O objetivo deste trabalho é analisar a existência de antinomia entre o artigo 34 da Lei 4.886/1965 - que regula as atividades dos representantes comerciais autônomos - e o artigo 720 do novo Código Civil, com relação ao prazo de aviso prévio que as partes do contrato de representação comercial por tempo indeterminado devem conceder um ao outro ao resolvê-lo, bem como à interpretação que deve ser dada para esse tipo de rescisão contratual.
De início, faz-se importante a transcrição dos referidos artigos, visando estabelecer os limites do debate que se pretende:
Lei nº 4.886, de 9 de Dezembro de 1965
Art. 34. "A denúncia, por qualquer das partes, sem causa justificada, do contrato de representação, ajustado por tempo indeterminado e que haja vigorado por mais de seis meses, obriga o denunciante, salvo outra garantia prevista no contrato, à concessão de pré-aviso, com antecedência mínima de trinta dias, ou ao pagamento de importância igual a um terço (1/3) das comissões auferidas pelo representante, nos três meses anteriores".
Código Civil, de 10 de janeiro de 2002
Art. 720. "Se o contrato for por tempo indeterminado, qualquer das partes poderá resolvê-lo, mediante aviso prévio de noventa dias, desde que transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto do investimento exigido do agente.
Parágrafo único. No caso de divergência entre as partes, o juiz decidirá da razoabilidade do prazo e do valor devido".
Indaga-se: teria o artigo 720, do novo Código Civil, lei posterior e geral, revogado o artigo 34 da Lei 4.886/1965, lei anterior e especial? Segundo o teor do artigo 34 da Lei 4.886/1965, que regula a atividade dos representantes comerciais, o denunciante do contrato por prazo indeterminado deverá conferir à outra parte o prazo mínimo de trinta dias de aviso prévio. Já a lei geral, ou seja, o Código Civil, na parte em que regula a atividade dos representantes comerciais e dos distribuidores, informa que o referido prazo é de noventa dias.
Verifica-se, no caso em estudo, uma antinomia de segundo grau, uma vez que (i) duas normas conflitam, sem que se possa saber qual delas deverá ser aplicada e além disso, (ii) os metacritérios solucionadores dos conflitos de normas também conflitam, já que não se sabe se haveria prevalência do critério da especialidade ou da cronologia.
Segundo Maria Helena Diniz [01]:
"Em caso de antinomia entre o critério de especialidade e o cronológico, valeria o metacritério lex posterior generalis non derogat priori speciali, segundo o qual a regra de especialidade prevaleceria sobre a cronológica. Esse metacritério é parcialmente inefetivo, por ser menos seguro que o anterior. A meta-regra lex posterior generalis non derogat priori speciali não tem valor absoluto, dado que, às vezes, lex posterior generalis derogat priori speciali, tendo em vista certas circunstâncias presentes. A preferência entre um critério e outro não é evidente, pois se constata uma oscilação entre eles. Não há uma regra definida; conforme o caso, haverá supremacia ora de um, ora de outro critério".
Também segundo Maria Helena Diniz, o critério dos critérios para solucionar o conflito normativo é o princípio supremo de justiça, de acordo com a consciência jurídica popular e os objetivos sociais [02].
Tendo em vista que a lei geral posterior é mais benéfica ao representante comercial (e também ao proponente) que a lei anterior específica - houve a ampliação do prazo de aviso prévio para que as partes possam reorganizar a sua atividade comercial, conforme seus interesses -, a primeira está mais alinhada com os objetivos sociais modernos, de forma que parece claro que não prevalecerá o lex posterior generalis non derogat priori speciali, mas sim o lex posterior generalis derogat priori speciali, ainda que excepcionalmente.
Pela prevalência do prazo de aviso prévio do Código Civil, manifesta-se Rubens Requião em nota ao comentário do artigo 34 da Lei 4.886/1965 [03]:
"O prazo de aviso prévio é de noventa dias, segundo o art. 720 do Código Civil. É prazo mínimo, podendo ser aumentado por disposição contratual. Não pode ser reduzido pelas partes, a valor menor que o número estabelecido na lei. Nos contratos de representação comercial anteriores à sanção do Código Civil de 2002, será observado o prazo que estabelecerem, em respeito à regra de que a lei em vigor no tempo da celebração rege o ato. Também assim nos contratos escritos omissos quanto ao prazo de aviso prévio. Mas nos contratos celebrados após 10 de janeiro de 2002, data da publicação do Código Civil, o prazo de noventa dias do aviso prévio deve ser observado".
No mesmo sentido entende Silvio de Sálvio Venosa [04]. Segundo o autor, o prazo para a denúncia vazia ou imotivada é de, no mínimo, 90 dias, mas cumpre examinar o caso concreto e o investimento realizado. Venosa chega mesmo a questionar se o artigo 34 estaria totalmente derrogado ou apenas parcialmente, no tocante ao prazo de aviso prévio.
Em uma primeira conclusão, entende-se que o prazo mínimo de aviso prévio para as partes que denunciarem o contrato por prazo indeterminado deve ser de noventa dias, nos termos do artigo 720 do Código Civil, ainda que se trate de lei geral posterior, valendo, excepcionalmente, a meta-regra lex posterior generalis derogat priori speciali.
Ampliando-se um pouco o espectro da questão, verifica-se que a interpretação da referida norma se dá no sentido de que deve haver transcorrido um prazo razoável e compatível com o valor do investimento exigido do agente. Tal razoabilidade, que harmoniza a possibilidade da rescisão unilateral com as condições peculiares do desempenho da agência, poderá ser aferida pelo magistrado no caso de divergência entre as partes. A diretriz será, sempre, a de se inibir a ocorrência de danos mais graves que possam advir da cessação do negócio, a quaisquer das partes.
Portanto, a resilição unilateral de contrato por tempo indeterminado somente se operará se (i) houver aviso prévio e (ii) caso tenha decorrido prazo compatível com o investimento exigido do agente entre a data da celebração do contrato e o dia em que se deu o aviso prévio, para evitar que alta quantia seja empenhada sem o devido retorno. Havendo divergência entre as partes, o órgão judicante deverá decidir sobre a razoabilidade do prazo de contratação transcorrido até a data em que se deu o aviso prévio e o eventual valor devido pelo preponente ao agente, em compensação aos investimentos.
Nesse sentido, o magistério de Maria Helena Diniz [05]:
"O contrato extinguir-se-á pela resilição unilateral, se não houver prazo estipulado para a sua duração, mas o agente está adstrito a respeitar um prazo razoável para que o outro contraente tome as devidas providências, seja da parte do agente quanto à conclusão dos negócios encetados, seja de parte do representado para a cobertura da zona por outro agente. Isto é assim porque a resilição brusca poderá acarretar sérios danos. Logo, se o contrato for por tempo indeterminado, qualquer dos contraentes poderá resolvê-lo, a qualquer tempo, mediante aviso prévio, com a antecedência de noventa dias, desde que da celebração do contrato até a data daquele aviso haja transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto do investimento exigido do agente".
Como fica bem claro, havendo duração do contrato passível de justificar qualquer investimento, é absolutamente admissível a denúncia vazia, exigindo-se somente o aviso prévio de 90 dias, sem que seja devida qualquer indenização. Frise-se, a indenização indicada no artigo 27, alíneas "j", com redação determinada pela Lei nº 8.420, de 08/05/92, que alterou a Lei nº 4.886, de 09/12/65, só é devida no caso de contrato por tempo determinado.
Em conclusão final, verifica-se que, em se tratando de contrato firmado por tempo indeterminado, desde que decorrido tempo compatível com a natureza e o vulto do negócio, a rescisão unilateral não implica qualquer outra indenização além do aviso prévio, nos termos do artigo 720 do Código Civil.
Infelizmente, não é assim que a jurisprudência entende. São inúmeros os julgados que, em se tratando de rescisão de contrato por tempo indeterminado, fixam o aviso prévio e a indenização prevista na Lei nº 4.886, de 9/12/65, conjuntamente, nos seguintes termos:
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Apelação 7063992-0
Relator Pedro Alexandrino Ablas
"REPRESENTAÇÃO COMERCIAL – Rescisão unilateral – Hipótese em que é devido o aviso prévio (artigo 34 da Lei 4.886/65) e a indenização do parágrafo único do artigo 27 da mesma lei – É inegável que a Lei 4.886, de 1965, de caráter social, inspirou-se no contrato de trabalho e no direito do trabalho, segundo o qual o aviso prévio não isenta o empregador da obrigação de indenizar, razão pela qual o representante comercial, na hipótese da rescisão imotivada da relação jurídica contratual, tem direito de obter aviso prévio do art. 34 e também indenização prevista no art, 27, ambos da Lei 4.886/65".
Votação unânime, em 2 de agosto de 2006.
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Apelação 1.036.668-6
Relator James Siano
DEMANDA INDENIZATÓRIA (CONTRATO DE REPRESENTAÇÃO COMERCIAL).
(...)
Em havendo extinção unilateral de contrato de representação comercial firmado por prazo indeterminado e que haja vigorado por mais de seis meses, sem justa causa, a falta de pré-aviso, pelo denunciante, com antecedência mínima de trinta dias à parte contrária, o obriga ao pagamento de importância igual a um terço (1/3) das comissões auferidas pelo representante, nos três (03) meses anteriores (art. 34 da Lei 4.886/65).
No silêncio do contrato de representação comercial, a indenização devida ao representante, fruto da extinção do ajuste, sem justa causa, deve equivaler a um doze avos (1/12) do total da retribuição percebida durante o tempo em que exerceu a representação (art. 27, alínea "j", da Lei 4.886/65, com redação dada pela Lei 8.420/92).
Votação unânime, em 22 de maio de 2007
Com a devida vênia, está havendo uma interpretação equivocada das normas aplicáveis ao assunto em questão - rescisão de contrato de representação comercial por prazo indeterminado -, sendo certo que, em razão justamente do caráter social, é o artigo 720 do Código Civil que deve ser aplicado, pois mais benéfico que a lei específica. Ademais, não se pode concordar com a interpretação dos Tribunais no que concerne à fixação de indenização, vez que esta só é aplicável no caso de contrato por tempo determinado. Não se deve esquecer que tal avença tem caráter comercial e não trabalhista!
Notas
- DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. São Paulo: Saraiva, 2008. p.50
- DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. São Paulo: Saraiva, 2008. p.52
- REQUIÃO, Rubens. Do representante comercial: Comentários à Lei nº 4.886, de 9 de dezembro de 1965, à Lei nº 8.420, de 8 de maio de 1992, e ao Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 250/251.
- VENOSA, Silvio de Sálvio. Direito Civil: contrato em espécie – 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2006. pág. 318.
- DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos, volume 3, 6ª ed. ver., ampl. e atual. de acordo com o novo Código Civil, o Projeto de Lei nº 6.960/2002 e a Lei nº 11.101/2005. São Paulo: Saraiva, 2006. pág. 535.