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Excesso de execução.

Consequências jurídicas do cumprimento de pena em regime mais gravoso que o previsto na sentença ou decisão judicial

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Agenda 27/12/2009 às 00:00

A monografia aborda a problemática questão dos presos que fazem jus ao regime semi-aberto, mas que, por insuficiência de vagas nos estabelecimentos adequados, permanecem inconstitucionalmente no regime fechado.

RESUMO

A presente monografia aborda a problemática questão dos presos que fazem jus ao regime semi-aberto, mas que, por insuficiência de vagas nos estabelecimentos adequados, permanecem inconstitucionalmente no regime fechado. O trabalho tem como escopo apresentar ao leitor o drama vivenciado por milhares de sentenciados que eternamente aguardam a almejada progressão de regime, mas que, pela falência do sistema carcerário, se veem tolhidos do exercício de um direito garantido constitucionalmente. A principal preocupação é demonstrar, ainda que brevemente, as consequências jurídicas que decorre de tal situação, especialmente a ofensa a diversos princípios basilares do ordenamento, como a dignidade da pessoa humana, a humanidade das penas, a legalidade, a coisa julgada e a individualização das penas. O estudo se desenvolve sob o viés da jurisprudência e doutrina pátrias majoritárias.

Palavras-chave: Monografia; Regime de pena; Falta de vagas; Manutenção em regime mais severo; Consequencias jurídicas


1 INTRODUÇÃO: A DESDITA CARCERÁRIA

É cediço e notório o conhecimento de que a situação do sistema carcerário brasileiro, de há muito, é pachorrentamente relegada ao mais completo limbo. Mais claramente: já "passou do fundo do poço". E, apesar disso, os administradores públicos, ditos agentes políticos, cuja missão primacial é a de obedecer aos escopos da República Federativa do Brasil e aos princípios da legalidade, moralidade e eficiência, quedam-se na mais desprezível inércia.

Dentre os incomensuráveis abusos perpetrados contra os encarcerados no sistema prisional brasileiro, encontra-se a inadmissível permanência de condenados ao regime semi-aberto cumprindo a reprimenda em regime fechado.

Trata-se de problemática corriqueira para quem atua nas Varas das Execuções Criminais.

Milhares de presos condenados ao regime fechado obtêm a progressão de regime, sem, contudo, decorrer qualquer modificação fática na situação prisional, haja vista não haver vaga em colônias agrícolas, industriais ou estabelecimentos similares.

O sempiterno subterfúgio empregado pelas secretarias da administração penitenciária é o mesmo: a inexistência de vagas para a gama de presos condenados ao regime semi-aberto.

A insustentável realidade é reiteradamente alertada aos órgãos competentes para que seja extirpada a situação vergonhosa e humilhante irrogada contra os presos com a superlotação, sobremaneira aos já condenados que cumprem pena nos distritos policiais.

O tratamento aviltado ofende princípios fundamentais estampados na Constituição da República Federativa do Brasil, tais como: a dignidade da pessoa humana; a erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais e a prevalência dos direitos humanos.

Inobstante, também são direitos e garantias constitucionais: I) ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; II) a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; III) é assegurado aos presos à integridade física e moral.

Adicione-se que outros diplomas existem a tutelar os condenados em tais situações esdrúxulas como, por exemplo, o Pacto de San Jose da Costa Rica, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 etc.

Em que pese a norma contida no artigo 37, caput da Constituição da República impor o princípio da estrita legalidade como norte ao administrador público, a situação carcerária brasileira trafega sobre a nebulosa e turva estrada das disparidades, contaminada por políticas direcionadas aos discutíveis interesses do administrador público, o que, em detrimento do interesse comum, obstaculiza a efetividade dos imperativos legais. In verbis [01]:

A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (grifo nosso).

A vasta seara de diplomas normativos, tanto de índole constitucional quanto infraconstitucional, destinada a oferecer guarida aos condenados, não se efetiva ante os desdenháveis interesses políticos, de modo que o tecido social se esgarça cada vez mais e coloca em xeque a legitimidade do próprio Estado.

De outra banda, tem-se que a estarrecedora problemática aqui narrada avulta ofensa à dignidade humana, revolta e marginaliza ainda mais o condenado e atenta contra a sua integridade física e moral porque as atuais cadeias, penitenciárias e centros de detenção provisórias estão impregnados de doenças, epidemias e infecções, além do insosso tratamento que não se dispensa a um animal selvagem.

Em síntese, incinera-se a viabilidade de (re)inserir o condenado no convívio social, que, segundo a Lei de Execução Penal, é uma das finalidades da pena.

O encarceramento em regime fechado dos condenados ao regime semi-aberto só hipertrofia nos reclusos o ódio, a sede de instintos, e complementarmente lhes acarreta a indiferença e marasmo espiritual.

O Estado não pode executar a sentença condenatória de maneira diferente daquela determinada na decisão judicial.

Não é ocioso consignar ser de conhecimento daqueles que militam nas execuções criminais, que medida como a de conservar condenados ao regime semi-aberto em regime fechado enseja superlotação de estabelecimentos prisionais. Como consectário, transbordam de presos, e, muitas vezes, a rebelação se manifesta com a escolha de algumas cobaias da cela para ser executada, chamando-se, com isso, a atenção do administrador público, que por sua vez, quando se sensibiliza, transfere alguns presos a outro estabelecimento.

Perceba-se que a realidade inditosamente compele o condenado à reincidência e a rebelação inopinada.

Mister se faz o reconhecimento dos direitos fundamentais inerentes a todos os condenados ao regime semi-aberto para que se coloque termo à omissão estatal.

O sistema prisional, neste aspecto (e em muitos outros), se assemelha ao empregado pelos Regimes totalitários Nazistas e Fascistas, tão rechaçados pela humanidade.

O condenado inserido no sistema carcerário brasileiro é tratado como um "inimigo do Estado".

Acontece que a massificação da imprensa escrita e televisiva enaltece a criminalidade, incutindo na mente dos receptores uma sensação de que a insegurança social aumenta cada vez mais. E, aproveitando-se do ambiente de fragilidade emocional da população – que por sua vez está desiludida com a forma como o Estado vem sendo conduzido – soerguem-se governistas com campanhas popularescas e alienadoras dizendo exatamente o que a plebe deseja ouvir: "Vamos prender os criminosos a todo custo!". Trata-se, na verdade, de movimento gerador de legislações simbólicas e punitivistas, que vem sendo adotado nas últimas décadas, com grande amplitude, em toda América.

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Este ambiente hostil contribui sobremaneira para o beneplácito da população com a situação ora combatida. O que essa mesma população não percebe é que a criminalidade só aumenta, e pouco tem sido feito para combater suas causas (como educação, socialização do menor e do adolescente, moradia, emprego, integração familiar, redução das desigualdades sociais etc).

Eis o prisma sociológico do sistema carcerário brasileiro.

Tal situação não deve nem pode mais perdurar, exige-se que o Poder Judiciário intervenha no sentido resguardar os direitos e garantias fundamentais indissociáveis a todos aqueles que se encontram indevidamente inseridos no regime prisional mais gravoso do que o estabelecido na sentença.

Doravante, analisar-se-ão desde as consequências jurídicas do quadro fático acima apresentado – com atenção especial aos princípios mais basilares violados pelo administrador público – até a repercussão da conduta na esfera cível, que garante aos condenados o direito à compensação pelo cumprimento da pena de forma indevida.


2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A dignidade da pessoa humana é unidade de valor da ordem constitucional e, em especial, no que se refere aos direitos fundamentais do homem. É valor constitucional supremo que agrega em torno de si a unanimidade dos demais direitos e garantias fundamentais do homem, expressos na Constituição [02].

Obtempera Uadi Lamengo Bulos [03] (2008:83), ao dispor que:

Quando o Texto Constitucional proclama a dignidade da pessoa humana, está corroborando um imperativo de justiça social. É o valor constitucional supremo, no sentido de que abarca três dimensões: 1ª fundamentadora – núcleo basilar e informativo de todo o sistema jurídico-positivo; 2ª) orientadora – estabelece metas ou finalidades predeterminadas, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles fins enunciados pelo sistema axiológico constitucional; e 3ª) crítica – em relação às condutas (grifo nosso).

Em sendo a dignidade da pessoa humana um valor de índole constitucional, tem-se, nos ensinamentos de Antonio Enrique Pérez Luño [04], que:

Os valores constitucionais compõem, portanto, o contexto axiológico fundamentador ou básico para a interpretação evolutiva da constituição; e o critério para medir a legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade"

2.2 Contextualização da dignidade da pessoa humana no ordenamento brasileiro

A dignidade da pessoa humana não se encontra dentre os direitos fundamentais insertos no catálogo previsto no artigo 5° e seus incisos, da Constituição da República, pois, por opção legislativa, foi elevada à categoria de fundamento da República Federativa do Brasil, como se depreende do artigo 1°, inciso III da Carta Magna. E assim o é porque o Estado deve ser encarado como meio e nunca como o fim. Neste diapasão, o Estado é o meio pelo qual se preserva a dignidade da pessoa humana [05].

Celso Ribeiro Bastos [06], por seu turno, leciona que a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil significa que "é um dos fins do Estado propiciar as condições para que as pessoas se tornem dignas".

A atual contextualização da dignidade da pessoa humana ganhou cenário após o advento da Segunda Grande Guerra, em que a comunidade mundial, horrorizada com as barbaridades perpetradas pelo Regime Nazista, necessitava criar mecanismos de proteção a todos os povos. Como acentua Paulo Hamilton Siqueira Jr [07]:

O alicerce e o fundamento dos direitos humanos surge da concepção de que toda a nação e todos os povos têm o dever de respeitar direitos básicos de seus cidadãos e de que a comunidade internacional tem o direito de protestar pelo respeito à dignidade da pessoa humana.

Por oportuno, apregoa a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 [08], em seu preâmbulo, que:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,

Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão,

Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,

Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mis alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso, [...] (grifo nosso).

2.3 A dignidade da pessoa humana e o atual panorama carcerário do Brasil

O primeiro grande postulado rompido com o excesso de execução descrito é a dignidade da pessoa humana.

Não obstante a magnitude do princípio vertente, a situação que emerge no sistema carcerário do brasileiro vilipendia os direitos da pessoa e afronta o objetivo da Declaração Universal de 1948, pois resulta em atos que ultrajam a consciência da Humanidade.

O artigo 1º da Lei de Execução Penal [09] é eloquente no que se refere ao escopo da (re)integração social do condenado e do internado, como se infere de sua transcrição:

Art. 1°. A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

Com efeito, existem alguns requisitos materiais necessários para a consecução desse resultado. Esses requisitos dizem respeito à satisfação das condições para a existência digna e para o perfeito desenvolvimento da pessoa do condenado, com a finalidade de viabilizar seu harmônico (re)ingresso no convívio social.

É imprescindível que a execução da pena imposta ocorra em estabelecimentos carcerários que – da mesma maneira que propiciem a necessária cominação da reprimenda nos moldes da política criminal – preservem a integridade do condenado e lhe garantam tanto a habilitação pessoal para o convívio na sociedade quanto a possibilidade de sua efetiva inclusão nessa mesma sociedade. Nesse sentido, dispõe a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 [10] que:

Artigo 5º - Direito à integridade pessoal: 1. Toda pessoa tem direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. (grifo nosso).

Em outras palavras, o respeito à integridade física, psíquica e moral não é nada mais que manifestação da dignidade da pessoa humana.

2.4 O entendimento pretoriano que um dia já foi majoritário

Nada obstante a primazia da dignidade da pessoa humana, há entendimento jurisprudencial dando beneplácito à situação que neste trabalho se denuncia, é o que se pode colher da ementa jurisprudencial que abaixo se transcreve [11]:

1- Habeas Corpus. 2- Possibilidade de indeferimento liminar pela turma julgadora - Interpretação a que conduzem o artigo 93, inciso XV da Constituição Federal, o artigo 663 do Código de Processo Penal, o artigo 504 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e o artigo 1" da Resolução 204/05 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 3- Progressão no regime de cumprimento da pena já concedida pelo juízo da execução - Petição de impetração inepta porque ataca o julgador de 1" instância (que concedeu o beneficio pretendido) em face do descumprimento, por terceiro, dessa decisão. 4- Falta de vaga nos estabelecimentos apropriados para o cumprimento de pena no regime semi-aberto - Aplicação do princípio da razoabilidade, devendo o executado permanecer no regime fechado enquanto aguarda a abertura de vaga. 5- Writ não conhecido (grifo nosso).

É interessante que no julgado supra entendeu-se, inicialmente, pelo não conhecimento do writ, haja vista a inépcia da petição inicial, pois, segundo o os pretores, o pedido nela deduzido não decorreu logicamente dos fatos narrados, ao que, o impetrante interpôs habeas corpus contra ato do magistrado que atendeu ao pedido do condenado, concedendo o benefício pretendido.

E se o magistrado concedeu a pretensão deduzida – progressão de regime prisional –, o paciente só permanece no regime mais gravoso por inércia do Poder Executivo e não do Judiciário.

Além disso, o nobre julgador, refutando de vez a tese do impetrante, delineou que, ainda que não fosse caso de não conhecimento do remédio heróico, mesmo assim não seria o caso de concessão da ordem pela seguinte fundamentação:

Ante as dificuldades próprias de país em desenvolvimento, é compreensível o decurso de tempo para a materialização do comando judicial, como de resto ocorre em todas as áreas de atuação da Administração. A consideração dessa realidade enseja a aplicação do princípio da razoabilidade, pois a limitação do número de vagas, nos estabelecimentos apropriados para o cumprimento de pena nos regime semi-aberto, exige o respeito à fila existente. E a impetrante sequer afirmou desatenção à ordem de espera, pretendendo, equivocadamente, que a atual falta de vaga acarrete o imediato ingresso no regime aberto. O paciente não faz jus ao desrespeito à fila existente e a passar à frente dos que há mais tempo aguardam vaga no regime intermediário.

Acresça-se que o preso transferido para o regime semi-aberto não está preparado para o regime aberto. Neste último não pode ingressar sem que previamente o juízo da execução reconheça seu preparo para o mais brando dos regimes. Sem essa decisão judicial a passagem do preso para o regime aberto representa risco ao qual a sociedade não pode ser submetida. Em outras palavras, inexistindo vaga no regime semiaberto o preso deverá aguardá-la no regime fechado.

Como se pode perceber do excerto acima, há enorme conformismo por parte da jurisprudência – hoje minoritária – quanto ao excesso de execução, ante o subdesenvolvimento nacional, o que, por si só, justificaria a inadmissível manutenção do reeducando em patente inconstitucionalidade. E, ainda, a fim de dar evasão ao entendimento adotado, recorre-se ao princípio da razoabilidade como razão de decidir.

Entendeu-se, nesta senda, que deferir a progressão ao reeducando não seria razoável, pois o colocaria em situação vantajosa em relação aos demais que no mesmo drama se encontram.

Por fim, laborando em elucubrações, parte-se da premissa de que o reeducando, se inserido no regime aberto pela falta de vaga no regime semi-aberto, representaria um risco indesejável à sociedade.

Vislumbre-se que, neste sistema, o preso é tratado, segundo terminologia empregada por Günther Jakobs [12], como um inimigo. Perceba-se que a atual conjuntura do sistema carcerário nacional encara os conflitantes com a lei como "não-cidadãos". Essa é a mais pura aplicação do "Direito Penal do Inimigo".

E o que é pior, quando este "inimigo da sociedade" ingressa no sistema carcerário passa a ser avaliado por um juízo de diagnose e não de prognose, como deveria ser. Dever-se-ia ingressar no tempo de cumprimento da pena voltado para um enfoque perspectivo, pois é o futuro do condenado, e não seu passado, que está a interessar quando da apreciação de seus pleitos de progressão de regime e outros direitos.

Com todo respeito ao posicionamento expendido pelo nobre Desembargador, mas a tese não merece qualquer guarida. Primeiro porque o paciente não estaria se sobrepondo aos demais condenados na mesma situação, pois, o que se defende aqui é que não só ele, mas todos os condenados que tenham direito ao regime semi-aberto e não se encontrem no regime adequado, sejam colocados no regime mais favorável (regime aberto).

Para tanto, a regra geral que se entende correta é a de que todos os magistrados, cientes da situação em debate, de ofício, devem conceder o regime mais benéfico aos condenados enquanto não houver estruturação do sistema carcerário para acolher os presos em seus respectivos regimes prisionais. O problema é que, como a realidade não enceta para este sentido, os condenados acabam por impetrar habeas corpus, com o fito de ver cessado o constrangimento ilegal. Mas, como nem todos possuem causídicos constituídos – pois a enorme parte da população carcerária é economicamente hipossuficiente – e não existe Defensorias Públicas estruturadas nos mais longínquos rincões deste País de dimensão continental – alguns conseguem obter o remédio heróico, enquanto outros aguardam passivos à inconstitucionalidade operada. Esta sim é uma situação que fere a isonomia de tratamento de cidadãos que se encontram na mesma situação processual.

Segundo porque não há que se fazer ponderação de interesses entre o interesse social e a liberdade do reeducando de não se ver tolhido do exercício de direitos não abrangidos pela lei ou sentença.

Note que em sede de direito penal não se pode trabalhar com futurismos, e, acreditar que o condenado novamente irá delinquir é se valer do chamado direito penal do autor – que foi amplamente empregado pelos regimes totalitários, incluindo o Nazismo e Fascismo – e não do direito penal do fato – adotado pelos Estados Democráticos.

Não se pode desprezar o fato de que, embora encarcerado, o reeducando mantém seu status de ser humano e, ato contínuo, possui dignidade inerente à sua condição como tal.

Lamentavelmente, a cultura mundial rechaça e marginaliza a população carcerária. A expressão "direitos humanos" vem sendo tratada com desdém e, segundo os leigos, confundida com os chamados "direitos dos bandidos", ou seja, dos delinquentes. O que se esquece é que não só o preso, mas todo e qualquer ser humano é dotado de um mínimo de dignidade que lhe é inerente, independentemente de sua classe ou condição social, cor de pele, nível intelectual, origem, raça, cor, credo, idade, orientação sexual e assim por diante. E se para muitos causa espanto, até mesmo o preso está imantado por esta dignidade.

Forçosa a transcrição das ponderações de Ingo Wolfgang Sarlet [13], que, dissertando acerca de uma tentativa de aproximação e concretização da dignidade da pessoa humana, sob uma perspectiva jurídico-constitucional, aduz o seguinte:

[...] não se deverá olvidar que a dignidade – ao menos de acordo com o que parece ser a opinião largamente majoritária – independe das circunstâncias concretas, já que inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que, em princípio, todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos. Assim, mesmo que se possa compreender a dignidade da pessoa humana – na esteira do que lembra José Afonso da Silva – como forma de comportamento (admitindo-se, pois, atos dignos e indignos), ainda assim, exatamente por constituir – no sentido aqui acolhido – atributo intrínseco da pessoa humana (mas não propriamente inerente à sua natureza, como se fosse um atributo físico!) e expressar o seu valor absoluto, é que a dignidade de todas as pessoas, mesmo daquelas que cometem as ações mais indignas e infames, não poderá ser objeto de desconsideração. Aliás, não é outro o entendimento que subjaz ao art. 1º da Declaração Universal da ONU (1948), segundo o qual "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade", preceito que, de certa forma, revitalizou e universalizou – após a profunda barbárie na qual mergulhou a humanidade na primeira metade deste século – as premissas basilares da doutrina kantiana. (grifo nosso).

E, para se colmatar definitivamente o equivocado entendimento pretoriano, mais uma vez se recorre aos ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet [14]:

[...] a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade [...]

Recolhendo aqui a lição de Podlech, poder-se-á afirmar que, na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, porquanto, deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado (este sendo considerado o elemento fixo e imutável da dignidade). Como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade da pessoa reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade [...].

Vale colacionar a crítica tecida por Enrique Ricardo Lewandowski [15]:

[...] os problemas relativos à institucionalização dos direitos humanos não se encontram no plano de sua expressão formal, posto que, nesse campo, grandes avanços foram feitos desde o surgimento das primeiras declarações a partir do final do século XVIII. As dificuldades localizam-se precisamente no plano de sua realização concreta e no plano de sua exigibilidade.

Postas tais considerações em torno da dignidade da pessoa humana e a estarrecedora situação dos condenados que eternamente aguardam vaga no regime semi-aberto, é de se concluir que o enorme problema da dignidade da pessoa humana não é a falta de amparo jurídico, mas sim na falta de boa vontade dos operadores do direito e dos administradores públicos.

Sobre o autor
Rafael de Souza Miranda

Defensor Público do Estado de São Paulo. Membro do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Coordenador Regional da Escola da Defensoria Pública – Regional Mogi das Cruzes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Rafael Souza. Excesso de execução.: Consequências jurídicas do cumprimento de pena em regime mais gravoso que o previsto na sentença ou decisão judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2370, 27 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14077. Acesso em: 2 nov. 2024.

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