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A democracia aprisionada nos porões da ditadura: a ADPF 153

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Agenda 04/05/2010 às 00:00

RESUMO

A finalidade do presente estudo é analisar julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamento n. 153 pelo Supremo Tribunal Federal por sete votos a dois contra a não aplicação do art. 1° da Lei da Anistia para os agentes públicos acusados de cometer crimes comuns durante a ditadura militar. A rejeição do pedido da Ordem dos Advogados do Brasil para a punição dos atos de tortura durante o regime militar significa impunidade.

O Estado deve respeitar assegurar a democracia, a participação popular e a não violação dos direitos fundamentais, de maneira a alcançar efetivamente o Estado Democrático de Direito. Para a Organização das Nações Unidas as forças que rejeitam olhar para o passado estão prevalecendo no Brasil.

Palavras – chave: ADPF 153, Lei da Anistia, Impunidade, Participação popular; Democracia, rejeição ao passado.


ABSTRACT

The purpose of this study is to analyze trial of the complaint of breach of fundamental precepts n. 153 the Supreme Court by seven votes to two against the non-application of Art. 1 of the Amnesty Law for public officials accused of committing ordinary crimes during the military dictatorship. The rejection of the application of the Order of Lawyers of Brazil for the punishment of acts of torture during the military regime means impunity.

The State must respect democracy, the popular participation, and ensure non – violation of fundamental rights, in order to effectively achieve the democratic rule of law. For the United Nations Forces that reject look to the past are prevailing in Brazil.

Keywords: ADPF 153, Law of Amnesty, Impunity, Popular participation; Democracy, rejection of the past.


1. INTRODUÇÃO

A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153 foi proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil no Supremo Tribunal Federal com a finalidade de questionar a validade do artigo primeiro da Lei da Anistia (6.683/79), que em sua redação considera perdoados os crimes de qualquer natureza relacionados aos crimes políticos ou conexos praticados por motivação política no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.

Na ADPF 153, a Ordem dos Advogados do Brasil solicita ao STF uma interpretação mais adequada do artigo primeiro desta lei, de maneira que a anistia concedida aos autores de crimes políticos e seus conexos (de qualquer natureza) não se estenda aos crimes comuns praticados por agentes públicos acusados de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores.

Nesse sentido não caberia a extensão da anistia de natureza política aos agentes do Estado, tendo em vista que os agentes policiais e militares na realidade teriam cometido crimes comuns e não políticos, ou seja, que seriam contrários a segurança e a ordem política e social, que foram cometidos por aqueles que eram opositores ao regime.

Nesse passo, anistiar os agentes públicos que cometeram crimes bárbaros, como a tortura, que é imprescritível consoante a Constituição Federal, é apoiar a impunidade e, mais que isso, representa um retrocesso democrático, em um país que deveria incentivar a abertura dos canais de comunicação e não o aprisionamento dos ideais democráticos.

Porém, lamentavelmente, no dia 28 de abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal votou, por sete votos a dois, pela improcedência da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamento n. 153, contra a revogação da Lei da Anistia para os agentes públicos acusados de cometer crimes comuns durante a ditadura militar.

Por fim, no presente estudo será analisado o quanto essa decisão representa um retrocesso democrático, pois acoberta a impunidade, além de proibir investigações e punições relacionadas ao período ditatorial brasileiro.


2. LEI DA ANISTIA: O JULGAMENTO DA ADPF 153

Em 21 de novembro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil ingressou no Supremo Tribunal Federal com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153, sobre o teor do Art. 1º da Lei nº 6.683/1979, e notória controvérsia constitucional surgida a respeito do âmbito de aplicação deste diploma legal.

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

Ela questionou a anistia de agentes públicos responsáveis pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra os opositores ao regime militar.

Nesse passo, os atos de repressão aos criminosos políticos deveriam ser julgados como crimes comuns, pois não possuíam relação com os crimes políticos ou praticados por motivação política não se enquadrando na Lei da Anistia.

Segundo a ADPF 153, os agentes públicos que mataram, violentaram sexualmente e torturaram aqueles que eram opositores políticos não teriam praticado os crimes políticos previstos nos diplomas legais, ou seja, nos Decretos- lei n. 314 e 898 e na Lei n. 6.620/78, pelo fato de que não atentaram contra a ordem pública e a segurança nacional.

Em tese, não poderia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo.

Consoante a Ordem dos Advogados do Brasil há uma aberrante desigualdade o fato da anistia servir tanto para os delitos de opinião e os crimes contra a vida, a liberdade e a integridade pessoal cometido pelos opositores.

Na ADPF n. 153, a Ordem dos Advogados do Brasil solicitou que fossem relevados a identidade dos militares e dos policiais responsáveis pelos crimes cometidos em nome do Estado contra aqueles que eram opositores ao regime político na tentativa de abrir os arquivos da ditadura militar em nome da garantia de um Estado Democrático de Direito.

Nesse passo, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil o fato dos militares e dos policiais que torturaram receberem remuneração e serem anistiados pelo próprio governo seria um ato de ilegalidade e violação aos direitos humanos bem como ao Estado Democrático de Direito, pautado em uma democracia.

A Ordem dos Advogados do Brasil entende que se fosse revista a Lei da Anistia e reabertos os casos em que ocorreu a tortura, haveria precedente para pedidos de extradição dos supostos torturadores para outros países, diante da ocorrência de crimes contra a humanidade.

As leis da anistia existentes nos diversos países do mundo estão sendo revistas e os torturadores estão sendo julgados no mundo inteiro, como exemplo podemos citar os países da América Latina como a Argentina. Ou seja, são países que, em nome da preservação da democracia e dos direitos humanos estão revendo o passado e rebatendo o terrorismo do Estado, dando uma punição aos seus ditadores e aos autores de crimes contra a humanidade.

Caberia ao Brasil punir quem realizou crimes de tortura em nome do Estado, pois a lei da anistia dizia de maneira específica que os crimes políticos e conexos estavam anistiados e não os crimes de tortura que é um crime de lesa – humanidade, imprescritível, não se confundindo com um crime político.

Apesar do Supremo Tribunal Federal afirmar que a tortura não foi tipificada como crime durante o regime militar e nem sob a égide da Constituição anterior, o princípio da dignidade da pessoa humana, do respeito aos direitos fundamentais bem como o princípio democrático, quebrado com o golpe militar de 1.964, são inerentes e implícitos em nosso ordenamento jurídico não havendo necessidade de estarem expressos constitucionalmente.

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Ademais, as vítimas sobreviventes e os familiares dos mortos não participaram diretamente do acordo que levou à anistia, porém a existência de tal acordo não foi confirmada diante do fato de que a corporação militar não confirmou os crimes cometidos no regime militar.

Na exordial da ADPF n. 153 os advogados Fábio Konder Comparato e Maurício Gentil Monteiro expuseram "Trata-se de saber se houve ou não anistia dos agentes públicos responsáveis, entre outros crimes, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores políticos ao regime militar, que vigorou entre nós antes do restabelecimento do Estado de Direito com a promulgação da vigente Constituição."

A inconstitucionalidade da lei federal, ou seja, da lei da anistia seria decorrente da violação dos preceitos fundamentais da Constituição, ou seja, do princípio da dignidade da pessoa humana, do direito à vida, da proibição da tortura ou de tratamento desumano ou degradante e do direito à segurança.

É imperiosa a punição penal para crimes contra a humanidade cometidos durante o período da ditadura brasileira, pois quando se trata de crimes contra a humanidade, não é possível a anistia e a prescrição, havendo a primazia do direito penal internacional sobre o direito local em especial quando o país faz parte do sistema internacional de Justiça, como é o caso do Brasil.

Nesse sentido, os crimes contra a humanidade cometidos durante o período da ditadura militar são imprescritíveis, não sendo passível a anistia.

Não haveria ainda a conexão entre os crimes políticos e os crimes comuns praticados durante a ditadura militar contra os seus opositores, tendo em vista que a conexão somente pode ser reconhecida nas hipóteses de crimes comuns e crimes políticos praticados pelos agentes repressivos e mandantes do governo.

Nesse caso, a conexão somente poderia ser reconhecida nas hipóteses de crimes políticos e crimes comuns praticados pela mesma pessoa em concurso material ou formal, ou por diversas pessoas em co – autoria. Assim, a lei da anistia somente abrangeria os autores de crimes políticos ou contra a segurança nacional e os crimes comuns a ele ligados teria que haver uma comunhão de objetivos, e não houve comunhão de propósitos entre os agentes de um e nem de outro lado.

Os agentes públicos que torturaram, violentaram sexualmente e mataram os opositores políticos no período de 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 não praticaram nenhum dos crimes políticos previstos nos três diplomas legais que definiam à época os crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social previstos no Decreto – Lei n. 314 de 13/03/1967, o Decreto – Lei n. 898 de 29/09/1969 e a Lei n. 6.620 de 17/12/1078, pelo fato de que não atentaram contra a ordem política e nacional e sim, praticaram crimes comuns contra os opositores do regime que, em sua mentalidade, colocariam em perigo a ordem política e a segurança do Estado.

Os considerados opositores do regime militar não agiam contra aqueles que os torturavam e mataram, mas sim lutavam contra uma ordem política vigente no país naquele momento, ou seja, queriam derrubar o regime militar e ditatorial e instaurar a democracia.

Nesse sentido, a anistia teria por objeto somente os crimes comuns cometidos pelos mesmos autores dos crimes políticos não abrangendo os agentes públicos que, durante o regime militar, praticaram crimes comuns contra os opositores ao regime militar. Agentes públicos que, cabe ressaltar, são pagos pelo próprio povo com o arrecadado com os impostos.

O julgamento sobre a Lei da Anistia teve início no dia 28 de abril de 2010 com o voto do relator o Ministro Eros Grau se manifestando pelo não provimento da ADPF n. 153 diante da impossibilidade de revisão da lei sancionada me 1979.

No dia 29 de abril de 2010, o posicionamento de Eros Grau foi acompanhado pelos ministros Carmen Lúcia, Cézar Peluso, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio e Celso de Mello. Somente votaram favoravelmente à ADPF n. 153 os Ministros Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Britto.

O voto do Ministro Eros Grau rejeitou os argumentos apresentados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pois a Lei da Anistia teria perdoado os crimes cometidos por militantes e militares durante a luta contra a ditadura e após o golpe de 1964, sendo cobertos os atos praticados entre o período de 2 de setembro de 1964 e 15 de agosto de 1979, além de afirmar que somente o Poder Legislativo estaria autorizado a rever a Lei da Anistia.

Porém, não se trata propriamente de rever e reescrever a Lei da Anistia e sim interpretá-la de acordo com a Constituição Federal, preservando os direitos fundamentais, e, afastando a aplicabilidade da Lei da Anistia aos crimes comuns cometidos por agentes públicos por se tratarem de crimes contra a humanidade e portanto, imprescritíveis e não passíveis de anistia. Trata-se, portanto, de respeitar a Constituição Federal e os tratados internacionais sobre direitos humanos.

Já o Ministro Celso de Mello primeiramente fez uma construção histórica do período militar iniciado com o golpe de 1.964 e posteriormente com os atos institucionais que o seguiram rompendo com a Constituição de 1946 e, posteriormente sustentou que não haveria obstáculos legais a que os crimes comuns relacionados aos crimes políticos fossem alvo da Lei da Anistia, pois, segundo ele, no sistema jurídico brasileiro não haveria previsão de punição para os crimes de tortura cometidos naquele período, sendo imprescritíveis e insusceptíveis de anistia após a Constituição Federal de 1988.

O Ministro Gilmar Mendes retomou o voto de Eros Grau na qual sustentou que, sendo a anistia geral e irrestrita e mais ainda, sendo ela um ato eminentemente político caberia somente ao Congresso Nacional revisá-la. Ainda sustentou que a discussão sobre a lei da anistia seria meramente acadêmica e de pouca aplicabilidade prática, tendo em vista que os crimes cometidos durante a ditadura já estariam prescritos.

Tal posicionamento foi seguido pelo Ministro Marco Aurélio no sentido de que, além de tal discussão ser meramente acadêmica, a anistia seria um ato de amor e de perdão, baseada na busca de um convívio pacífico entre os cidadãos. Para ele, não haveria motivo nem mesmo para o julgamento da ação, pois não existiria controvérsia jurídica no caso em questão já que a anistia foi um mal necessário e era uma página virada.

O voto do Ministro Cézar Peluso, presidente da Corte, pela improcedência da ação foi baseado no sentido de ser a Lei da Anistia ampla, abrangendo tanto os crimes cometidos pelos opositores do regime e contra os opositores do regime e, portanto, não se trataria de auto – anistia.

Para os Ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto, votos vencidos no julgamento, os crimes políticos praticados pelos opositores do regime militar e os crimes comuns praticados pelos agentes públicos não poderiam ser igualados em nenhuma hipótese e por isso os agentes estatais não deveriam ser beneficiados pela Lei da Anistia, ou seja, os crimes qualificados como hediondos, isto é, os crimes contra a humanidade, como a tortura, o homicídio e o desaparecimento de pessoas seriam imprescritíveis e não estariam cobertos pela Lei da Anistia.

Porém, lamentavelmente o Supremo Tribunal Federal não cumpriu o papel de salvaguardar a Constituição Federal e os princípios e preceitos fundamentais nela imanentes, acobertando a impunidade dos atos de tortura durante o regime militar.

O julgamento da ADPF n. 153 rejeitando o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil para a punição dos atos de tortura durante o regime militar teve repercussão externa, não agradando a cúpula das Nações Unidas, tendo em vista que os outros países latino – americanos revisaram a aplicação de suas leis sobre a anistia e puniram aqueles que cometeram crimes durante suas ditaduras.

Tal julgamento traz a sensação de impunidade dos crimes comuns cometidos no período ditatorial e representa a impossibilidade de abertura dos arquivos políticos para a descoberta da identidade dos agentes públicos criminosos, representando mais que um desrespeito um retrocesso social e democrático.


3. A NECESSIDADE DE ABERTURA DOS CANAIS DEMOCRÁTICOS

A abertura dos arquivos políticos oriundos da ditadura e a punição dos crimes contra a humanidade cometidos nesse período representam a efetividade do direito à justiça, à vida, à dignidade da pessoa humana, à memória e à verdade, dando caráter público à memória dos atos violentos praticados pelo Estado e punindo os agentes públicos criminosos.

A Lei da Anistia, sendo um ato político, infelizmente negou o caráter público aos atos violentos do estado, maculando a democracia e dando a ela resquícios autoritários marcados pela tortura e execuções de cunho arbitrário.

O paradigma jurídico do Estado Democrático de Direito configura a alternativa de superação do "Welfare State", do Estado de Bem Estar Social.

No Brasil, a Constituição de 1.988 [01], em seu artigo primeiro, expressamente demonstrou a adoção deste paradigma jurídico como modelo de Estado, marcando o caráter de ruptura com as ordens constitucionais anteriores.

Contudo, a transformação do presente depende do conhecimento do passado e do reconhecimento de como esta herança se manifesta e é avaliada nos dias atuais. E o passado da democracia brasileira é autoritário.

A decisão do Supremo Tribunal Federal representa o esquecimento das violações dos direitos humanos ocorridos durante a ditadura. A contribuição da justiça para a reparação dos crimes cometidos no passado e de busca da abertura dos arquivos políticos infelizmente foi nula demonstrando um retrocesso social e uma incapacidade do país em lidar com o seu passado.

Como haver a abertura dos canais participativos necessária em um Estado Democrático de Direito com a manutenção da impunidade e da ocultação das identidades dos agentes públicos que cometeram crimes contra os direitos humanos? O desarquivamento dos arquivos da ditadura contribuiria para a construção da memória política de nosso país e a punição dos agentes políticos recomporia a dignidade do Estado perante outras nações.

A polícia da Argentina prendeu nesta terça-feira (23/3) o ex-oficial naval Carlos Galian, conhecido pelo apelido de Peter Ball, que era considerado elemento-chave durante a ditadura militar no país (1976-1983).Ele é acusado de mais de 600 crimes de violação de direitos humanos. Galian era um dos homens de confiança do comando do centro de detenção clandestino que funcionava na Escola de Mecânica da Marinha (ESMA). [02]

Nesse passo, o aperfeiçoamento da democracia inevitavelmente percorre uma crise, pois a modificação do presente depende de uma reformulação do passado, de maneira que, no campo democrático o poder seja realmente legitimado pelo povo e haja a ampliação dos elementos mínimos do que seria um regime democrático [03].

A rejeição do pedido da Ordem dos Advogados do Brasil no julgamento da ADPF n. 153 representa além da impunidade, um retrocesso, proporcionando uma reflexão sobre o próprio conceito de democracia.

Em suma, é necessário repensar a concepção do que seria um método democrático através da substituição do antigo modelo por um novo mais complexo, incorporando modos distintos de realização da soberania popular, oriunda da co – existência de elementos participativos e representativos [04]. Aliás, no paradigma democrático, o Estado é essencialmente cooperativo.

Contudo, a decisão do Supremo Tribunal Federal representa um obstáculo à efetivação de institutos participativos e à abertura dos canais democráticos, tendo em vista que, para reconstruir um Estado efetivamente preocupado em efetivar o princípio democrático e os direitos fundamentais seria necessário que o país reformulasse o seu passado de maneira ao que ocorre na Argentina e em outros países latino americanos em termos de investigações contra os responsáveis por torturas nas ditaduras.

O próprio conceito de democracia consiste em governo em favor da maioria, ou seja, na manutenção de uma unidade entre o sujeito e o objeto do poder político, ou seja, um Estado Democrático de Direito implica em transparência política.

Ademais, implica em um não reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da preservação dos direitos humanos e nem da importância do povo para a construção de um Estado Democrático, tendo em vista que as vítimas da ditadura militar queriam romper com a ordem política existente naquele período.

Portanto, é imprescindível reconhecer a importância da participação popular, a atuação dos chamados "atores sociais", para a reconstrução de um Estado Democrático.

Ademais, para Canotilho, a democracia deve ser encarada como um processo dinâmico inerente a uma sociedade mais aberta e mais ativa de modo a propiciar aos cidadãos, em condições de igualdade, maior participação política. Para ele, o processo de democratização deveria ser extensivo a diferentes aspectos da vida econômica, social e cultural, como maneira de atingir a "democratização da democracia" [05].

Uma Constituição democrática busca resguardar os princípios fundamentais dos Direitos Humanos, assim como cada tipo de Constituição em seu Estado, resguarda esses mesmos direitos a sua forma. A Constituição Liberal aplicará seus conceitos dentro de seus parâmetros, as Constituições socialistas dentro de outros, não se pode falar imutabilidade. É preciso observar, quanto à aplicação dessas, as inlfuências históricas, culturais, econômicas, nacionais, de cada região, ainda que a constituição seja a mesma ou siga o mesmo modelo adotada em vários lugares.Essa forma de constitucionalização dos Direitos Humanos é uma forma global de ser apreciada cada natureza e história de constituição. É a chamada perspectiva internacionalista dos direitos humanos [06].

A Constituição democrática, que pensamos, deve se aproximar de um texto que reduza seus princípios àqueles considerados universais, somados a princípios regionais, desde que não inibidores da evolução de modelos locais, principalmente no que diz respeito ao estabelecimento de modelos sócio-econômicos pré-fabricados pelos conglomerados econômicos mundiais. [07]

Infelizmente, a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF n. 153 apenas comprova que em nosso país há entraves à consolidação das instituições democráticas, e que a experiência constitucional brasileira revela um sistema econômico excludente e perverso e autoritário, na qual há ainda a predominância de uma classe dominante elitista, que concentra riquezas e obstaculariza as reformas sociais.

Este regime democrático deve criar condições institucionais para viabilizar a cidadania plena e coletiva, propiciando nova conotação às liberdades públicas, em ambiente de segurança social, compreendendo o exercício dos direitos individuais interdependentes dos direitos sociais, de forma a concretizar os princípios da igualdade, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, da conciliação dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, da ausência de preconceitos e do pluralismo ideológico, étnico e cultural, como valores supremos de uma sociedade fraterna, livre, justa e solidária. [08]

Para Jerzy Macków [09] são fatores que prejudicam a democracia no Estado de Direito contra corrupção na política e na economia, perda do caráter normativo da Constituição, controle da mídia, como forma de prejudicar a oposição e firmar o controle político dos dirigentes.

Contudo, segundo Rodolfo Viana Pereira [10], "o conceito de crise deve ser associado a uma funcionalidade dinamizadora, a um momento que funda a necessidade de reflexão, abrindo-se a possibilidade de readaptação, de reforma, de rompimento". E essa situação de descaso com os direitos humanos e com o respeito à memória política e democrática do país deve ser encarado como uma mola propulsora de legitimação popular.

Nesse passo, é necessária a existência de uma co-participação da sociedade civil no palco político, resgatando a democracia participativa direta, com a abertura do Estado à participação popular, com a reconstrução de um modelo democrático mais compreensivo e aberto, se ajustando à sociedade contemporânea e ao verdadeiro Estado Democrático que é cooperativo, negocial, sempre à luz do interesse público.

Jürgen Habermas [11] atribui um papel central à linguagem no processo de formação da opinião e da vontade dos cidadãos. Tal teoria se desenvolve no interior de um Estado Democrático de Direito que se pressupõem a existência de um espaço público não restrito ao âmbito estatal, de uma comunidade de homens livres e iguais capazes de criar as leis que os regem e onde os próprios envolvidos têm de entrar em acordo, prevalecendo a força do melhor argumento.

Nesse passo, a legitimidade seria uma condição da força normativa do direito, transferindo o problema da realização dos direitos, que possui cerne positivista, para se tornar um problema de legitimação. Para isso, Habermas propõe um novo paradigma para o direito, denominado ‘procedimentalismo’, na qual o direito gerado através do discurso democrático pode transformar a realidade, de maneira a diminuir as tensões sociais que existem.

Para Habermas, a teoria do Direito, sendo apoiada na Teoria do Discurso necessita sair da filosofia política e do direito e se expandir, ocasionando a reflexão sobre a possibilidade da construção de uma sociedade realmente pautada na justiça e na democracia.

Portanto, as tradições liberais e republicanas vivenciam esses conflitos em que passa a ser cobrado do Estado o respeito aos direitos fundamentais e a própria democracia, ou seja, exige-se o comprometimento do Estado em realmente assegurar o respeito aos direitos humanos, sociais, e o próprio caráter democrático com a necessidade de implementar palcos de discussões.

Partindo, desse pressuposto, pode ser considerado como um marco da política moderna a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1.789 sendo ela um fruto das tradições políticas modernas, a liberal e a republicana, na qual são especificados diversos princípios e direitos, como a liberdade, a igualdade, a propriedade, etc, objetivos da sociedade política, direitos pré – políticos segundo Locke, dando à sociedade civil a incumbência de garantir e conservar os direitos naturais do homem.

Isaiah Berlin diante da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789 afirmou com as seguintes palavras, por Marcelo Cattoni de Oliveira:

A relação entre democracia e liberdade individual é bem mais tênue do que pareceu a muitos defensores de ambas. O desejo de ser governado por mim mesmo ou, pelo menos, de participar do processo através do qual minha vida deve ser controlada, pode ser um desejo tão profundo quanto o de uma área livre para a ação, e talvez historicamente mais antigo. Mas não é um desejo relativo à mesma coisa. Na realidade, é tão diferente, que levou, em última instância, ao grande conflito de ideologias que domina nosso mundo. Pois é isto – a concepção "positiva" de liberdade: não liberdade de, mas liberdade para – de levar uma forma de vida prescrita – que os adeptos do conceito de liberdade "negativa" imaginam seja, algumas vezes, nada mais do que ilusório disfarce para a tirania brutal. [12]

Nesse passo, a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF n. 153 é inconstitucional, pois apesar da tortura não estar prevista expressamente antes da Constituição Federal de 1988, a preservação dos direitos humanos é inerente a qualquer nação e portanto, mesmo não estando expresso, a violação ao direito à vida, à integridade física já representaria um crime e portanto, caberia punição.

Ademais, uma decisão como essa incentiva o afastamento da política pelos cidadãos, sendo que tais casos estão associados ao descrédito de que o ambiente político é o lugar da corrupção, da barbárie, da busca incessante pelo poder, da imoralidade, das promessas não cumpridas, gerando a repulsa e a desconfiança do cidadão.

Alcançar o equilíbrio entre os direitos de cidadania e a preservação dos direitos humanos é de vital importância para uma democracia legítima.

Friedrich Müller analisa o conceito de povo sob dois ângulos: um, o povo destinatário das prestações civilizatórias do Estado e o povo participante, ou seja, o povo ativo que faz a diferença, que exerce o seu papel de cidadão, se engajando politicamente de forma consciente e ativa.

A função do "povo", que um Estado invoca, consiste sempre em legitimá-lo. A democracia é dispositivo de normas especialmente exigente, que diz respeito a todas as pessoas no seu âmbito de "demos" de categorias distintas (enquanto povo ativo, povo como instância de atribuição ou ainda povo – destinatário) e graus distintos. A distinção entre direitos de cidadania e direitos humanos não é apenas diferencial: ela é relevante com vistas ao sistema. Não somente as liberdades civis, mas também os direitos humanos enquanto realizados são imprescindíveis para uma democracia legítima. [13]

Nesse sentido, somente com a ampliação da participação popular e o cumprimento das obrigações afiançadas entre o Estado e o povo com a preservação de seus direitos, efetivamente ter-se-á a positividade da democracia. Tal decisão apesar de representar um retrocesso, motiva os cidadãos a se fortalecerem e se transformarem em um povo legitimador.

Sobre a autora
Gabriela Soares Balestero

Advogada militante graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestranda em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, especialista em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pós Graduanda em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Cidade: Cachoeira de Minas/ Pouso Alegre, Estado de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BALESTERO, Gabriela Soares. A democracia aprisionada nos porões da ditadura: a ADPF 153. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2498, 4 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14802. Acesso em: 12 nov. 2024.

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