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Excesso de execução.

Consequências jurídicas do cumprimento de pena em regime mais gravoso que o previsto na sentença ou decisão judicial

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27/12/2009 às 00:00
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5 DA COISA JULGADA

A coisa julgada está catalogada no rol dos direitos e garantias individuais (Título II, Capítulo I) previstos na Constituição da República de 1988, artigo 5°, inciso XXXVI, segundo o qual "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

José Frederico Marques [35] conceitua coisa julgada nos seguintes termos:

A coisa julgada é qualidade dos efeitos da prestação jurisdicional entregue com o julgamento da res in judicium deducta, em virtude da qual esses efeitos se tornam imutáveis entre as partes.

A sentença definitiva, não mais sujeita a reexames recursais, transforma a res judicanda em res judicata, e a vontade concreta da lei, afirmada no julgado, dá o imperativo jurídico, ali contido, a força e autoridade de lei especial entre as partes, no tocante ao litígio jurisdicionalmente decidido e solucionado.

Fernando da Costa Tourinho Filho [36], dissertando sobre o fundamento político da coisa julgada, assevera a coisa julgada é necessária à pacificação social e à segurança jurídica, como abaixo se expõe:

Há um interesse público – a paz social – em que os litígios tenham fim. Seria profundamente desastroso não pudessem os litigantes, num determinado instante, ter certeza de que a pugna terminou. Do contrário, ficariam eles sempre preocupados com a possibilidade de a mesma causa ser reexaminada ou renovada, levando aos seus espíritos a intranqüilidade e a insegurança dos seus direitos. Por outro lado, a exigência da certeza do direito sobre o qual se litiga está a impor que, em determinado momento, cesse a controvérsia.

Novamente recorrendo a Tourinho Filho, o qual evoca Liebman [37], dispondo que:

Com a preclusão das vias impugnativas, constitui-se a coisa julgada formal, isto é, a sentença torna-se irrevogável, imutável, irreversível, já não podendo ser suscetível de reapreciação. Mas, como diz Liebman, a segurança do direito e a pacificação social querem algo mais. A coisa julgada deve assegurar não mais e não somente a sentença, mas, ainda, o efeito que ela produziu, isto é, a declaração ou mudança da relação jurídica deduzida em juízo; com essa sua função a coisa julgada torna impossível ou inoperante a demonstração da injustiça da sentença, a permanência e a imutabilidade dos efeitos produzidos. Esta é a coisa julgada, ou autoridade da coisa julgada, que não é um efeito autônomo da sentença, porém uma qualidade, um atributo da eficácia que a sentença, natural e necessariamente, produz. Assim, a coisa julgada não é um efeito em si mesmo, mas uma qualidade dos efeitos, de todos os efeitos da sentença (grifo nosso).

Ora, se com a imutabilidade dos efeitos da sentença objetiva-se conferir à sociedade segurança jurídica e Justiça, não há como se vislumbrar sejam tais escopos alcançados sempre que houver imolação indevida do direito do condenado, como na restrição excessiva de sua liberdade pela manutenção em regime mais severo.

Na verdade, a coisa julgada é uma garantia individual com previsão na Constituição da República (art. 5º, inc. XXXVI) e na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.4), cuja finalidade é impedir novo julgamento da pessoa pelo mesmo fato.

Aury Lopes Jr. [38] enfatiza que:

[...] a coisa julgada atua em uma dupla dimensão: constitucional (como garantia individual) e processual (preclusão e imutabilidade da decisão). Em qualquer das duas dimensões, no processo penal (eis mais um fundamento da inadequação da teoria geral do processo) a coisa julgada está posta a serviço do réu, ou seja, uma garantia do cidadão submetido ao processo penal.

É a coisa julgada uma construção artificial do Direito, seja por exigência política ou de pacificação social, mas sempre um artifício a serviço do cidadão, evitando que seja novamente processado pelo mesmo fato em outro processo ou seja reexaminado no mesmo processo. (grifo no autor).

Pelas lições do autor, é possível perceber que a coisa julgada só pode ser flexibilizada em favor do réu e nunca em sentido prejudicial. Daí a sua relativização por influxo da chamada revisão criminal, que pode ser ajuizada a qualquer momento. E sendo assim, descabe a Administração Penitenciária, como conseqüência de sua falência, criar situações adversas ao cumprimento da pena.

Atente-se, por pertinente, que a coisa julgada desempenha uma função eminentemente negativa sobre o jus puniendi estatal, haja vista impedir seja a lide penal reapreciada pelo Judiciário. Destarte, se a rediscussão sobre a norma jurídica concreta emanada do Judiciário é vedada, ainda que fosse dotada de todas as garantias processuais que permeiam o sistema garantista, com maior razão é de se repugnar a desobediência deste mesmo decisum.

5.2 A coisa julgada e a manutenção de presos em regime mais gravoso

A partir do momento em que o Poder Judiciário confere ao condenado o direito a progredir de regime prisional em sentença irrecorrível e, ainda assim este permanece em regime mais gravoso, há inarredável ofensa à coisa julgada, imperativo constitucional cujo fundamento político se lastreia na segurança jurídica e na Justiça das decisões.

Segundo o artigo 110 da Lei de Execução Penal, "o juiz, na sentença, estabelecerá o regime no qual o condenado iniciará o cumprimento da pena privativa de liberdade, observado o disposto no art. 33 e seus parágrafos do Código Penal" [39].

Note que o legislador deixou expresso que o regime inicial de cumprimento de pena privativa de liberdade deve ser estabelecido na sentença. E se assim o fez, descabe ao administrador desrespeitá-lo.

Após a fixação do regime inicial de cumprimento de pena feito pelo magistrado, não havendo inconformismos de nenhuma das partes (acusação e defesa), ocorre o que a doutrina chama de coisa julgada formal e material. O conceito de coisa julgada já foi esboçado no item anterior, quando da transcrição dos ensinamentos de Frederico Marques.

Se nem o Poder Judiciário pode se imiscuir na decisão já proferida e transitada em julgado, muito menos o Poder Executivo, por meio das Secretarias de Administração Penitenciária, pode se dar a tal desfrute.

Leia-se da jurisprudência [40]:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CONDENAÇAO EM REGIME ABERTO. INEXISTÊNCIA DE CASA DE ALBERGADO LOCAL. ENCARCERAMENTO DA RÉ EM REGIME MAIS GRAVOSO. IMPOSSIBILIDADE. I - Fere o princípio da coisa julgada o encarceramento de condenada em regime mais gravoso do que o que lhe foi imposto no édito condenatório. II - A inexistência de casa de albergado no Estado de Tocantins não autoriza a submissão da ré à situação mais severa. III - Ordem concedida para determinar a soltura da paciente.

José Frederico Marques [41] obtempera que:

Se o status libertatis é fundamental para a pessoa humana, constituiria um atentado, sem justificativa, aos princípios que tutelam e garantem a dignidade e os direitos do homem, colocar, em termos absolutos, a proeminência da segurança jurídica, na realização da Justiça, a ponto de sacrificar-se um bem jurídico, tão relevante, como a liberdade.

Nesta quadra, fora de propósito argumentar-se no sentido de que a decisão que concede a progressão de regime não faz coisa julgada material, uma vez que, o condenado incidindo nas hipóteses do artigo 118 da Lei de Execução Penal, poderá ser regredido e voltar ao regime anterior.

É de se registrar que coisa julgada penal é determinativa, incidindo sobre relações continuativas, contendo, por conseguinte, implícita a cláusula rebus sic stantibus. Deste modo, autoriza-se ao magistrado a agir por equidade, mediante modificação objetiva da sentença como decorrência da alteração fática das circunstâncias. Tal lição pode ser absorvida do escólio abaixo [42]:

A sentença determinativa transita em julgado, sendo, porém, suscetível de um processo de integração em obediência à cláusula que contém; é, pois, passível de revisão nos casos expressamente autorizados por lei, atendendo-se exatamente ao comando emergente da própria sentença. É assim que se aplica, processualmente, o fenômeno das modificações da sentença condenatória penal trânsita em julgado (livramento condicional, suspensão condicional da pena, extinção da punibilidade durante a execução etc.). Não se trata, porém, de inexistência de coisa julgada [...].

De nada adianta a progressão de regime estar prevista expressamente na decisão judicial se esta, no plano fático, não se efetiva, ou seja, os efeitos que deveriam se irradiar para o plano ontológico não saem do papel. Portanto, toda discussão que se entrava acerca da função e natureza jurídica da coisa julgada acaba sendo sucateada pelo administrador público. E se o Poder Judiciário se mantém conivente a esta obsoleta inconstitucionalidade, perde ele a sua própria razão de existir.

No Brasil, chega-se à esdrúxula situação em que nem mesmo o Juízo das Execuções Penais pode alterar o regime de cumprimento de pena fixado pelo Juízo do processo de conhecimento, quando a decisão transita em julgado, mas as Secretarias da Administração Penitenciária podem, e poucas pessoas insurgem-se contra a realidade.

Consigne-se caber ao Poder Judiciário, portanto, cumprir o comando da lei concretizado na sentença, concedendo aos sentenciados que aguardam vaga no regime estabelecido na decisão o regime mais benéfico, configurando insofismável constrangimento ilegal submeter os sentenciados a condições incompatíveis com a dignidade humana, que, como do conhecimento de todos, é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

E se assim não for, perde-se por completo toda a teleologia orientadora da coisa julgada, trazendo imensa insegurança jurídica aos cidadãos, que acabam por suportar o descaso do poder público, que não possui meios para manter os sentenciados em estabelecimentos apropriados ao estágio mais adequado as suas realidades carcerária.

Inimaginável aceitar-se que o sentenciado, titular de direitos e garantias inalienáveis, possa ser desrespeitado pelo próprio Estado que os conferiu. A lei que permite o Poder Judiciário condenar o sentenciado ao cárcere é a mesma que garante a este o direito de cumpri-la de forma digna e humana.


6 PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA

A individualização da pena encontra previsão expressa no artigo 5°, incisos XLVI e XLVIII da Constituição da República.

Por força deste princípio, cada sentenciado tem o direito a uma pena enfocada ao seu caso concreto, de maneira individualizada, a ser por ele vivida. Desta forma, negar-se ao condenado que já adquiriu o direito à progressão de regime prisional a transferência para o novo regime (ou que foi condenado ao regime semi-aberto, porém, mantido no fechado por falta de vaga), é inviabilizar a adaptação à sua nova realidade.

Nesta toada, o princípio em pauta tem como principal função servir como mecanismo de frenagem ao poder punitivo estatal.

José Antônio Paganella Boschi [43], parafraseando Jorge Figueiredo Dias, sintetiza que:

Em sua dinâmica, a garantia da individualização da pena constitui, portanto, segundo Figueiredo Dias, um conjunto complexo de operações que envolve uma estreita cooperação – mas também uma separação de tarefas e responsabilidades muito nítidas entre o legislador, de um lado, e os juízes da sentença e da execução, de outro, tudo conforme se extrai do sistema constitucional de competências que confere, ao primeiro, o poder para ditar os tipos penais e de estabelecer as penas e, aos últimos, o de atuar no caso concreto para delimitar, objetivamente, o âmbito da efetiva intervenção do Estado na esfera de liberdade de seus cidadãos.

Eis porque, convém repetir, ao estudarmos a garantia da individualização judicial da pena somos levados a interação, como vasos comunicantes, de outros princípios, como os da legalidade dos crimes e das penas, da irretroatividade, da humanidade e da proporcionalidade, exatamente como propunha, quanto a este último, o grande Marquês de Beccaria, quando salientava que a quantidade das penas não deveria superar o necessário para a manutenção do depósito da salvação pública.

Alberto Silva Franco [44], discorrendo acerca do princípio da individualização da pena, explicita que "tal princípio garante, em resumo, a todo cidadão, condenado num processo-crime, uma pena particularizada, pessoal distinta e, portanto, inextensível a outro cidadão, em situação fática igual ou assemelhada".

É certo afirmar que na Constituição da República de 1988 a individualização da pena adquiriu o status de direito fundamental do condenado frente ao ius puniendi estatal. Assim, sendo, as penas devem ser individualizadas em três momentos distintos: na cominação do delito; na aplicação do fato à norma pelo magistrado; e na fase execucional pelos juízos das execuções penais e Administração Penitenciária, pois a liberdade é valor inalienável e a pena não pode atraiçoar-se numa vindita ou vingança arbitrária por parte do Estado.

6.2 A realidade carcerária e a individualização da pena

A práxis vem demonstrando que as Secretarias de Administração Penitenciária despejam incontável número de condenados ao regime semi-aberto no mesmo mar em que se afogam condenados ao regime fechado, ofertando aos condenados tratamento igualitário para aqueles que vivem situações processuais desiguais.

A individualização da pena existe exatamente para se evitar a padronização das penas, devendo ser aplicada a cada sentenciado a exata medida punitiva pelo que fez. Nesse contexto, tem-se que a individualização da pena está intimamente ligada ao princípio da isonomia, na medida em que os iguais devem ser tratados de forma igual e os desiguais de forma desigual, na medida de suas desigualdades.

Impõe-se compreender que, segundo o princípio sob enfoque, a pena deve se adequar à situação processual do condenado e não o inverso. Não é porque o Estado encontra-se desprovido de aparelhamento na condução do sistema carcerário que o condenado deverá sofrer com o excesso de execução.

A desídia estatal não é problema do condenado, mas sim dos administradores públicos. "Assim, impedir a progressão do regime fechado para o semi-aberto é forma de obstar a correta aplicação da garantia que tem todo preso de ver sua pena corretamente individualizada" [45].

Na linhagem do artigo 110 da Lei de Execução Penal, "o juiz, na sentença, estabelecerá o regime no qual o condenado iniciará o cumprimento da pena privativa de liberdade".

É evidente que, quando o magistrado estabelece que o condenado iniciará o cumprimento da pena no regime semi-aberto (ou determina a sua progressão do regime fechado ao semi-aberto), o faz a partir de dados existentes nos autos e esta individualização somente atingirá concretude ao longo da execução penal.

De nada vale o magistrado estabelecer um regime prisional e este não ser cumprido pelas Secretarias da Administração Penitenciária.

Note-se que a Constituição da República é incisiva em seu artigo 5°, XLVIII, no sentido de que "a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado".

Regulamentando o preceptivo constitucional, a Lei de Execução Penal, no artigo 5º, ao tratar da classificação do condenado e do internado, rezou que "os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal".

No artigo 86, § 3°, a Lei de Execução Penal trouxe o seguinte texto: "caberá ao juiz competente, a requerimento da autoridade administrativa definir o estabelecimento prisional adequado para abrigar o preso provisório ou condenado, em atenção ao regime e aos requisitos estabelecidos" (grifo nosso).

Não é ocioso lembrar que as regras mínimas para o tratamento de prisioneiros, adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977 preconizam que:

As diferentes categorias de presos deverão ser mantidas em estabelecimentos prisionais separados ou em diferentes zonas de um mesmo estabelecimento prisional, levando-se em consideração seu sexo e idade, seus antecedentes, as razões da detenção e o tratamento que lhes deve ser aplicado (grifo nosso).

Ocorre que a realidade do sistema carcerário brasileiro é tão desprezível que sequer a distinção de sexo tem sido obedecida pelos administradores públicos, agrupando-se, na mesma cela, homens e mulheres, crianças e adultos, e assim por diante.

O descaso perpetrado afronta o poder emanado do Judiciário, no sentido de fazer "tábula rasa" de suas decisões.

Atenta a esta questão, decidiu a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal:

A Turma, por maioria, deferiu habeas corpus para determinar o imediato encaminhamento do paciente a estabelecimento penitenciário adequado à execução de regime semi-aberto, sob pena de, não sendo possível à administração penitenciária executar a presente ordem no prazo de 72 horas, ser-lhe assegurado o direito de permanecer em liberdade, se por al não estiver preso, até que o Poder Público providencie vaga em estabelecimento apropriado. Tratava-se, na espécie, de writ em que se discutia a possibilidade de o réu, condenado a cumprimento de pena em regime semi-aberto, aguardar em regime prisional mais gravoso (regime fechado) o surgimento de vaga em colônia penal agrícola e/ou colônia penal industrial ou em estabelecimento similar. Tendo em conta a circunstância relevante de o juiz haver reconhecido que o paciente preencheria os requisitos necessários para iniciar a execução da pena em regime semi-aberto, entendeu-se inaceitável que - ao argumento de deficiências estruturais do sistema penitenciário ou de incapacidade de o Estado prover recursos materiais que viabilizem a implementação de determinações impostas pela Lei Execução Penal - LEP, que constitui exclusiva obrigação do Poder Público - venha a ser frustrado o exercício, pelo sentenciante, de direitos subjetivos que lhe foram conferidos pelo ordenamento positivo, como o de começar, desde logo, quando assegurado por sentença penal já transitada em julgado, o cumprimento da pena em regime semi-aberto. Rejeitou-se, ainda, a pretendida concessão de prisão domiciliar, prevista no art. 117 da LEP, considerado o caráter excepcional e taxativo das hipóteses constantes desse dispositivo. Vencido, em parte, o Min. Joaquim Barbosa que deferia o habeas corpus de modo mais limitado, para que o paciente fosse colocado em prisão domiciliar ou cumprisse pena em outra comarca. Precedente citado: HC 76930/SP [46] (grifo nosso).

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Oportuníssima a advertência bradada por Carmen Barros [47]:

O prazo de um sexto estabelecido na LEP deve ser respeitado, ou melhor, cumprido um sexto da pena, deve ser o sentenciado progredido de regime, até porque, no sistema constitucional vigente, não há explicação que justifique a manutenção de alguém por maior tempo no regime fechado. O único sentido seria a vingança pura – não mais vigente.

A criminalidade não será contida (como até hoje não foi) em virtude da manutenção de alguns criminosos presos a perder de vista. É sabido que a grande maioria daqueles que praticam crimes jamais será presa ou passará pelo sistema penitenciário. Ademais, o prazo de um sexto não foi estipulado pela LEP aleatoriamente: por óbvio, está diretamente ligado aos fins da pena no Estado de direito. A manutenção de presos em um único regime por período superior a esse inevitavelmente leva à dessocialização e à prisionalização. Além disso, quanto mais afastado se mantiver o condenado do convívio social, maior será a dessocialização. Dessa maneira, atendendo aos fins que tem a pena no Estado de direito, a permanência nos regimes mais rigorosos deverá ser a mínima necessária.

[...]

A aplicação correta do princípio da individualização da pena na execução penal é imprescindível para que não se perca a dimensão humana dos condenados. Adequar a pena em execução ao homem que a cumpre é dar rosto e voz ao condenado, evitar que fique reduzido a calhamaços de papéis (grifo nosso).

Colhe-se, ainda, da jurisprudência abalizada do Superior Tribunal de Justiça:

O Estado não pode exigir cumprimento de pena diferente da imposta na sentença condenatória. Conclusão decorrente de princípio da individualização da pena, constitucionalmente resguardado [48].

A individualização da pena é princípio indispensável ao cumprimento de pena num Estado que se intitula Democrático, sob pena de se arremessar ao limbo toda evolução legislativa da dogmática penal e dos estudiosos da criminologia e política criminal dos últimos séculos. Sem tal postulado, o Estado perde sua legitimidade ao chamar para si a função exclusiva de reprimir os delitos em substituição à chamada autotutela, que vigorou desastrosamente nos tempos medievais.

6.3 O direito à progressão de regime como manifestação da individualização da pena

O direito à progressão de regime prisional está indissociavelmente atrelado à idéia da individualização da pena, pois, cada sentenciado tem que cumprir sua reprimenda no regime compatível com sua realidade concreta, sob pena de se despejar nos raios prisionais condenados aleatoriamente, inviabilizando o instituto da ressocialização.

6.3.1 Conceito e considerações iniciais sobre a progressão de regime

Progressão de regime prisional é o direito público subjetivo do sentenciado de, preenchidos os requisitos de ordem objetiva e subjetiva, ver-se passar do regime mais rigoroso ao menos rigoroso.

Ao tratar do direito à progressão, Mirabete [49] aduz que:

Tendo em vista a finalidade da pena, de integração ou reinserção social, o processo de execução deve ser dinâmico, sujeito a mutações ditadas pela resposta do condenado ao tratamento penitenciário. Assim, ao dirigir a execução para a "forma progressiva", estabelece o art. 112 a progressão, ou seja, a transferência do condenado de regime mais rigoroso a outro menos rigoroso quando demonstra condições de adaptação ao mais suave.

A progressão de regime está indissociavelmente ligada, de acordo com a legislação vigente no Brasil, com o processo de readaptação do sentenciado à sociedade. Na vasta gama de direitos reservados aos sentenciados ao longo do processo executivo, a progressão de regime é um dos que mais se destaca, por sua íntima ligação com o princípio da individualização da pena, mormente em se considerando que esta benesse legal nasce do mérito do próprio sentenciado.

É importante se ter em mira os efeitos deletérios que qualquer estabelecimento prisional – ainda que dotado de todo aparelhamento necessário à ressocialização – produz por nos condenados. Nesse contexto, imprescindível se torna o instituto da progressão de regime como forma de minimizar esta estigmatização.

Partindo-se da noção de que o cárcere, nada obstante sua prejudicialidade natural à pessoa humana é, e continuará sendo por muitos anos, um mal necessário que deve existir tanto nas sociedades subdesenvolvidas quanto nas mais evoluídas, tem-se que a progressão de regime funciona como um mecanismo eficaz de paulatina reintegração do condenado ao convívio social.

À vista do exposto, é correto dizer que a progressão de regime se afigura como alternativa à medida extremada, que é a prisão em regime fechado de segurança máxima, o qual exclui por completo o condenado do convívio social. E se no caso concreto for inafastável a inclusão do condenado neste regime, forçoso que o seja pelo tempo rigorosa e fundamentadamente necessário.

6.3.2 O sistema progressivo no ordenamento jurídico

O direito à progressão de regime deflui da lógica do sistema adotado pelo legislador constitucional e infraconstitucional, como se deflagra de diversos preceptivos da Constituição da República, da Lei de Execução Penal e do Código Penal, pois faz parte do processo de readaptação do reeducando à sociedade livre.

Conforme se extrai da leitura do artigo 33, § 2° do Código Penal, "as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva".

E corroborando seu intuito, o próprio legislador, na Exposição dos Motivos do Código Penal, itens 35 e 37, deixou muito claro o motivo e a necessidade da progressão de regimes prisionais, como se dessume de transcrição abaixo:

35. A decisão será, no entanto, provisória, já que poderá ser revista no curso da execução. A fim de humanizar a pena privativa de liberdade, adota o Projeto o sistema progressivo de cumprimento da pena, de nova índole, mediante o qual poderá dar-se a substituição do regime a que estiver sujeito o condenado, segundo seu próprio mérito. A partir do regime fechado, fase mais severa do cumprimento da pena, possibilita o Projeto a outorga progressiva de parcelas da liberdade suprimida.

37. Sob essa ótica, a progressiva conquista da liberdade pelo mérito substitui o tempo de prisão como condicionante exclusiva da devolução da liberdade.

Na mesma seara, o artigo 112 da Lei de Execução Penal diz que a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz. In verbis:

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003) (grifo nosso).

Explicando tal dispositivo, o legislador, na Exposição dos Motivos da Lei de Execução Penal, itens 119 e 120, diz que:

119. A progressão deve ser uma conquista do condenado pelo seu mérito e pressupõe o cumprimento mínimo de um sexto da pena no regime inicial ou anterior. A transferência é determinada somente pelo juiz da execução, cuja decisão será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação [...].

120. Se o condenado estiver no regime fechado não poderá ser transferido diretamente para o regime aberto. Esta progressão depende do cumprimento mínimo de um sexto da pena no regime semi-aberto. Esta progressão depende do cumprimento mínimo de um sexto da pena no regime semi-aberto, além da demonstração do mérito, compreendido tal vocábulo como aptidão, capacidade e merecimento, demonstrados no curso da execução.

Vistos tais dispositivos, é conclusivo afirmar-se que tanto o Código Penal quanto a Lei de Execução Penal encetam para a mesma direção no que concerne ao regime progressivo de cumprimento de pena.

6.3.3. O direito à progressão de regime no sistema carcerário brasileiro

Em questão de efetividade, pode-se dizer que a realidade carcerária não atende ao direito de progressão de regime conferido a todo e qualquer condenado, nos moldes da Lei de Execução Penal e dos princípios e garantias fundamentais.

A progressão, quando preenchidos os requisitos legais, é um direito do sentenciado, ao qual a Constituição da República assegura respeito em plenitude à sua integridade moral. Não é compatível com o preceito fundamental procrastinar-se o exercício de regime ao qual o preso foi promovido, comprovada a observância das exigências legais à ultrapassagem do estágio.

Negar-se o direito de progredir de regime prisional é criar empecilhos sem respaldo jurídico para manter alguém preso excessivamente. O artigo 112 da Lei de Execução Penal é objetivo ao exigir tão somente o cumprimento da pena pelo prazo previsto abstratamente pelo legislador e o bom comportamento carcerário [50].

Muito se equivocam aqueles que entendem que, na ausência de vaga no regime semi-aberto, deve o condenado permanecer no regime fechado e não no aberto, pois acreditar que com tal medida protege-se a sociedade é enorme falácia, já que, a sociedade não está nem um pouco interessada no cometimento de injustiças.

Há incompatibilidade lógica em querer fazer Justiça cometendo-se Injustiça. São situações completamente antagônicas e excludentes. A Justiça existe ou não, e ponto final.

Não há como negar a existência do direito à progressão, bastando analisar sistematicamente tanto o Código Penal quanto a Lei de Execução Penal, segundo os quais há previsão expressa dos regimes fechado, semi-aberto, aberto e o livramento condicional, inclusive. Ora, não houvesse o direito à progressão, qual o motivo da previsão abstrata de tais direitos?

A partir do momento em que o Estado chamou para si a função de sancionar os conflitantes com a lei e, a partir do momento em que se passou a exigir o emprego de penas humanizadas, restou por indissociável o sistema de progressão de regime como garantia fundamental do condenado.

A progressividade é imanente à própria pena. É imanente à condição humana, pois, acena ao condenado dias melhores, incentivando-o à correção de rumo e, portanto, a empreender um comportamento voltado à ordem, ao mérito e a uma futura inserção no meio social.

Alberto Silva Franco [51], pondera que:

Ao adotar, para o cumprimento da pena privativa de liberdade, o sistema progressivo, o legislador penal não se definiu por uma fórmula vazia e inconseqüente, por algo totalmente desarticulado do esquema conceitual global. O sistema progressivo é, em verdade, o precipitado lógico, a decorrência natural, o resultado prático de alguns princípios inseridos na Constituição Federal. É o ponto de interseção em que se conectam os princípios da legalidade, da individualização e da humanidade da pena.

É ressabido que todo e qualquer ser humano que se vê encarcerado, logo no primeiro dia no cárcere já almeja a chegada do dia em que poderá retornar à liberdade. E se o Estado frustra tal expectativa, tolhe do homem sua dignidade.

A dinamização é consequência indissociável do sistema cumprimento de pena francamente adotado pelo ordenamento pátrio. A intensidade da pena, que pode partir do regime fechado, deve ser progressivamente abrandada, passando-se pelo regime semi-aberto, aberto e o livramento condicional, até se atingir o ponto máximo, que é a liberdade.

Alberto Silva Franco [52] obtempera que "são três, portanto, os objetivos do sistema: a) a diminuição gradativa do tônus da pena; b) o estímulo à boa conduta, e c) a obtenção paulatina da reforma moral do recluso e sua conseqüente preparação para a vida em liberdade".

Registre-se, que a dinamização da execução penal afasta rigorismos aritméticos para a promoção ao regime mais ameno, tanto que a própria Lei de Execução Penal confere aos condenados a possibilidade de remição da pena pelos dias trabalhados, o indulto, a comutação da pena, o livramento condicional, a saída temporária, a autorização de saída etc.

Importante consignar que o sistema de execução das penas adotado pela Constituição da República – acompanhada do Código Penal e da Lei de Execução Penal – visa facilitar, progressivamente, o retorno do condenado ao convívio social.

A atual realidade remonta à vetusta concepção estática da execução penal, sustentada pelo senso comum em que "o condenado deve cumprir estaticamente a pena que lhe foi imposta, em louvor à condenação que lhe foi justa e merecidamente aplicada" [53].

Luiz Flávio Gomes [54] ensina que:

No nosso país adotou-se um determinado sistema progressivo (sistema progressivo brasileiro) que compreendia duas formas distintas de progressão: (a) uma se faz por meio dos regimes penitenciários fechado, semi-aberto, aberto; (b) a outra acontecia de modo direto para o livramento condicional. Essa segunda forma de progressão (progressão direta para o livramento condicional) era admissível nos crimes hediondos, depois que o condenado cumprisse mais de dois terços da pena de prisão. Não se permitia, nos crimes hediondos, a primeira forma de progressão. Depois da decisão do STF (HC 82.959, j. 23.02.06) que julgou inconstitucional a lei dos crimes hediondos no ponto em que proibia a progressão de regime, ela tornou-se cabível em todos os delitos. Essa posição jurisprudencial do STF, posteriormente, acabou sendo retratada na Lei 11.464/2007.

Interessante, neste momento, trazer à baila o seguinte excerto de Sérgio Mazina Martins [55]:

[...] a elevação de regime prisional é um momento de grande relevância no processo de execução penal, para ela convergindo o seu princípio de caminhar permanente. A negativa reiterada da progressão exerce um efeito danoso não apenas para o condenado mas, também, para a comunidade que se obriga a um dispêndio gigantesco de esforços para a manutenção daquele em estabelecimento inadequado e suas condições pessoais. É certo que a avaliação dessas condições visa a formulação de um prognóstico, do qual não há como afastar seus riscos inerentes. Mas riscos também haverão na manutenção do preso em um regime fechado já impróprio e insatisfatório, sobretudo quando é sabido que nossa atual realidade prisional leva o regime fechado a esgotar seu potencial no cumprimento de um papel puramente contensivo, sem oferecer as perspectivas vivenciais mais ricas e complexas que, bem ou mal, são propiciadas a partir da inserção do condenado no regime subseqüente. Admitir que esses riscos adiem a progressão seria, ultima ratio, correr o risco maior de deturpar os fundamentos racionais da lei penal, a essa impondo uma acepção estática, cristalizada e impassível de qualquer pedagogia. Todos vêem aquele preso que, elevado ao semi-aberto, aproveitando a menor vigilância direta se evade e retorna ao delito, mas poucos certamente terão olhos assim abertos para aquele que, apresentando todas as condições de ser elevado, acaba obrigado a cumprir sua pena inteiramente no regime fechado: o fato de uma tragédia ser mais silenciosa não a torna menos entristecida, sobretudo quando recordamos que também no interior dos estabelecimentos prisionais fechados delitos graves podem e são efetivamente cometidos, inclusive por desespero, por desalento, por retrocessos enfim. A infeliz concepção de que o in dubio pro societate vigoraria no processo de execução penal peca não apenas por irrazoabilidade lógica mas, principalmente, por seu insustentável caráter fragmentário: que outro interesse mais legítimo poderia vestir a sociedade política, não fosse o de atingir a completa operacionalidade de sua própria lei penal para, então, chegar aos fins nela tão custosamente perseguidos? O grande objetivo da sociedade não será certamente o de manter o condenado no regime fechado mas, a rigor, o de ver o mais completamente possível satisfeito o espírito progressivo adotado pelo legislador que, para tanto, ela própria legitimou.

A situação é muito curiosa, para não dizer lamentável. Veja-se: a Suprema Corte e o legislador ordinário repugnam do sistema a vedação de progressão de regime aos condenados por crimes hediondos e equiparados. No entanto, o administrador do sistema penitenciário, ao seu livre talante, veda este mandamento de otimização até mesmo para os condenados por crimes de médio potencial ofensivo, tais como furto, estelionato, receptação etc.

Abaixo se transcreve matéria veiculada no sítio virtual do Superior Tribunal de Justiça, em que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, objetivando exatamente questionar a problemática que se enfrenta neste trabalho monográfico, alcançou o tribunal superior obtendo êxito [56]:

A progressão de regime faz parte das etapas da individualização da pena e não pode ser negada ao preso que a ela faz jus, sob pena de coação ilegal, que pode e deve ser corrigida através de habeas-corpus." O entendimento foi aplicado pela desembargadora convocada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), Jane Silva, ao conceder o pedido de habeas-corpus em favor de A.F.S. para que ele cumpra o restante da sua pena em regime semi-aberto.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo recorreu ao STJ contra a decisão do Tribunal de Justiça Paulista (TJSP) que negou ao preso o benefício da progressão do regime prisional fechado para o semi-aberto. A.F.S. foi condenado pelo crime de roubo majorado à pena de nove anos de reclusão e já cumpriu 1/6 da pena na cadeia.

Entretanto, a 6ª Câmara de Direito Criminal não concedeu o benefício da progressão por entender que "o reeducando deve ser melhor observado no regime em que se encontra por mais algum tempo, para que se constate de modo irrefutável sua aptidão e adaptação para o gradual retorno ao convívio em sociedade, haja vista a extensão de sua pena a cumprir, mais sete anos".

Segundo ressaltou a decisão do TJSP, a concessão do benefício representaria risco à sociedade e o tempo que o condenado ainda tem a cumprir (sete anos) ampliaria as "tentações de fuga" do preso em regime semi-aberto, que tem menor vigilância sobre os detentos. "Necessária, pois, a manutenção do sentenciado no atual regime para que melhor absorva a terapêutica penal", concluíram os desembargadores.

Inconformada com a decisão, a Defensoria paulista apresentou liminar em habeas-corpus ao STJ, argumentando que a progressão do regime era um direito "plausível e alicerçado em vasta jurisprudência". O defensor público também salientou que o perigo da demora na concessão do benefício estaria violando o direito de locomoção do preso, justificando, dessa forma, a medida liminar.

Jane Silva acolheu os argumentos da Defensoria e esclareceu: "Apesar de o cidadão se encontrar preso, ele continua titular de direitos e estes devem ser respeitados, pois o contrário é inadmissível num Estado de direito. É equivocado o fundamento de que os condenados a longa pena devem permanecer maior tempo na prisão, sem os benefícios legais."

A desembargadora Jane Silva enfatizou que a Justiça não pode criar obstáculos não previstos em lei para manter uma pessoa presa, caso ela tenha preenchido todos os critérios legais para receber a progressão do regime prisional. "Os requisitos exigidos para a progressão de regime são o cumprimento da pena pelo prazo determinado em lei e o bom comportamento carcerário, não podendo ser negado o benefício aos que cumprem longa pena sob o argumento de que o regime intermediário tem menor vigilância, pois as possíveis deficiências no monitoramento dos presos não pode ser utilizada como argumento para manter uma pessoa presa em regime fechado além do tempo permitido em lei", salientou.

Por fim, completou a desembargadora convocada que "à sociedade não interessa a injustiça evidente sofrida pelo paciente", motivo pelo qual seria "equivocado invocar o in dubio pro societate para negar um benefício que a própria sociedade, através de seus representantes legais, concedeu aos apenados".

O voto da desembargadora convocada foi acompanhado pelos demais ministros da Sexta Turma.

O que não se pode concordar é com a manutenção de pessoas que possuem direito de cumprir pena em regime semi-aberto enclausuradas em penitenciárias, que é ambiente destinado ao cumprimento de pena em regime fechado, consoante artigo 87 da Lei de Execução Penal, o qual reza que a "A penitenciária destina-se ao condenado à pena de reclusão, em regime fechado".

É impossível não se considerar que na penitenciária o condenado ao regime semi-aberto sofre gravame intenso, haja vista que, em tal estabelecimento é alojado em cela individual e com rigores mais severos, enquanto que nas colônias agrícolas, industrial ou similar, poderá ser alojado em compartimentos coletivos, observadas as seleções adequadas dos presos e limite de capacidade máxima que atenda aos objetivos da individualização da pena.

Perceba-se que o atual cenário do sistema prisional brasileiro, com o encarceramento de pessoas sem o exercício efetivo do direito de progredir de regime de pena, enceta para clara eleição de política criminal tendente a legitimar um direito penal despido de garantias materiais e processuais.

6.4 A ressocialização como manifestação do princípio da individualização da pena

Inicialmente, é de bom alvitre consignar existir ferrenha discussão por parte dos criminologistas no entorno da finalidade da pena e se a ressocialização faz parte dela. Entretanto, no presente trabalho não se pretende adentrar nesta controvérsia, mas tão somente demonstrar que a chamada "utópica" função ressocializatória está longe de ser efetivada no sistema carcerário nacional.

Segundo a Criminologia Crítica, não há que se falar em função ressocializatória da pena. Neste sentido, adverte Julio Fabbrini Mirabete [57], que tal corrente rechaça a função de prevenção e de ressocialização do delinqüente, haja vista converter a execução penal numa atividade produtora e reprodutora de etiquetas, julgando-se as personalidades e definindo comportamentos.

Mais adiante, Mirabete, se escorando nas lições de Cezar Roberto Bitencourt, diz que:

A ressocialização não pode ser conseguida numa instituição como a prisão. Os centros de execução penal, as penitenciárias, tendem a converter-se num microcosmos no qual se reproduzem e se agravam as graves contradições que existem no sistema social exterior. (...) A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre uma função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da estrutura social de dominação.

Independentemente de se adotar a teoria retribucionista, a utilitária, ou mesmo a eclética, no que pertine à finalidade da pena, certo é que o artigo 1º da Lei de Execução Penal dispõe que "a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado".

Ora, sendo assim, não se pode olvidar que, ao menos sob o viés positivado no ordenamento brasileiro, a execução penal tem por objetivo proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

O que não se pode admitir num Estado Democrático é que, independentemente da finalidade da pena privativa de liberdade, uma coisa é certa, deve o Estado ao menos propiciar ao condenado recursos suficientes à sua (re) integração ao convívio social [58]. Mesmo que a ressocialização seja mera utopia de seus defensores, deve o Estado, dentro de suas possibilidades e na medida do lícito, propiciar ao sentenciado a possibilidade de aderir ao padrão de etiquetamento tido como desejável pela sociedade. Isso não se confunde com a imposição ao condenado de aderir aos padrões pré-determinados.

Para tanto, imperioso que o sistema penitenciário se reestruture a fim de oferecer aos condenados penas humanas, dignas, que ao menos diminuam os efeitos dessocializadores imanentes ao cárcere.

De outra banda, o que se vê atualmente são estabelecimentos penitenciários superlotados, impregnados de doenças, com incontáveis pessoas cumprindo penas já extintas, mulheres dividindo celas com homens, servidores torturando presos, sem contar as faltas graves forjadas, inviabilizando o dinamismo da execução penal [59].

A manutenção de presos em regime mais severo do que o previsto no título judicial ofende uma das principais finalidades da pena, ou melhor, a finalidade ressocializatória, que vem estampada no art. 1º da LEP, segundo o qual "a execução penal tem por finalidade efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado".

Não se desconhece que os efeitos do cárcere, por si sós, geram a dessocialização dos condenados. Entretanto, cabe aos operadores do direito e ao administrador público minimizarem ao máximo tais efeitos, objetivando a reinserção social, oferecendo-lhes assistência na obtenção dos meios capazes de permitir o retorno ao meio social em condições favoráveis à reintegração.

Julio Fabbrini Mirabete [60] acentua que:

É comum, no cumprimento das penas privativas de liberdade, a privação ou limitação de direitos inerentes ao patrimônio jurídico do homem e não alcançados pela sentença condenatória. Essa hipertrofia da punição não só viola a medida da proporcionalidade como se transforma em poderoso fator de reincidência, pela formação de focos criminógenos que propicia. Nada mais correto. Aliando-se aos problemas pessoais do preso, tais como a atitude familiar de exagerada reprovação ou de injustificado apoio, o afastamento do cônjuge e dos filhos, a solidão, o ambiente prisional, pela falta de atividades, seja de trabalho, seja de lazer, o problema sexual, as condições de superlotação dos presídios, não só não contribuem para a recuperação do condenado, como também se tornam fatores criminógenos.

Um Estado que se intitula Democrático deve exigir a participação de todos os cidadãos na vida social, evitando-se a marginalização indevida do condenado. Na problemática posta a lume, os administradores públicos acabam por acentuar os efeitos dessocializadores do encarceramento do condenado, uma vez que, ao manter em regime fechado condenados no regime semi-aberto, cerceia a comunicação destes com o mundo exterior, dificultando a adequada reintegração do condenado à vida em liberdade.

Recorrendo-se às ponderações de Santiago Mir Puig (2007:107):

É assim que deve ser entendido o princípio da ressocialização em um Estado democrático, não como substituição coativa dos valores do sujeito, nem como manipulação de sua personalidade, mas como uma tentativa de ampliar as possibilidades de sua participação na vida social, ou seja, como uma oferta de alternativas ao comportamento criminoso. Isso requer a livre aceitação por parte do recluso, que não deve ser tratado como mero objeto da ação ressocializadora de um Estado intervencionista, mas como um sujeito não privado de sua dignidade, com o qual se dialoga.

Hassemer [61], em trabalho acerca dos fundamentos, estrutura e política do Direito Penal, quando disserta acerca da função ressocializatória da pena, preleciona que:

Ela livra o estado punitivo da imagem de ódio do guarda do calabouço e divide com ele a dignidade do médico. A solução "curar ao invés de punir" não é somente um pleito derivado do sentimento de humanidade; ela é também a saída de emergência de uma crise de legitimação estatal, a qual conduz à certeza de que a execução penal será aquilo que um criminoso razoável deveria esperar para si.

Não se pode compreender que se atribua à pena uma finalidade determinada, ou entendê-la sob determinado viés, se, quando na fase de execução despreza-se tudo o que dela se esperou. A pena, como bem acentua Julio Fabbrini Mirabete [62], tem por finalidade "a integração e reinserção social". Por isso, diz ele que:

Tendo em vista a finalidade da pena, de integração ou reinserção social, o processo de execução deve ser dinâmico, sujeito a mutações ditadas pela resposta do condenado ao tratamento penitenciário. Assinala ainda: Tem o Estado o direito de executar a pena, e os limites desse direito são traçados pelos termos da sentença condenatória, devendo o sentenciado submeter-se a ela. A esse dever corresponde o direito do condenado de não sofrer, ou seja, de não ter de cumprir outra pena, qualitativa ou quantitativamente, diversa da aplicada na sentença. (grifo nosso).

Sobre a função ressocializatória da pena, não é demais transcrever-se trecho do voto do Min. Marco Aurélio, proferido no HC 82.959, que concluiu pela inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei n° 8.072/90:

Senhor Presidente, tenho o regime de cumprimento da pena como algo que, no campo da execução, racionaliza-a, evitando a famigerada idéia do "mal pelo mal causado" e que sabidamente é contrária aos objetivos do próprio contrato social. A progressividade do regime está umbilicalmente ligada à própria pena, no que, acenando ao condenado com dias melhores, incentiva-o à comportamento penitenciário voltado à ordem, ao mérito e a uma futura inserção no meio social. O que se pode esperar de alguém que, antecipadamente, sabe da irrelevância dos próprios atos e reações durante o período no qual ficará longe do meio social e familiar e da vida normal que tem direito um ser humano; que ingressa em uma penitenciária com a tarja da despersonalização?

Sob este enfoque, digo que a principal razão de ser da progressividade no cumprimento da pena não é em si a minimização desta, ou o benefício indevido, porque contrário ao que inicialmente sentenciado, daquele que acabou perdendo o bem maior que é a liberdade. Está, isto sim, no interesse da preservação do ambiente social, da sociedade, que, dia-menos-dia receberá de volta aquele que inobservou a norma penal e, com isso, deu margem à movimentação do aparelho punitivo do Estado. A ela não interessa o retorno de um cidadão, que enclausurou, embrutecido, muito embora o tenha mandado para detrás das grades com o fito, dentre outros, de recuperá-lo, objetivando uma vida comum em seu próprio meio, o que o tempo vem demonstrando, a mais não poder, ser uma quase utopia.

O que se pretende esclarecer é que, no Estado Democrático de Direito impõe-se a necessária, porém não obrigatória, função ressocializatória da pena, ou melhor, deve-se ofertar ao reeducando a possibilidade de ressocializar-se, ainda que ele não o deseje. E daí surge a verdadeira legitimidade do Estado em seu monopólio organizado da força.

Punir-se o sentenciado com base em teorias meramente retributivas, preventivas ou mesmo mistas não atende aos anseios sociais.

Há que se ressaltar que as penas devem ser impostas dentro de limites, que servem como redoma protetora das garantias dos cidadãos e dos delinquentes, inclusive. Não é lícito, nem moralmente aceito, castigar pessoas além da gravidade do delito por elas praticado, ainda que se pretenda incutir na pena finalidade preventiva, uma vez que a dignidade da pessoa repudia a concepção de que o homem possa ser utilizado como instrumento para finalidades sociais de prevenção que a ele transcede.

Defende-se, aqui, o Direito Penal como instrumento, quando imprescindível, a viabilizar a convivência social por meio da ordenação pacífica dos conflitos e não como um pagamento de um mal cometido com um segundo mal, ainda maior, pois praticado pelo Estado.

Reproduz-se, abaixo, crítica tecida por Sérgio Manzina Martins, sobre os aspectos jurisdicionais da progressão de regime prisional [63]:

Um sistema cuja lógica interna repouse na pura retribuição do mal com o próprio mal será, inexoravelmente, um sistema fadado ao fracasso. A partir dessa premissa de cunho histórico - o que se acrescenta sem prejuízo de sua substancial iluminação ética - cabe aos operadores do Direito uma releitura dos fundamentos da execução penal quando, entre nós, a lei nº7.210/84 completou seu primeiro decênio de existência. O repertório jurisprudencial e doutrinário acumulado ao redor dessa experiência, ao lado da crucial vivência cotidiana dos casos concretos, habilita-nos a uma formulação crítica inicial quanto aos caminhos que se abrem para a premente questão do (des)cumprimento das penas privativas de liberdade no Brasil. Insiste-se em afirmar a inspiração utópica e impraticável do texto legal. Se é certo que ele tem deficiências, não será menos certo que sua história ilustra sobretudo a descrença dos operadores jurídicos quanto à sua racionalidade. Em suma, se a Lei nº 7.210/84 não tem até aqui funcionado a contento, isso decorre menos dela própria e, mais, das reservas que a comunidade judiciária guarda para com as concepções dessa lei, insistindo todos, em maior ou menor medida, que o mal representado pelo crime há de ser retribuído com o mal consistente na exacerbação física da pena. Se a lei não se aplica a contento, isso se deve ao fato de que nós próprios acreditamos nela, ou seja, não compartilhamos do postulado de que a execução da pena privativa de liberdade deve ser um caminhar constante para a libertação.

[...]

A concepção da pena com claustro é logicamente insustentável e humanamente abominável: o que traz a reflexão não seria por certo o limite físico e institucional, mas o ânimo interno de refletir, o que é melhor propiciado em um espaço vivencial mais amplo. Os limites institucionais do regime fechado hoje esgotam-se praticamente no papel contensivo, devendo ser reservado para aqueles casos onde a pessoa está ainda sob influência forte de algum surto criminógeno. Superada essa fase, o que pode ser constatado pela avaliação criminógena e pessoal oferecida a partir dos trabalhos técnicos, na qual a discussão das circunstâncias do delito cometido também tem irrecusável valor, uma vez assentado o diagnóstico de que os fatores que mais intensamente trouxeram a pessoa para o crime já não estão mais presentes, abre-se a perspectiva de imediata progressão ao semi-aberto. O objeto precípuo dessa investigação é como o condenado suportou a aflição da pena privativa de liberdade e se, nessa jornada, soube elaborar seus conflitos e sua própria condição comunitária.

Nada interessa à sociedade – ainda que muitos pensem em sentido diverso – condenados que já possuem o direito ao regime de cumprimento de pena semi-aberto cumprindo pena no fechado, pois a pena não é um fim em si mesmo, mas instrumento de controle social formal que deve proteger os bens jurídicos essenciais ao corpo social.

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Sobre o autor
Rafael de Souza Miranda

Defensor Público do Estado de São Paulo. Membro do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Coordenador Regional da Escola da Defensoria Pública – Regional Mogi das Cruzes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Rafael Souza. Excesso de execução.: Consequências jurídicas do cumprimento de pena em regime mais gravoso que o previsto na sentença ou decisão judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2370, 27 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14077. Acesso em: 28 mar. 2024.

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