regra, apenas diferenciando a idade em função do sexo, sessenta anos para o homem e cinquenta anos para a mulher. Em atendimento às diretrizes constitucionais, especialmente a vedação de qualquer tipo de discriminação em função do sexo, o legislador do novel Código igualou a idade para homem e mulher, passando a 60 (sessenta) anos para ambos.
É flagrante a preocupação patrimonial do legislador: evitar o casamento por interesse, o vulgarmente chamado "golpe do baú". Para isso, protege o patrimônio do cônjuge que contar mais de 60 (sessenta) anos. A lei também protege os herdeiros, quando o cônjuge idoso, por exemplo, contrai segundas núpcias.
Na doutrina clássica, merece destaque a opinião de Pontes de Miranda, que lecionava da seguinte maneira:
"8.Idade alta. O maior de sessenta anos e a maior de cinqüenta anos podem casar. Nenhum impedimento existe. Todavia, para evitar explorações, consistentes em levar-se ao casamento, para fins de comunhão de bens, mulheres em idade vulnerável, ou homens em fase de crise afetiva, a lei cortou a possibilidade das estipulações convencionais de ordem matrimonial e excluiu o regime comum. É cogente o da separação." [25]
Registre-se ainda a opinião de Clóvis Bevilácqua, citado por Carvalho Santos:
"Essas pessoas já passaram da idade em que o casamento se realiza por impulso afetivo. Receando que os interêsses (sic) subalternos ou especulações pouco escrupulosas arrastem sexagenários e quinquagenárias a enlaces inadequados e inconvenientes, a lei, põe um entrave à ambições, não permitindo que os seus haveres passem ao outro cônjuge por comunhão". [26]
Percebe-se claramente que a doutrina interpretava a regra como sendo medida necessária à proteção da pessoa idosa que quisesse contrair casamento, justamente para que o enlace não fosse motivado pelo interesse econômico da jovem mulher que escolhesse um senhor de idade para ser seu marido, ou do jovem rapaz, que externasse a intenção de convolar núpcias com uma senhora de idade um pouco já avançada.
Constata-se que a doutrina concordava com a regra. Os tempos eram outros, e a postura do Código de 1.916, enraizada na valorização do patrimônio (cunho eminentemente liberalista), transpunha para o texto legal regras extremas para a proteção do acervo patrimonial e garantia aos herdeiros.
Mas os tempos mudaram. A sociedade evoluiu e, principalmente, a noção de família evoluiu. A mulher conseguiu a sua emancipação econômica e social, passou a ser permitido o divórcio, regulamentou-se a união estável, não há mais discriminação entre filhos havidos ou não do casamento, a entidade familiar não se limita àquela formada apenas pelo casamento, homem e mulher possuem direitos e deveres iguais na administração familiar, caminha-se, atualmente, para a legalização das relações homoafetivas, entre outras quebras de paradigmas que poderiam aqui ser citadas.
Contudo, o Código Civil de 2002 deixou de acompanhar essa evolução, quando tratou do regime de bens, pois preferiu manter vigente uma regra que limita a autonomia privada, a igualdade e a dignidade do nubente idoso.
Na doutrina mais atual, a pesquisa ora realizada conseguiu encontrar opinião favorável à separação obrigatória para o idoso, na Professora Regina Beatriz Tavares da Silva, atualizadora da obra de Washington de Barros Monteiro. Segundo ela, não há qualquer violação constitucional na imposição legal. Para melhor compreensão, vale colacionar o seu entendimento:
"Com o devido respeito pelas posições contrárias ao regime da separação de bens e sua aplicabilidade obrigatória aos casamentos daqueles que contam mais de sessenta anos de idade, é preciso lembrar que o direito à liberdade, tutelado na Lei Maior, em vários incisos de seu art. 5º, é o poder de fazer tudo o que se quer, nos limites resultantes do ordenamento jurídico. Portanto, os limites à liberdade individual existem em várias regras desse ordenamento, especialmente no direito de família, que vão dos impedimentos matrimoniais (art. 1.521, n. I a VII), que vedam o casamento de certas pessoas, até a fidelidade, que limita a liberdade sexual fora do casamento (art. 1.566, n. I). É ainda de salientar-se que não pode o direito de família aceitar que, se reconhecidos maiores atrativos de quem tem fortuna, um casamento seja realizado por meros interesses financeiros, em prejuízo do cônjuge idoso e de seus familiares de sangue". [27]
Há ainda a opinião intermediária de Arnaldo Rizzardo [28], que defende o afastamento da imposição legal quando ambos os nubentes tiverem mais de 60 (sessenta) anos, pois se presumiria que o casamento não estaria se realizando por interesse. Ou seja, este doutrinador ainda entende como válida a proteção em face do perigo do "golpe do baú", o que não ocorreria, por presunção, quando ambos os nubentes forem idosos.
Mas grande parte da doutrina comunga do entendimento segundo o qual a imposição do regime da separação ao nubente maior de sessenta anos fere flagrantemente direitos constitucionais básicos, como a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade. Será pertinente tal posição? É o que o presente trabalho passa a responder.
6. A OFENSA A DIREITOS CONSTITUCIONAIS BÁSICOS
Chega-se finalmente à conclusão de que a imposição do regime da separação obrigatória ao maior de sessenta anos fere direitos constitucionais básicos, como dignidade, igualdade, liberdade e isonomia.
A pergunta que deve ser feita é se, nos dias atuais, se justifica impor tal restrição a um idoso? É razoável presumir que uma pessoa, porque tem mais de 60 (sessenta) anos, possui incapacidade para escolher o regime de bens, caso deseje realizar casamento?
Nos dias atuais, em que as informações são processadas com extrema velocidade, onde a população tem livre acesso ao consumo de bens e à aquisição de produtos, onde todos são livres para manifestação, onde as uniões conjugais podem ser iniciadas e dissolvidas com facilidade e rapidez e, principalmente, quando a população brasileira apresenta, a cada dia, maior expectativa de vida, tanto que se privilegiou a promulgação de um Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741 de 1º de outubro de 2003), indaga-se se é razoável não permitir que um idoso possa escolher o regime de bens para o seu casamento?
Muito se tem dito que o Direito Civil moderno deve sempre ser interpretado sob a perspectiva do respeito à dignidade da pessoa humana. Não se trata de apenas um direito fundamental, mas de verdadeiro fundamento da República, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição.
A dificuldade que se apresenta é encontrar uma definição de dignidade. Trata-se de conceito aberto, de difícil precisão. Por isso, para concluir que o artigo 1.641, II do C.C/2002 é contrário à dignidade da pessoa humana, é preciso estabelecer, minimamente, o que seja dignidade.
A dignidade da pessoa humana parece trazer em si todos os direitos fundamentais (como liberdade, igualdade, intimidade, honra, moral, etc.) e o fato de tal garantia ser fundamento da República, significa dizer, apoiado em Celso Ribeiro de Bastos, que um dos fins do Estado Brasileiro é propiciar as condições para que os cidadãos possam viver com dignidade. [29]
O Constitucionalista André Ramos Tavares [30], apoiado nos obras de Kant, Fábio Konder Comparato e Jorge Miranda, consegue extrair importante noção de dignidade:
"A dignidade do homem não abarcaria tão somente a questão de o homem não poder ser um instrumento, mas também em decorrência deste fato, de o homem ser capaz de escolher seu próprio caminho, efetivar suas próprias decisões, sem que haja interferência direta de terceiros em seu pensar e decidir".
Arremata, colacionando o ensinamento de Jorge Miranda, que defende que a dignidade pressupõe autonomia, autodeterminação perante o Estado e às demais pessoas. Ou seja, não pode haver qualquer causa capaz de cercear a capacidade de decisão do homem, a sua racionalidade. Em resumo, o homem preserva sua dignidade quando consegue desenvolver a sua personalidade a partir da possibilidade de tomada de decisões.
A dignidade pressupõe a autonomia, a autodeterminação do indivíduo, que pode e deve ter a liberdade e a possibilidade de escolher sobre as questões que envolvem a sua vida, no aspecto material ou imaterial. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que lhe dá poder de decisão sobre sua vida e sobre seus negócios.
Dignidade significa pleno exercício dos direitos fundamentais, só sendo razoável a restrição desse exercício em casos onde realmente o Estado deve agir para garantir um fim maior, que seja suficientemente importante para justificar o tolhimento da autonomia do indivíduo. A autonomia privada não pode ser extirpada do idoso, por não haver qualquer justificativa para a opção legislativa do Código Civil de 2002.
Em se tratando de Direito de Família, a Constituição da República ainda determinou que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, sendo vedada qualquer forma de coerção a entidade familiar. Ou seja, mais uma vez o ordenamento jurídico brasileiro privilegia a autonomia privada do indivíduo, outorgando-lhe proteção para a construção do planejamento familiar, que não abrange somente a criação da prole, mas também o planejamento sucessório, que se, principalmente, pela análise e escolha do regime de bens do casamento.
Não é plausível que o idoso seja cerceado do direito de poder escolher o regime de bens que melhor atender aos seus interesses no casamento. A imposição do regime de bens da separação ao sexagenário não se justifica. Contraria a dignidade da pessoa humana, sem que haja qualquer substrato para tanto.
Por isso, não há outro caminho se não concordar com Érica Verícia de Oliveira Canuto [31], que defende a inconstitucionalidade do citado dispositivo de lei:
"Entretanto, a sanção que impõe o regime de separação obrigatória de bens aos maiores de 60 anos, limitando a autonomia da vontade, exclusivamente calcada em razão da idade, deve ser interpretada como uma norma restritiva de direitos, que fere o fundamento da dignidade da pessoa humana e presume indevidamente, a incapacidade dos maiores de 60 anos, indo de encontro, inclusive, ao princípio da isonomia, já que á previsão de disciplina diversa para pessoas de idade inferior e garantia de liberdade.
A limitação da vontade, em razão da idade, impondo regime de separação obrigatório de bens, longe de se constituir uma precaução (norma protetiva), constitui-se em verdadeira sanção ou restrição de direitos.
A lei permite a realização do casamento do casamento das pessoais maiores de 60 anos, que diz respeito à questão relativa ao estado da pessoa, constituindo-se em direito indisponível. Sem qualquer motivação justificável, limita a vontade dessas pessoas – apenas em razão da idade – no aspecto patrimonial do casamento, que é direito totalmente disponível.
O que faz o dispositivo é criar uma hipossuficiência objetiva em razão da idade. O que é de todo descabida e inconstitucional"
Não é coerente nos dias atuais, ainda mais após a promulgação do Estatuto do Idoso, que exista limitação para o exercício de uma liberdade individual apenas em razão da idade. Tal situação realmente fere a Constituição da República.
Fere porque a imposição do artigo 1.641, II do C.C/2002 desrespeita o direito a dignidade, e também os direitos a ele ligados, quais sejam, a liberdade, igualdade e isonomia. Ora, a restrição à liberdade de contratar o regime de bens, simplesmente pelo fator idade, presume que o idoso não tenha capacidade para contratar. A par disso, tal regra não existe para indivíduos que tenham menos de 60 (sessenta) anos, o que ofende o direito à igualdade.
Outro problema que se verifica no dispositivo é a ofensa à isonomia, já que na entidade familiar união estável não existe regra semelhante. Quer dizer, que um casal que queira viver em união estável, mesmo se um dos nubentes for maior de 60 (sessenta) anos, poderá fazê-lo, escolhendo o regime que bem entender, ou tão somente não escolhendo regime algum, o que levará à adoção da comunhão parcial.
Vale registro as posições doutrinárias que seguem o mesmo raciocínio, como a de Rolf Madaleno:
"Em face do direito à igualdade e à liberdade ninguém pode ser discriminado em função do seu sexo ou da sua idade, como se fossem causas naturais de incapacidade civil. Atinge direito cravado na porta de entrada da Carta Política de 1988, cuja nova tábua de valores coloca em linha de prioridade o princípio da dignidade humana, diretriz que já vinha sendo preconizados pela Súmula n. 377 do STF, ao ordenar a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento, como se estivesse tratando da comunhão parcial de bens."
Trocando em miúdos, a Constituição Federal garante a todos os cidadãos o direito a liberdade, igualdade e estabelece como fundamento da República a dignidade da pessoa humana. E o que o dispositivo do Código Civil em comento mostra é um total desrespeito a esses direitos.
Não se sustenta a alegação de que o idoso deve ser protegido dos "aventureiros" que possam querer contrair um casamento com fins meramente patrimoniais. Ora, o idoso tem condições de decidir e adotar o melhor regime de bens para o seu casamento, da mesma forma que tem condições de escolher o seu cônjuge, a pessoa com que queira se casar.
Ademais, como bem ponderado pelo professor Rolf Madaleno, ninguém pode ser discriminado em razão da sua idade. E o artigo 1.641, II, do C.C/2002 é um claro exemplo de discriminação por idade. Quer dizer, que todas as pessoas têm a liberdade de escolher o regime de bens, exceto o idoso, porque ele, coitado, deve ser protegido (ou ter o seu patrimônio protegido) dos prováveis aproveitadores.
O idoso, pessoa que tanto já contribuiu para o desenvolvimento da sociedade, da família, pessoa que sem sombra de dúvida detém grande experiência de vida, precisa ser protegido de atos arbitrários, que violam a sua dignidade e liberdade. Frise-se ainda, que o dispositivo, que ora se conclui como inconstitucional, está na contramão dos direitos fundamentais que foram reafirmados no Estatuto do Idoso, que em seu artigo 2º estabelece que o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.
Em complemento, o artigo 10 do mesmo diploma legal, que vem inserido no Capítulo intitulado "do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade" preconiza que "é obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis".
Portanto, não há como defender a manutenção do artigo 1.641, II do C.C/2002. Tal dispositivo é inconstitucional e deve ser extirpado do corpo do Código. Enquanto isso não ocorre, vale registro às manifestações já existentes nesse sentido, em especial, o que vem sendo discutido nas Jornadas de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal.
Na III Jornada de Direito Civil, se colhe a seguinte proposta e justificativa, de autoria do Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Luiz Felipe Brasil Santos:
"A obrigatoriedade do regime da separação de bens para as pessoas que celebrarem matrimônio a partir de determinada faixa etária (seja ela qual for), atenta contra o princípio maior da dignidade da pessoa humana, fundamento da República. Nos dias que correm não mais se justifica essa odiosa regra restritiva, fruto de um superado Código marcadamente patrimonialista, como o de 1916, e incompatível com o espírito da legislação codificada hoje vigente, que sobreleva a dignidade da pessoa humana.
Nessa perspectiva, havendo incapacidade do idoso para casar, a situação resolve-se pela interdição. Porém, sendo plenamente capaz, deve sê-lo para a prática de todos os atos da vida civil, inclusive para suportar as conseqüências patrimoniais do casamento, nenhuma razão existindo para essa capitis diminutio, resultante de uma inconsistente presunção de incapacidade, que, para esses efeitos, torna-se até absoluta". [32]
O Desemb. Luiz Felipe traça a compreensão adequada do tema: se o idoso for incapaz, o será para todos os atos da vida civil e tal situação se resolve através da via judicial da interdição. Contudo, se o idoso é plenamente capaz, também será capaz de contrair casamento e, como não podia ser diferente, de escolher o regime de bens que melhor lhe atender.
Fica demonstrado e abalizado que o artigo 1.641, II, do C.C/2002 é inconstitucional, pois fere direitos e garantias fundamentais preconizados na Constituição Federal, notadamente, dignidade, liberdade, igualdade e isonomia, não existindo, nos dias atuais, justificativa para essa restrição da autonomia do idoso.