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Excesso de execução.

Consequências jurídicas do cumprimento de pena em regime mais gravoso que o previsto na sentença ou decisão judicial

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27/12/2009 às 00:00
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3 HUMANIDADE DA PENA

O tratamento dado aos presos condenados ao regime semi-aberto e mantidos absurdamente no fechado – ou aos presos mantidos no regime fechado em promoção garantida judicialmente – ofende o princípio da humanidade da pena, antevisto no artigo 5°, inciso III da Constituição da República, segundo o qual, "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante".

Saliente-se que o mesmo princípio encontra guarida na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que, em seu artigo V possui a seguinte redação: "Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante".

Não por menos, o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 [16] acena para a mesma diretriz: artigo 7º. "Ninguém poderá ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas".

O mesmo Pacto, no artigo 10, n° 1 tem o seguinte preceptivo: "Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana".

Por último, a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos de 1969, em seu artigo 5º, nº 2 rezando que: "Ninguém deve ser submetido a tortura, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano".

3.2 O desrespeito à humanidade da pena

A realidade carcerária, por omissão contumaz de seus administradores públicos, é deprimente e caminha em sentido oposto à via eleita pelo legislador constituinte em evitar a prática de crueldade e da selvageria, amparando o homem contra possíveis agressões físicas e, até mesmo, morais.

Sobre a ofensa ao princípio da humanidade das penas pela manutenção de condenado ao regime semi-aberto no fechado, traz-se à liça o seguinte aresto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul [17]:

A idéia central da progressão de regimes prisionais ‘se enraíza na diminuição da intensidade da pena como conseqüência da conduta e do comportamento do recluso’ (M. Cobo del Rosa; T. S. Vives Anton. Derecho Penal – Parte General, p. 737), de modo que o condenado possa, gradativamente, ver aproximado o ideal da liberdade e de que o próprio Estado lhe propicie os meios para sua adequação a um novo compromisso de sociabilidade. A progressão, então, está sustentada logicamente pelos objetivos maiores da ressocialização e constitui, essencialmente, movimento de reconhecimento do mérito. O princípio da progressão articula-se, também, com o compromisso humanitário da execução das penas, uma vez que seria especialmente cruel exigir de todos os condenados que expiassem suas culpas em um único regime de sujeição absoluta, não lhe oferecendo qualquer incentivo ao desenvolvimento de condutas colaborativas, produtivas e respeitosas. Na execução penal, os comandos legais adquirem sentido pleno quando em relação com os princípios da atenuação e do nihil nocere (Adela Asua. El Regimen Penitenciario Abierto, Consideraciones sobre su Fundamentación, Criminologia e Derecho penal a Servicio de la Persona, p. 995-971). Pelo primeiro, nos afastamos da idéia do trancafiamento exclusivo do condenado e passamos a valorizar todos os estímulos necessários para que ele exercite, efetivamente, os direitos não atingidos pela sentença, atenuando-se, por este caminho, os efeitos que podem ser devastadores, derivados da supressão da experiência de vida em comum. Pelo segundo, os efeitos deletérios da segregação forçada devem ser evitados tanto quanto possível para que se contorne o resultado indesejado da ‘dessocialização’. Com estas duas balizas fundamentais, o movimento da progressão perde a eventual aparência ‘disciplinar’ e passa a se confundir com um ‘mínimo ético’, cujas raízes foram fincadas na Constituição Federal" (grifo nosso).

Neste diapasão, pode-se dizer que o princípio da humanização das penas implica necessariamente – além de outros aspectos – na adoção de um sistema progressivo de cumprimento de pena, segundo o qual se confere ao condenado, mediante o preenchimento de certos requisitos de ordem objetiva e subjetiva, passar do regime mais gravoso ao mais brando.

Segundo Santiago Mir Puig [18] (2007:99):

Enquanto sejam inevitáveis, as prisões devem garantir condições mínimas de humanidade, conforme as exigências da ONU. No entanto, a realidade das prisões ainda não se adaptou a estas exigências.

[...]

É a dignidade do indivíduo, como primeiro limite material a ser respeitado por um Estado democrático, que fixa limites máximos à rigidez das penas e aguça a sensibilidade de todos com relação aos danos por elas causados. Ainda que para o Estado e até para a coletividade fosse conveniente defender-se com penas cruéis, a isto se opõe o respeito à dignidade de todo homem – inclusive do delinqüente – que deve ser assegurada em um Estado para todos.

De forma objetiva e precisa, observa Carmen Silvia de M. Barros [19] que:

O princípio da humanidade da pena determina que toda pessoa condenada será tratada humanamente e com o respeito devido à dignidade à todos inerente. Que o homem nunca deverá ser tratado como meio, mas somente como fim, como pessoa, o que quer significar que, independentemente da argumentação utilitarista que se siga, o valor da pessoa humana impõe uma limitação à qualidade e quantidade da pena. Implica, pois, em proibição de adoção da pena de morte, de tratos desumanos, cruéis ou degradantes (aí incluído o rigor desnecessário e as privações indevidas impostas aos condenados).

[...]

A humanização da execução é postulado fundado em um conceito de justiça corretamente entendido. Lutar pelos direitos e pela dignidade de todos os cidadãos é lutar pela democracia" (grifo nosso).

Ressalte-se, ademais, que a conduta indigna levada a cabo pela Administração Penitenciária Brasileira desrespeita as disposições constantes das regras mínimas para o tratamento de prisioneiros adotadas pela ONU [20], a saber:

57. A prisão e outras medidas cujo efeito é separar um delinqüente do mundo exterior são dolorosas pelo próprio fato de retirarem do indivíduo o direito à auto-determinação, privando-o da sua liberdade. Logo, o sistema prisional não deverá, exceto por razões justificáveis de segregação ou para a manutenção da disciplina, agravar o sofrimento inerente a tal situação" (grifo nosso).

Não há como se negar que a manutenção do reeducando em regime mais rígido que o aplicado na sentença agrava intensamente o sofrimento experimentado pela pessoa. Como se percebe da resolução internacional, a própria separação do cidadão do mundo exterior já lhe causa sofrimentos tão só pelo fato de ter sido retirado o direito à autodeterminação, privando-o da sua liberdade, e além da liberdade, lhe retirar a humanidade da pena, configura uma atrocidade sem limite.

Nessa trilha, exsurgem as regras mínimas para o tratamento de prisioneiros adotadas pela ONU, quando dizem, na parte II, n° 57, que

O fim e a justificação de uma pena de prisão ou de qualquer medida privativa de liberdade é, em última instância, proteger a sociedade contra o crime. Este fim somente pode ser atingido se o tempo de prisão for aproveitado para assegurar, tanto quanto possível, que depois do seu regresso à sociedade o delinqüente não apenas queira respeitar a lei e se auto-sustentar, mas também que seja capaz de fazê-lo.

O modo pelo qual a situação carcerária brasileira vem sendo conduzida neutraliza qualquer possibilidade de se atingir a finalidade do direito penal de proteger os bens jurídicos indispensáveis à sociedade, mormente se se considerar que inexiste perspectiva ao reeducando de futuro digno, o que lhe impele novamente ao universo do delito.

Dizem, ainda, as regras mínimas de tratamento ao preso que:

Para alcançar esse propósito, o sistema penitenciário deve empregar, tratando de aplicá-los conforme as necessidades do tratamento individual dos delinqüentes, todos os meios curativos, educativos, morais, espirituais e de outra natureza, e todas as formas de assistência de que pode dispor.

Mas não é só, pois:

O regime do estabelecimento prisional deve tentar reduzir as diferenças existentes entre a vida na prisão e a vida livre quando tais diferenças contribuírem para debilitar o sentido de responsabilidade do preso ou o respeito à dignidade da sua pessoa.

Por oportuno, as regras mínimas de tratamento impõem ser:

Conveniente que, antes do término do cumprimento de uma pena ou medida, sejam tomadas as providências necessárias para assegurar ao preso um retorno progressivo à vida em sociedade. Este propósito pode ser alcançado, de acordo com o caso, com a adoção de um regime preparatório para a liberação, organizado dentro do mesmo estabelecimento prisional ou em outra instituição apropriada, ou mediante libertação condicional sob vigilância não confiada à polícia, compreendendo uma assistência social eficaz.

Não há como negar que o tratamento dispensado aos reeducandos que se adéquam ao caso em tela configura típico caso de tortura, em sua modalidade psicológica.

A tortura, além de afetar a dignidade da pessoa humana, nega todos os demais princípios enaltecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. E, a disseminação de práticas que negam acesso aos presos aos direitos fundamentais por todo o Brasil configura inegável crime contra a humanidade.

Vislumbre-se que o Estado deve assumir efetivamente sua posição especial de garante todas as vezes que a Administração Penitenciária desempenhar um controle sobre as pessoas que são submetidas à sua custódia. Aliás, neste particular contexto de sujeição do encarcerado em relação ao Estado, este último tem uma responsabilidade especial de assegurar aqueloutros condições mínimas de dignidade, de direitos humanos que lhes são inerentes e inderrogáveis.

Não é ocioso lembrar que no Brasil há a lei específica que tipifica o delito de tortura (Lei n° 9.455/97), e em seu artigo 1º, inciso II há a seguinte redação [21]:

Art. 1º Constitui crime de tortura:

(...)

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo (grifo nosso).

Perceba-se que a conduta praticada pela Administração Penitenciária subsume-se perfeitamente à tipificação legal, pois, os reeducandos que recebem a progressão de regime encontram-se sob a custódia estatal e são submetidos, com o emprego de violência, a intenso sofrimento físico e mental decorrente de uma medida de caráter preventivo.

Diz-se o caráter preventivo pelo fato de que quando não há vagas em estabelecimentos condizentes com o regime prisional previsto na sentença, os sentenciados são mantidos em regime prisionais mais rigorosos, sob o argumento de que a sociedade correrá perigo com a libertação destes.

Ora, tal situação configura pura prevenção baseada em elocubrações futurísticas, totalmente despidas de legalidade.


4 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

A partir do momento em que o sujeito é condenado definitivamente, nasce para o Estado o direito de executar a pena, porém, com a inafastável observância aos limites previamente estabelecidos pelo legislador, como decorrência da pura aplicação do princípio da legalidade, que deve ser observado ao longo de toda a execução penal.

O princípio em painel advém do caráter fragmentário do direito penal, segundo o qual o ius puniendi só poderá intervir quando houver ofensa a bens fundamentais à subsistência do corpo social, e a eleição de tais bens será concretizada por meio de lei.

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Trata-se de princípio de luminosidade constitucional que encontra previsão expressa no artigo 5°, da Constituição da República, em seu inciso XXXIX, o qual prevê que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".

Note que a redação constitucional é imperativa e se refere tanto à preconização abstrata do delito, quanto a pena a ser cominada.

Francisco de Assis Toledo [22] bem define o dispositivo ao dizer que "nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada, sem que antes desse mesmo fato tenham sido instituídos por lei o tipo delitivo e a pena respectiva".

Não se pode descurar do artigo XI, n° 2, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, segundo o qual:

Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática era aplicável ao ato delituoso.

Nem mesmo do artigo 9º do Pacto de San Jose da Costa Rica, o qual reza que:

Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.

Como se percebe, o princípio em questão – que já se encontrava estampado na Magna Charta Libertatum, no Bill of Rights das colônias inglesas da América do Norte e na Déclaration des Droits de I’Homme et du Citoyen, da Revolução Francesa – constitui, na realidade, verdadeiro ponto limítrofe ao poder estatal de interferir na esfera das liberdades individuais [23], decorrente da função de garantia desempenhada pela lei.

Atente-se que, quando se fala em lei, deve-se referir à fonte normativa primária, proveniente do Poder Legislativo, obedecido rigoroso trâmite de elaboração. Ou seja, não se admite que atos normativos emanados de autoridades penitenciárias possam inovar o sistema jurídico com previsões de sanções aos presos que sob suas custódias estejam.

4.2 Proibição da analogia em desfavor do cidadão

O princípio em testilha somente tem efetividade se as leis que fundamentem ou agravem a punibilidade não sejam retroativas, que se manifestem por meio da escrita, que, em caso de lacunas do sistema, não seja aplicada analogia para desfavorecer ao cidadão e que seja determinada quanto ao objeto e efeitos.

Por mais que determinado comportamento social seja indesejado ou reprovável, só há que se falar na incidência do direito penal se houver uma lei prévia delimitando a conduta do agente com todos seus requisitos, pois, do contrário, o comportamento poderá configurar, na pior das hipóteses, mero ilícito civil ou administrativo, ou mesmo um insignificante comportamento sob o plano jurídico. Importante esclarecer que eventual omissão ou lacunas legislativas devem sempre ceder ao imperativo maior, que é a liberdade da pessoa [24].

O legislador, não satisfeito em afirmar expressamente inexistir crime sem lei anterior que o defina, vedou qualquer pena sem prévia definição legal. Atente-se que o vocábulo pena compreende não só as penas propriamente ditas, como as medidas de segurança [25].

Oportuno lembrar que, consectário do princípio da estrita legalidade, veda-se ao aplicador do direito o emprego da analogia em desfavor do agente (analogia in malam partem), ou seja, sempre que houver criação ou fundamentação de novos delitos, majoração de penas, majoração no cumprimento de pena e assim por diante. Basta que a lacuna jurídica envolva o chamado ius puniendi estatal, qualquer medida que coloque o cidadão em situação mais gravosa deve ser repelida.

Jorge de Figueiredo Dias [26] conceitua a analogia "como aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto não regulado pela lei através de um argumento de semelhança substancial com os casos regulados". Esta forma de colmatar lacunas é amplamente aceita pelos demais ramos do direito, exceto quando se trata do direito penal.

Se, de um lado o emprego da analogia é vedado para desfavorecer o sujeito, de outro, sempre que o emprego desta forma de integração do sistema beneficiá-lo deverá ser adotada. A explicação é de fácil compreensão: quando a analogia é empregada em detrimento do agente, há o aumento do ius puniendi, enquanto que, quando é utilizada em favor daquele, ocorre restrição deste.

4.3 A afronta ao princípio da legalidade

Partindo-se das lições até aqui analisadas, tem-se que o princípio da legalidade deve ser aplicado não só ao processo de criação das leis penais, como também ao processo de aplicação e execução destas.

A manutenção de sentenciados em regime diverso e mais gravoso que o previsto na sentença fere o princípio da legalidade, pois, no ordenamento jurídico pátrio não há previsão de que na falta de vaga em regime adequado, deve o reeducando permanecer no regime mais severo.

Aqueles que sustentam de modo diverso se respaldam em ficções doutrinárias e jurisprudenciais, desprovidos de qualquer lastro normativo. E ainda que existisse tal preceptivo, estaria fadado ao óbito por vício de inconstitucionalidade material, com ofensa à dignidade da pessoa humana e à humanidade das penas.

Andrei Zenkner Schmidt [27], comentando a crise do princípio da legalidade na execução penal, aduz que:

A reserva legal, adequada ao nosso sistema constitucional, é um mecanismo eficaz de limitação do poder estatal ao respeito dos direitos fundamentais. Não apenas um mero princípio da legalidade, mas sim uma garantia superior que, doravante, denominaremos princípio da legalidade material, isto é, um instrumento de tutela limitador não só da forma como o Direito Penal é utilizado (pela devida resposta ao "como proibir?"). Uma garantia que não mais protege a sociedade mediante o Direito Penal e do Direito Penal, mas sim mediante um Direito Penal e de um direito Penal. A conseqüência disso é que toda lei penal, qualquer que tenha sido a data de sua entrada em vigor, deve adaptar-se aos objetivos traçados pela Constituição Federal em vigor, fazendo com que, nas palavras de Dometila de Carvalho, o Direito Penal seja um instrumento adequado para o desenvolvimento de uma maior justiça social, desde que respeitados os seus limites e desde que não prevaleça o princípio da autoridade sobre o da legalidade e culpabilidade, vistos, estes, sob uma perspectiva concreta, social, e não meramente formal, sob a capa de uma falsa neutralidade.

A doutrina e a prática forense muito debatem o princípio da legalidade no momento anterior à prática do delito e sua conseqüência na aplicação da pena pelo juiz no processo de conhecimento, menosprezando o postulado no momento da execução penal.

Aqueles que atuam em processos de execução penal são testemunhas de que o princípio da legalidade em nenhum outro lugar é tão vilipendiado pelo operador do direito como nesta fase em que o condenado passa a cumprir sua reprimenda.

Não é porque o cidadão foi condenado que irá deixar de ter suas garantias constitucionais protegidas. Mas, infelizmente, talvez pela aprovação da "sociedade", muito influenciada pelos meios de comunicação e pelas campanhas políticas popularescas, as ofensas ao princípio em debate são passadas sem nenhum alarde.

De outro lado, concordar-se com a manutenção de pessoas em regime diverso e mais rigoroso que o previsto no comando judicial configura restrição abusiva de liberdade, relegando inevitavelmente toda sociedade a posição vulnerável diante do jus puniendi do Estado. E aí reside o enorme perigo que nem todos conseguem enxergar.

A exigência de maior rigor com as pessoas que infringem os tipos penais incriminadores não se confunde com o cerceamento de seus direitos e garantias fundamentais, ainda que se esteja tratando do mais desprezível delinquente.

Alberto Silva Franco [28] aduz que:

A aplicação do princípio constitucional da legalidade, como garantia executiva, implica, assim, o reconhecimento de que o preso não pode ser manipulado pela administração prisional como se fosse um objeto; de que, não obstante a perda de sua liberdade, é ainda sujeito de direitos, mantendo, por isso, com a administração penitenciária, relações jurídicas das quais emergem direitos e deveres, e de que a jurisdição deve fazer-se presente não apenas nos incidentes próprios da fase executória da pena, como também nos conflitos que possam eventualmente resultar da relação tensional preso-administração.

Não por menos, a exposição dos motivos da Lei de Execução Penal [29] traz a seguinte textualização em seu item 20:

É comum, no cumprimento das penas privativas da liberdade, a privação ou a limitação de direitos inerentes ao patrimônio jurídico do homem e não alcançados pela sentença condenatória. Essa hipertrofia da punição não só viola medida da proporcionalidade, como se transforma em poderoso fatos de reincidência, pela formação de focos criminógenos que propicia.

O princípio da legalidade vem disposto logo no artigo 1º da Lei de Execução Penal, quando diz o texto normativo que "a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado".

Logo em seguida, o artigo 3º da Lei de Execução Penal preconiza que "ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei", lembrando-se que semelhante disposição também está prevista no artigo 38 do Código Penal: "o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral".

Já no artigo 185 da Lei de Execução Penal há disposição no sentido de que "haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares".

Efetivar as disposições da sentença não se coaduna com a manutenção de presos condenados ao regime semi-aberto em regime fechado.

Por assim dizer, toda vez em que houver algum sentenciado cumprindo pena em regime mais rigoroso ao que o Direito lhe permite, haverá ofensa substancial ao curso do processo executivo, segundo os ditames pré estabelecidos pela Lei de Execução Penal, de forma que se despreza os objetivos ressocializadores colimados pelo legislador, os direitos e garantias individuais dos condenados e a sustentação do direito penal como forma de controle social formalizado [30].

Bem elucidativos os ensinamentos de Alberto Silva Franco [31]:

A formalização do mecanismo de atuação penal deixa, portanto, evidente que o exercício do ius puniendi não é uma atividade desenfreada, regida apenas por critérios de utilidade social mas, sim, algo que se submete a um diligente controle com vistas às garantias (formais e materiais) devidas ao direito de liberdade do cidadão. O indivíduo, cuja conduta desviada se acomodou a uma figura criminosa, tem garantias penais e processuais penais, diante do Estado repressor.

O Superior Tribunal de Justiça delineou seu entendimento nos seguintes julgados:

Ao condenado são assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença, impondo-se a rigorosa observância do regime prisional nela fixado no momento da execução da pena [32]

Não há crime sem lei que o defina, não há pena sem prévia cominação legal. É comando da Constituição da República. O Código Penal (norma meramente declaratória) dispõe que o "preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade" (art. 38). A sanção penal é aplicada restritivamente. Assim, se o Estado não implantou as condições para a execução da sentença, não pode, por isso, impor que ao condenado que o faça em espécie mais grave [33] (grifo nosso).

O sistema penitenciário, no campo da experiência, é certo, não traduz, com fidelidade, a expressão normativa. Não só no Brasil. Também em outros países. A lei encerra dois propósitos: a) programático e b) pragmático. O primeiro encerra princípios que buscam realização. O segundo disciplina as relações jurídicas no âmbito fático. A LEP programou o estilo de execução. O país, entretanto, ainda não conseguiu esse desideratum. Há descompasso entre o "dever ser" e o "ser". As razões do desencontro (acontece também em outras leis) afastam a ilegalidade, de modo a determinar a soltura dos internos dos presídios [34] (grifo nosso).

O preso, nada obstante sua condição de encarcerado, não deixa de ser um ser sujeito de direitos e, como consectário lógico, impõe-se o resguardo de todos aqueles cujo gozo e exercício não dependem imediatamente da própria liberdade. Ainda que presa, a pessoa conserva o seu direito à vida, à integridade física, à saúde e, principalmente, sua dignidade humana.

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Sobre o autor
Rafael de Souza Miranda

Defensor Público do Estado de São Paulo. Membro do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Coordenador Regional da Escola da Defensoria Pública – Regional Mogi das Cruzes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Rafael Souza. Excesso de execução.: Consequências jurídicas do cumprimento de pena em regime mais gravoso que o previsto na sentença ou decisão judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2370, 27 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14077. Acesso em: 24 nov. 2024.

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