Um dos pontos polêmicos da recente reforma do processo civil, trazida pela Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, consiste na definição do termo a quo do prazo a que alude o art. 475-J do CPC, ou seja: a partir de quando se deve começar a contar os 15 dias para cumprimento da sentença que condena alguém a pagar quantia certa?
O próprio art. 475-J não é muito claro a respeito ao estabelecer que:
Art. 475-J. Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de quinze dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de dez por cento e, a requerimento do credor e observado o disposto no art. 614, inciso II, desta Lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação.
Considerando-se a imprecisa redação deste dispositivo, foram formulados pelo menos três entendimentos doutrinários, atinentes ao dies a quo para a incidência da multa de 10% sobre o montante do débito inadimplido, a saber: a) a partir do trânsito em julgado; b) a partir da intimação, pela imprensa, do "cumpra-se o acórdão"; e c) a partir da intimação do devedor, na pessoa de seu advogado, para a fluência do prazo de 15 dias.
Considerando a omissão do CPC em estabelecer o dia de inicio da contagem do prazo, nosso entendimento é de que a interpretação mais correta é a que se ajusta às regras gerais do Código de Processo Civil a respeito do tema da contagem de prazos, em especial, do disposto no art. 240, bem como de outras normas atinentes ao cumprimento de sentença.
A propósito, o art. 240 do CPC, constante da Parte Geral, do Código de Processo Civil, em especial no Capítulo IV, que trata "DAS COMUNICAÇÕES DOS ATOS", Seção IV, "das Intimações", estabelece claramente que "salvo disposição em contrário, os prazos para as partes, para a Fazenda Pública e para o Ministério Público contar-se-ão da intimação"
Enfim, a discussão que se tem, mormente após a decisão proferida no REsp 954.859-RS, rel. Humberto Gomes de Barros, é no sentido da necessidade de intimação específica para cumprimento do julgado ou se a intimação da última decisão do processo cognitivo, isto é, da sentença que transitará em julgado tão logo se encerre o prazo para o último recurso, já seria suficiente para o início do prazo de 15 dias para adimplemento voluntário da obrigação fixada na sentença.
Em artigo publicado na Revista do Advogado, o ilustre JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI, sustenta que
Como a incidência da lei nova resume-se na pura transição temporal, logo os tribunais pátrios viram-se instados a enfrentar tal questão. Com efeito, diante dos aludidos posicionamentos, mereceu elogio, no meio jurídico paulista, a prudência com que se houve a 28ª Câmara de Direito Privado do TJSP, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 1.081.610-00/1, relatado pelo Des. Neves Amorim. Em acórdão de 20 laudas, o tema foi examinado à exaustão, sob os três diferentes enfoques, com primorosa fundamentação, chegando-se a resultado unânime no sentido de que, por inafastável imperativo de segurança jurídica, a multa de 10% é exigível somente depois do transcurso de 15 dias, após a intimação do devedor na pessoa de seu advogado. Extrai-se do julgado o seguinte escólio: "as reformas perpetradas no CPC não podem visar apenas à celeridade e agilização, mas devem aliá-las à suma segurança jurídica, sem a qual o processo tornar-se-á um instrumento totalmente despido de um mínimo de regras e em desacordo com os preceitos constitucionais a ele ligados... vejo que diante de tantas possibilidades, há necessidade de se regrar de forma segura o início do cumprimento da sentença, com prazo certo para começo e término e incidência da multa...".
(http://www.oab.org.br/oabeditora/users/revista/1205506363174218181901.pdf)
Daí porque a decisão perfila pelo entendimento de que, não podendo haver execução de ofício e cabendo à parte seu início, nos termos do art. 475-B, do CPC, somente depois de apresentado o cálculo pelo credor e intimado o devedor, na pessoa de seu advogado, é que flui o prazo de que trata o art. 475-J, do CPC.
No mesmo sentido, houve diversas decisões de tribunais estaduais. Confira-se TJRS – AI 70019536663, Rel. Voltaire de Lima Moraes, j. 06/06/2007; TJGO - AI 200701763030, Rel. Des. GILMAR LUIZ COELHO, TJMG, AI – proc. 1.0000.00.297468-1/000(1), Rel. PINHEIRO LAGO, publ. 19/9/2003. Além disso, mais explicitamente, o TJRS fixou orientação jurisprudencial do seguinte teor:
Depois de ampla discussão a respeito das correntes existentes na jurisprudência, foram redigidas as proposições, relatadas pelo desembargador Luís Augusto Coelho Braga, que deverão ser seguidas pelos demais integrantes do Grupo:
Proposição nº 1: "No cumprimento da sentença, a fim de que incida a multa prevista no art. 475-J do CPC, há necessidade de intimação do advogado do devedor na forma dos arts. 236 e 237, ambos do mesmo diploma processual civil.
Doutrinadores como NELSON NERY JÚNIOR, ROSA MARIA DE ANDRADE NERY (Código de Processo Civil Comentado, 10ª edição, Editora RT, 2007, p. 641), CARLOS ALBERTO CARMONA ("Cumprimento de Sentença conforme a Lei 11.232 de 2005", cf. www.mrtc.com.br), JOSÉ EDUARDO CARREIRA ALVIM, LUCIANA GONTIJO CARREIRA ALVIM CABRAL (Cumprimento da Sentença, Editora Jaruá, 2006, fls. 66), CÁSSIO SCARPINELLA BUENO (A Nova Etapa da Reforma do Código de Processo Civil, 2006, fls. 77 e 78) e JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI ("Reforma na Jurisprudência. STJ interpretou mal regra sobre cumprimento de sentença", cf. www.conjur.estadao.com.br), defendem a necessidade de intimação do devedor, para fluência do prazo de 15 dias, de que trata o art. 475-J, do CPC.
É bem verdade que há expressiva corrente em outro sentido, em especial após o pronunciamento do STJ, julgando o REsp 954.859-RS, onde o relator Humberto Gomes de Barros, depois de ressaltar que o tema desponta "novo e interessantíssimo", entende que: "Certamente, a necessidade de dar resposta rápida aos interesses do credor, não se sobrepõe ao imperativo de garantir ao devedor o devido processo legal...". Em seguida, o voto enfatiza que não há previsão normativa para a pretendida intimação pessoal, distanciando-se do estabelecido no art. 240, do CPC.
E, por paradoxal que possa parecer, afirma, o v. acórdão, com todas as letras, como se constasse de algum dispositivo legal, que "o termo inicial dos 15 dias deve ser o trânsito em julgado da sentença. Passado o prazo da lei, independente de nova intimação do advogado ou da parte para cumprir a obrigação, incide a multa de 10% sobre o valor da condenação". Mas não é só. O acórdão chega explicitar que: "... o advogado não é, obviamente, um estranho a quem o constituiu. Cabe a ele comunicar seu cliente de que houve a condenação. Em verdade, o bom patrono deve adiantar-se à intimação formal, prevenindo seu constituinte para que se prepare e fique em condições de cumprir a condenação. Se o causídico, por desleixo omite-se em informar seu constituinte e o expõe à multa, ele deve responder por tal prejuízo...".
O que causa espécie, e que o julgado ignora por completo – o que a prática da advocacia tem mostrado – é que em certos casos se tem extrema dificuldade em se ter certeza de que determinado ato decisório transitou em julgado. No entanto, para os integrantes da 3ª Turma do STJ, nas demandas em que o quantum da condenação corresponde ao pedido formulado pelo autor, o trânsito em julgado é aferido sem maiores dificuldades. Todavia, sabe-se que há situações em que não há assim tanta facilidade, como nos casos de sucumbência recíproca, p. ex., onde somente por meio de exercício de adivinhação é que se torna possível certificar-se do trânsito em julgado. Assim, p. ex., se um tribunal estadual reduzir de R$ 100.000,00 para R$ 50.000,00 a condenação antes imposta pela sentença, o condenado não poderá presumir (ou adivinhar), de antemão, que o autor se resignou com o julgamento. Quando ele, devedor, descobrir que não houve interposição de recurso especial, o lapso de 15 dias já transcorreu!
Some-se a isso a extrema dificuldade do advogado militante nas comarcas do interior, distante centenas ou milhares de quilômetros do Tribunal ad quem, que não dispõe dos autos ou de cópia destes – até porque não há lei que assim lhe determine –, ter a certeza da quantia exata que seu cliente deve pagar, já que não é raro os acórdãos deixarem de expressar o montante da condenação.
Além disso, a decisão proferida pelo STJ ignora ainda que a própria lei indica que o início do cumprimento de sentença será requerido pelo credor e cumpre a ele apresentar planilha de cálculo, até porque inexiste execução de ofício e sem valor apurado, no caso de quantia certa, bastando analisar o texto do art. 475-B, caput, em que está expresso:
Quando a determinação do valor da condenação depender apenas de cálculo aritmético, o credor requererá o cumprimento da sentença, na forma do art. 475-J desta Lei, instruindo o pedido com a memória discriminada e atualizada do cálculo.
Ora, como entender então que o prazo para comprimento da sentença já teria ocorrido com o transito em julgado, se ao credor incumbe provocar o juízo para requerer o cumprimento da sentença? Como interpretar que há "execução de ofício", com a imposição de multa apenas pelo transcurso do prazo de 15 dias após o trânsito em julgado do acórdão, ao arrepio do que estabelece o art. 475-B?
Assim, reprisando as palavras do ilustre JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI, "o posicionamento externado no aludido julgamento do Recurso Especial n. 954.859-RS consubstancia-se em descabida emboscada para o advogado" (ob. cit), restando a esperança de que o STJ, acabe revendo esta equivocada interpretação.
CONCLUSÃO: Com o devido respeito aos que pensam de forma diversa, entendo que o termo inicial do prazo para cumprimento da sentença de que trata o art. 475-J, em respeito a segurança jurídica, deve ser interpretado em consonância com o art. 475-B, após a apresentação, pelo credor, do respectivo cálculo, devendo o devedor ser intimado, ainda que na pessoa de seu advogado, para a efetivação do pagamento, nos termos do art. 240, do CPC.