X - CONFISCO
Ao criar contribuição previdenciária para o aposentado, a Lei nº 9.783, de 1999, afrontou o art. 150, IV da Constituição Federal, verbis:
"Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas aos contribuintes, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
..................................
IV - utilizar tributo com efeito de confisco."
A ilegitimidade constitucional da imposição contributiva aos aposentados é corolário inevitável a que se chega por qualquer dos caminhos trilhados nas análises precedentes. Aliás, como já mencionado, nem se pejou o Poder Executivo, autor do projeto, de camuflar seu intento na própria Exposição de Motivos que acompanhou a Mensagem Presidencial:
"A instituição de contribuição previdenciária para os servidores públicos inativos é da maior relevância para corrigir as distorções existentes. Como atualmente eles deixam de contribuir ao se aposentarem, a remuneração líquida dos inativos acaba sendo mais elevada que a dos ativos."
Meridianamente claro que o Senhor Presidente da Republica propôs, e o Congresso Nacional foi coagido a aprovar como penhor de credibilidade no calor da crise financeira que assolava o país, um instrumento tributário para, mediante via indireta, confiscar parte da renda dos aposentados para que sua remuneração líquida fosse igualada aos dos ativos. Olvidando-se, entretanto, de que, certo ou errado, a remuneração líquida dos aposentados decorre de comandos constitucionais.
A nítida noção de confisco, no caso, emerge, também, do valor da exação. Por sua indisfarçável natureza de tributação adicional da renda ela deve ser somada ao imposto de renda pessoa física. Verifica-se então que, na maioria dos casos, nada menos que 44,1% dos proventos serão descontados.
Paralelamente à infringência ao princípio do não-confisco, a taxação adicional da renda confere também um caráter nítido de quebra da igualdade de direitos com os demais contribuintes de imposto de renda pessoa física, assunto tratado no já transcrito inciso II do art. 150 da Magna Carta.
XI - MENS LEGISLATORIS
O legislador constituinte derivado desejou, inequivocamente, que o aposentado não contribuísse para a previdência, ao aprovar a Emenda n.º 20, de 1998. Quanto ao segurado da previdência geral o texto final assim o expressou, na redação do inc. II do art. 195, in fine: "II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de que trata o art. 201."
Quanto ao segurado do regime do art. 40, de ver que, na versão da PEC-33, na forma do Substitutivo do Senado Federal, levada a votação em primeiro turno na Câmara dos Deputados, conforme ata da sessão publicada no Diário da Câmara dos Deputados, de 12 de fevereiro de 1998, constava o § 1º do art. 40, com o seguinte teor:
"§ 1º As aposentadorias e pensões serão custeadas com recursos provenientes das contribuições dos servidores e pensionistas e do respectivo ente estatal, na forma da lei, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão de valor igual ou inferior ao limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201."
Esse dispositivo foi rejeitado em plenário, ao se deliberar o Destaque para Votação em Separado da bancada governista, na forma abaixo (Pág. 04218 do Diário da CD):
"DESTAQUE DE BANCADA.
Senhor Presidente da Câmara dos Deputados, Nos termos do art. 161, inciso I, § 2º do Regimento Interno, requeremos a Vossa Excelência, destaque para votação em separado - DVS, para supressão do § 1º, do art. 40, constante do art. 1º do Substitutivo do Senado Federal à PEC n.º 33-G, de 1995. -
JUSTIFICAÇÃO - Entendimentos firmados entre os Líderes do Partidos da base de apoio ao Governo, com a expressa concordância do Poder Executivo, através de seu Líder, Deputado Luís Eduardo, concluíram que a cobrança de contribuição previdenciária de aposentados ou pensionistas da União, após o segurado ter cumprido todos os requisitos funcionais pecuniários e temporais estabelecidos legalmente como necessários à obtenção desse benefício, é indevida. Entendeu-se, também que essa decisão ao nível de Estados e Municípios compete aos respectivos entes, em absoluto respeito ao princípio da autonomia federativa, para o que, é essencial que a desoneração dos servidores federais inativos e pensionistas seja definida em lei específica e não na Constituição Federal.
Sala das Sessões, 11 de fevereiro de 1998. Dep. Gerson Peres, 1º Vice-Líder do PPB - Dep. Odelmo Leão, Líder do PPB - Dep. Inocêncio de Oliveira, Líder do PFL - Dep. Aécio Neves, Líder do PSDB - Dep. Geddel Vieira Lima, Líder do Bloco Parlamentar PMDB/PSD/PRONA - Dep. Paulo Heslander, Líder do PTB - Dep. Luís Eduardo, Líder do Governo."
Como se vê na página 04229 do mencionado Diário da Câmara dos Deputados, o dispositivo em votação (§ 1º do art. 40) foi rejeitado por 481 votos contra 5, contando-se, ainda, 5 abstenções.
Sem embargo de todas as restrições que as regras de hermenêutica jurídica impõem à apuração da vontade do legislador como condicionante da mens legis, de ver que o direito brasileiro não refuga a interpretação histórica do texto constitucional, conforme precedentes do próprio Supremo Tribunal Federal.
No Acórdão prolatado no MS 20.069, (RDA, v. 135, 1979, pág .64-65), o qual é baseado em lições de Carlos Maximiliano, sendo relator o Ministro Moreira Alves, são enumerados os princípios que devem nortear o intérprete na utilização dos elementos históricos na tarefa hermenêutica, quais sejam:
"a) só devem servir de guia da exegese os materiais legislativos quando o pensamento diretor, o objetivo central, os princípios que dos mesmos ressaltam encontram a expressão no texto definitivo;
b) proceda também o intérprete ao exame do dispositivo, em si e em relação ao fim a que se propõe; tente, sempre e complementarmente, o emprego de processo sistemático e o confronto do resultado com os princípios científicos do Direito;
c) admita o sentido decorrente dos trabalhos preparatórios quando plenamente provado, evidente, acima de qualquer dúvida razoável;
d) se um preceito figurava no Projeto primitivo e foi eliminado, não pode ser deduzido, nem sequer por analogia, de outras disposições que prevaleceram, salvo quando a supressão se haja verificado apenas por o considerarem desnecessário ou incluído implicitamente no texto final." (o negrito não é do original).
Inequivocamente, os princípios acima enunciados ajustam-se perfeitamente ao caso presente. Resta plenamente provado, acima de qualquer dúvida razoável que o preceito figurava no projeto de reforma constitucional e foi retirado como resultado de vontade claramente manifestada pelos legisladores e não pode ser deduzido nem por analogia, de outras disposições que prevaleceram. Pelo contrário, a interpretação sistemática da Emenda Constitucional nº 20, não só de seus próprios dispositivos, mas deles com os demais dispositivos constitucionais não alterados, leva à única interpretação possível: da impossibilidade de se impor contribuição previdenciária, pois, "após o segurado ter cumprido todos os requisitos funcionais pecuniários e temporais estabelecidos legalmente como necessários à obtenção desse benefício é indevida" (cf. justificação do Destaque de Votação em Separado).
E, pode-se acrescentar, muito menos mediante lei ordinária e com estabelecimento de alíquotas progressivas.
XII - CONCLUSÃO
As notas precedentes decorreram da preocupação central de examinar o enquadramento constitucional da Lei nº 9.783, de 28 de janeiro de 1999 no regramento introduzido pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998, principalmente no que se refere ao encargo criado para os aposentados. As incompatibilidades apontadas emergiram como as mais evidentes. Sem embargo, outras poderão surgir do exame percuciente pelos doutrinadores e por todos aqueles que carregam a responsabilidade de interpretar, aplicar e construir o Direito.
Não se afasta, também, o apontamento de discrepâncias com outros dispositivos e princípios da Carta Magna. O escopo desse documento era, basicamente, demonstrar que as alterações trazidas pela Emenda nº 20 ao regime de aposentadoria dos servidores públicos foi de tal monta que a inelutável obsolescência condenou ao desuso todo o arsenal doutrinário e jurisprudencial que antes informavam o conceito de prêmio que embasava o antigo regime. O conceito previdenciário, contributivo e atuarial que agora fornece os alicerces para o novo regime estão a desafiar a argúcia e a ciência jurídica para a construção de um novo referencial interpretativo. As apontadas incongruências da Lei nº 9.783 decorrem, basicamente, da incapacidade (ou impossibilidade prática) dos legisladores em atentarem para isso. Certamente caberá ao Poder Judiciário restabelecer a normalidade jurídica, para segurança dos cidadãos e gáudio dos que foram diretamente atingidos pela malsinada lei.