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A possibilidade de corte do fornecimento de energia elétrica por débito pretérito (estimado em decorrência de fraude no consumo).

Uma tentativa de reversão da jurisprudência

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Agenda 11/05/2010 às 00:00

O concessionário tem direito de suspender o fornecimento de energia elétrica, pouco importando se a inadimplência decorre de débito novo (fatura do último mês) ou débito antigo (consumo não faturado em razão de fraude).

RESUMO

O concessionário tem direito de proceder à suspensão do fornecimento de energia elétrica, pouco importando se a inadimplência decorre de débito novo (relativo à fatura do último mês de consumo) ou débito antigo (decorrente de apuração de consumo não faturado em razão de fraude). As Leis 8.987/95 e Lei 9.427/92 previram que o usuário do serviço assume uma contraprestação financeira, cuja não satisfação autoriza o corte do fornecimento de energia elétrica. Ao estatuírem o direito à suspensão do serviço na hipótese de inadimplência, não fizeram distinção em relação à natureza do débito que autoriza o corte, não podendo o intérprete (julgador) restringir o alcance dos dispositivos legais. O contrato que o usuário assina com a concessionária, termina por gerar o vínculo obrigacional que autoriza esta a exigir o cumprimento de sua contraprestação. A atual jurisprudência do STJ, que faz distinção entre débito novo (relativo à fatura do último mês de consumo) e débito antigo (decorrente de apuração de consumo não faturado em razão de fraude), admitindo o corte de energia na primeira situação e impedindo-o na segunda, desconsidera o sistema integrado de normas que regulam o setor de distribuição de energia no país, além de estimular o cometimento de crimes e interferir no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão.

PALAVRAS-CHAVE: Corte. Energia elétrica. Débito. Pretérito. Fraude. Consumo. Impactos. Decisões. Judiciais. Economia. Direitos. Fundamentais. Concessionário. Contrato. Medição. Faturamento.


1. Introdução

O presente estudo procura demonstrar a inexistência de fundamentação suficiente à preservação da jurisprudência que impede o corte de energia elétrica, em caso de fraude na medição do consumo. O entendimento atual no STJ é de que "o corte de energia elétrica pressupõe o inadimplemento de conta regular, relativa ao mês do consumo, sendo inviável, pois, a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos, em relação aos quais existe demanda judicial ainda pendente de julgamento, devendo a companhia utilizar-se dos meios ordinários de cobrança" [01]. Como o preposto da concessionária (empresa distribuidora de energia) faz a "revisão do faturamento" (recuperação do consumo não faturado), quando constata fraude no medidor (ou de outra natureza), o débito resultante do auto de infração sempre alcança períodos (faturas mensais) anteriores à data de constatação da irregularidade [02]. Embora exista autorização em norma regulamentar [03] e legal [04] para a suspensão imediata do fornecimento nesse caso, na prática o corte se torna inviável diante da posição do STJ.

Sei que parece afoiteza querer confrontar uma jurisprudência que vem se consolidando a cada novo julgado, inclusive com pronunciamentos de diferentes órgãos fracionários da Corte Superior. Mas permaneço com a resoluta idéia de que os julgadores, nessa matéria, elaboraram premissas interpretativas equivocadas e de que a permanência dessa diretriz jurisprudencial além de encorajar o cometimento de fraudes, onera e põe em risco a prestação do serviço (de distribuição de energia elétrica) para toda a coletividade. A prevalecer a tese (por enquanto vencedora) de que não se pode proceder ao corte da energia em caso de fraude, será mais vantajoso para qualquer cidadão ser desonesto e fraudar o consumo, do que ser honesto e eventualmente se tornar inadimplente. Isso porque o fraudador pode continuar recebendo energia sem efetuar o pagamento da conta, enquanto que o cidadão honesto pode ter suspenso o fornecimento sempre que não pagá-la. O que é pior é que o fraudador, além de ter o fornecimento de luz religado por força de decisão judicial, ainda poderá eventualmente ser indenizado a título de danos morais [05].

Acredito que essa jurisprudência que não permite o corte de energia por débitos antigos é o típico caso de intervenção judicial que não atenta para as repercussões econômicas e termina por atingir um determinado setor, prejudicando o seu desenvolvimento. Como se sabe, uma interferência judicial desarrazoada pode impactar negativamente as relações comerciais, repercutindo no desenvolvimento, visto que interfere na expectativa dos agentes econômicos. As partes que se envolvem em um negócio jurídico têm expectativas quanto ao cumprimento das obrigações recíprocas assumidas. Essa é uma das funções do contrato, de assegurar segurança jurídica quanto à satisfação das prestações. Uma indevida ou exagerada interferência judicial posterior nessas relações, desonerando uma das partes de sua obrigação originária ou retirando de uma delas um direito que lhe estava assegurado no momento da contratação, acaba por eliminar essa função dos contratos, aumentando os riscos e custos da atividade econômica. Se as concessionárias de energia elétrica tinham a previsibilidade de poder realizar o corte em casos de fraude, quando se envolveram originalmente no negócio, o impedimento posterior pode prejudicar o modelo de distribuição de energia elétrica, já que aumenta os riscos da atividade. Aumentando os riscos da atividade e, portanto, interferindo no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, a consequência última pode ser o comprometimento do próprio atendimento da demanda dos consumidores que pagam suas contas de luz em dia.

A natureza social do serviço de distribuição deve ser entendida no sentido de que a energia elétrica é um bem destinado a toda comunidade, e não somente a uma parcela dela, e que como um bem finito, envolve a racionalização do custo financeiro de sua geração e distribuição. Os legisladores levaram isso em consideração, no momento de definir as políticas públicas pertinentes à definição dos agentes provedores, a forma de fazer a distribuição, com que custos e pagos por quem [06]. O setor elétrico foi objeto de uma reformulação estrutural, visando à remoção de obstáculos ao seu desenvolvimento, com a quebra do monopólio estatal. Uma descabida intervenção judicial nesse domínio pode ter o efeito de interferir no seu equilíbrio, notadamente na equação dos custos da distribuição de energia. A perspectiva para o fornecedor de energia elétrica, que decorre da relação contratual estabelecida com o consumidor, de poder realizar o corte do fornecimento em caso de inadimplemento (ainda com mais razão quando o não cumprimento da obrigação decorre de fraude) é uma forma de garantir a continuidade, qualidade e eficiência da prestação do serviço para toda a sociedade. Essa garantia foi dada legalmente ao distribuidor [07] sobretudo para possibilitar a diminuição dos custos de sua atividade e, por decorrência, a modicidade das tarifas do serviço. Portanto, impedir o prestador do serviço de realizar o corte, mesmo quando constatada a fraude, a par de gerar insegurança jurídica, estimular o cometimento de fraudes e interferir no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, também é medida socialmente injusta.

Por todas essas razões, tenho a ousadia de me manifestar contrário à jurisprudência atual do STJ, na esperança de que possa ser revista, da mesma forma como já ocorreu anteriormente em relação a outros temas de interesse nacional que mereceram a atenção da Corte superior de Justiça. Não é demasiado lembrar que, mesmo em relação ao simples inadimplemento (de conta relativa à última medição do consumo), o STJ começou proibindo o corte de energia, mas depois mudou de posição [08]. A expressividade das normas contidas no art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95 (Lei das concessões de serviços públicos) e art. 17 da Lei 9.427/96 (Lei que instituiu a ANEEL e disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica), que permitem o corte do fornecimento da energia em caso de inadimplemento (sem fazer distinção quanto a débito pretérito ou relativo à fatura do último mês de medição), certamente vão forçar o Tribunal Superior a rever novamente sua posição. Diga-se, aliás, que já se pode pressentir uma tendência à alteração jurisprudencial. Um primeiro sinal nesse caminho foi dado recentemente (no dia 07.10.09) pelo Presidente do STJ, Min. Cesar Asfor Rocha, ao deferir suspensão dos efeitos de liminar que havia sido concedida em ação civil pública, esta ajuizada com o objetivo de determinar o religamento da energia para consumidores que tiveram o fornecimento suspenso em decorrência de fraude ou violação do medidor de consumo [09]. Embora o exame de pedido de suspensão de liminar revista-se mais propriamente de um caráter político do que técnico-jurídico - nele é apreciada a repercussão da decisão impugnada em termos do "interesse público" ou de risco de lesão à ordem, segurança ou economia pública [10]-, é fato que o Ministro Presidente não escondeu seu entendimento de que, em se tratando de inadimplência decorrente de fraude em medidores de consumo, ainda com mais razão se justifica o corte, para garantir a viabilidade do modelo do setor elétrico e evitar prejuízos para toda a sociedade [11].

No presente trabalho, foi feita extensa pesquisa na jurisprudência do STJ sobre o tema do corte de energia por débito pretérito, começando pelos acórdãos mais antigos (que admitiam o corte em caso de fraude), mostrando depois que a tese ao impedimento se desenvolveu sem fundamentos jurídicos convincentes ou de maior solidez e, finalmente, desembocando na mencionada decisão (mais recente) do Ministro Presidente, que parece potencialmente capaz de fazer retornar o entendimento da Corte ao seu estágio inicial. Na tentativa de entender mais profundamente os fundamentos jurídicos invocados para obstaculizar o corte de energia em caso de fraude, descemos à análise dos acórdãos que originaram essa jurisprudência. O estudo chega à conclusão de que as decisões do tribunal superior não satisfazem em termos argumentativos. Ainda no âmbito do estudo jurisprudencial, examinamos algumas decisões sobre o pagamento de dano moral por corte de energia ao consumidor que frauda o consumo, mostrando a contradição em que o STJ se envolveu, de ter que reconhecer a ilicitude do corte nessa hipótese e, ao mesmo tempo, ser obrigado a afastar direito à indenização moral.

No aspecto mais doutrinário, fazemos considerações sobre os estudos que propugnam uma maior preocupação dos magistrados com os reflexos econômicos de suas decisões, que demonstram que esse tipo de abordagem está em consonância com as teorias hermenêuticas que buscam superar a exagerada discricionariedade judicial. Dentro dos objetivos acadêmicos da obra, ainda examinamos as correntes que se opunham ao corte por inadimplência através do enquadramento do serviço de fornecimento de energia como direito social fundamental. Nesse ponto, o trabalho, como se disse, tem finalidade mais acadêmica do que objetivos práticos, já que as próprias cortes judiciárias afastaram a concepção de que o corte por inadimplência seria suficiente a violar direitos fundamentais, notadamente o princípio da dignidade da pessoa humana.

Em outra parte do estudo, examinamos as normas legais que tratam do assunto (art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95 e art. 17 da Lei 9.427/96) e demonstramos que o legislador não fez distinção quanto ao corte de energia por inadimplência, daí que não poderia o intérprete (julgador) impedi-lo em caso de débito pretérito e autorizá-lo apenas quando referente à fatura do último mês de consumo. Mostramos que existe norma regulamentar que também autoriza o corte em caso de débito decorrente de fraude e que o procedimento nela previsto para estimar o consumo não apurado não impede a defesa do usuário, o qual inclusive pode solicitar a realização de perícia por órgão metrológico.

A conclusão do estudo como um todo é a de que os acórdãos atuais do STJ que impedem o corte da energia elétrica a consumidores que fraudam ou violam medidores de consumo foram elaborados em torno de premissas equivocadas. Uma alteração da atual jurisprudência é desejável, tendo em vista os efeitos sociais maléficos que ela vem gerando. Acreditamos que uma mudança de rumo jurisprudencial não seja tão difícil em relação a essa matéria, sabendo-se que os integrantes da Corte Superior têm demonstrado sensibilidade às repercussões de suas decisões e, em função disso, têm alterado até mesmo enunciados sumulados.


2. A questão do impacto das decisões judiciais na economia

Não é de hoje a discussão sobre o impacto econômico das decisões judiciais. Propiciar decisões judiciais mais seguras, visando à distribuição da Justiça e estabilidade das relações sociais, é um objetivo bem antigo e perseguido constantemente. A busca pela segurança jurídica, a fim de reduzir as incertezas provocadas pela atuação judiciária, que pode levar a decisões predominantemente políticas e ideológicas ou exageradamente impregnadas de subjetivismos, sempre foi, aliás, uma preocupação constante da teoria do direito. O surgimento de novas teorias hermenêuticas, em substituição ao positivismo, embora fomentado pela necessidade de se encontrar outras "fontes de direito" (além do texto da lei) e, dessa forma, impregnar as decisões de um maior conteúdo moral [12], propiciando um maior grau de justeza, também foi impulsionado pela necessidade de se evitar "decisionismos" decorrente do "poder discricionário" do Juiz, com o qual o positivismo se contentava como (único) recurso para solução de casos complexos.

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No estágio atual do desenvolvimento social, a discussão sobre os efeitos das decisões judiciais sobre a economia ganha ainda mais contorno. A busca pela segurança jurídica a fim de reduzir as incertezas nas relações contratuais passou a ser um mantra de economistas e representantes do empresariado e, talvez por decorrência, preocupação de renomados juristas e pensadores do Direito. De fato, existe uma constatação científica de que a atividade do Judiciário influencia diretamente a economia, no sentido de que, quanto maior a imparcialidade e previsibilidade (e, portanto, confiança no sistema), maior o desenvolvimento econômico e social. As transações e negócios econômicos são regulados por meio de contratos, que funcionam como fórmula para alocação de riscos entre os agentes econômicos. Uma indevida ou exagerada interferência judicial posterior nessas relações acaba por eliminar essa função dos contratos, aumentando os riscos e custos da atividade econômica. Como a essência dos contratos é a assunção (promessa) de obrigações recíprocas (entre os contratantes), para possibilitar o pleno potencial das trocas, uma ruptura do trato inicial (ainda que em parte) por meio da intervenção judicial elimina a previsibilidade que um dos contratantes tinha ao envolver-se originalmente no negócio. Essa possibilidade repercute no desenvolvimento econômico, já que aumenta os riscos da atividade de um dos contratantes. Quanto maior o grau de previsibilidade e estabilidade nas relações contratuais, no sentido de que as partes cumpram com suas promessas (voluntariamente ou forçadas), também será proporcionalmente maior o número de investimentos e negócios a serem realizados. Se, ao contrário, o grau de interferência judicial, no sentido de alteração das cláusulas contratuais, desobrigando uma das partes da prestação originalmente assumida, é exagerado ou ocorre por opções pessoais dos juízes, numa avaliação subjetiva e calcada em elementos ideológicos na interpretação das normas vigentes, tal situação pode efetivamente aumentar os custos associados a um determinado setor da economia, prejudicando o desenvolvimento econômico [13].

A falta de garantias ou previsibilidade quanto ao efetivo cumprimento das obrigações contratuais pode prejudicar ainda mais acentuadamente os investimentos de longo prazo. A atividade empresarial em determinados setores da economia, a exemplo de produção e distribuição de energia, telecomunicações, indústria de medicamentos, tecnologia da informação e atividade bancária (só para citar alguns), exige profunda especialização, investimento maciço e planejamento de longo prazo. Estudos recentes demonstram que a qualidade do sistema Judiciário é um fator preponderante no momento de decidir pela alocação de recursos para empreendimentos nessas áreas. Um sistema judicial imparcial e eficiente incentiva os investidores a atuarem de maneira coordenada na produção de bens, fazendo investimentos e planejando atuação a longo prazo, já que ficam eliminados (ou atenuados) os riscos associados a futuras rupturas das promessas (contratos) originalmente celebrados (muitas vezes contratos de concessão com o Poder Público).

A exigência de previsibilidade nos negócios aumenta em razão da competitividade empresarial cada vez maior, proporcionada pelo fenômeno da globalização. Esse processo, explica Castelar Pinheiro [14], provoca uma maior exigência por regulamentação, acentuando a dependência do contrato como instrumento regulador das transações transnacionais e evidenciando ainda mais a relação entre direito e economia. A globalização exige uma maior integração entre as nações, no que tange às trocas e transações econômicas, e aqueles países que não dispuserem de sistemas e instituições políticas eficientes, no sentido de garantir a regularidade dessas operações comerciais, distanciam-se e perdem espaço nesse processo global, deixando de produzir riquezas e promover o desenvolvimento social e econômico. Em outras palavras, o fortalecimento das instituições internas (aí incluído o sistema Judiciário) é condição indispensável para que os países (em especial aqueles com economias menos robustas) participem como atores integrados ao processo de globalização, para que possam se beneficiar dos efeitos da economia em escala mundial. Em outras palavras, o modelo globalizante exige dos países a melhoria e reformas de suas instituições políticas, sob pena de não integração na economia mundial. Como afirma Castells, a competitividade na nova economia global parece depender muito da capacidade política das instituições nacionais, para impulsionar a estratégia de crescimento de um país frente aos outros, sendo premente a necessidade das reformas necessárias para obter a eficiência do sistema judicial [15].

O fato é que, no mundo atual, caracterizado pela rapidez nas informações e trocas comerciais (proporcionadas por redes de comunicação informatizadas), a eficiência dos sistemas judiciários, para que funcionem de forma imparcial, segura e eficiente, é uma exigência social cada vez maior. Os sistemas políticos internos das nações (sobretudo as menos desenvolvidas) devem procurar acompanhar as mudanças que se dão a nível mundial, como requisito essencial para o desenvolvimento econômico. Os sistemas judiciários, nesse sentido, têm que proporcionar, para não servirem como empecilho ao desenvolvimento econômico, maior confiabilidade e previsibilidade.

O problema da imprevisibilidade das decisões judiciais é mais acentuado no Brasil, onde a constância de decisões contraditórias parece abalar a confiança dos jurisdicionados no sistema político-judiciário. O "ativismo judicial" recente, verificado em decisões da Suprema Corte e mesmo em outras instâncias inferiores, parece ser hoje uma das marcas [16] do nosso Judiciário (ao lado da morosidade). Nos últimos anos, "uma persistente crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judiciário nessa direção, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem omissões e, por vezes, inovam na ordem jurídica, com caráter normativo geral" [17]. Se o "ativismo" judiciário tem um lado positivo, já que a atitude proativa dos juízes, na determinação de direitos que se encontram apenas em estado latente ou de forma nem sempre clara na Constituição e nas leis, resulta na concretização de políticas públicas e consagração de "promessas não cumpridas de modernidade", não se pode deixar de perceber o risco dessa postura judicial, pelo menos quanto à expectativa em relação à titularidade de direitos que partes de um processo judicial possam ter (ou não), em determinadas circunstâncias.

Somado a isso, ainda temos o problema da excessiva "judicialização das relações sociais", fenômeno que revela a transferência do poder político e decisório para o Judiciário, para resolver questões antes afetas a outras instâncias de poder ou a grupos socialmente organizados. Além da posição claramente ativista que o Judiciário brasileiro tem assumido, em algumas circunstâncias, existe na nossa sociedade uma tendência a se levar todo e qualquer tipo de conflito para ser resolvido por juízes, órgãos que exercem a jurisdição estatal. Segundo Luís Roberto Barroso, essa característica do atual momento político e social brasileiro tem causas múltiplas, algumas revelando uma tendência mundial, mas outras especificamente relacionadas com o nosso modelo institucional. Para ele, a constitucionalização abrangente de direitos, o aumento da demanda por justiça por parte dos cidadãos e a ascensão institucional do Poder Judiciário provocaram essa intensa judicialização das relações políticas e sociais [18]. A constitucionalização abrangente fez com que inúmeras matérias que antes eram deixadas para a legislação inferior fossem içadas à categoria de mandamentos e princípios constitucionais e, na medida em que um direito individual, uma prestação estatal, um fim ou política pública é disciplinado no nível constitucional, abre-se a possibilidade de os interessados ingressarem em juízo a fim de obter, pelas mãos do Judiciário, ações concretas omitidas pelos administradores públicos [19]. Uma vez que a Constituição consagrou tantos direitos, as pessoas redescobriram a cidadania perdida e se conscientizaram em relação aos próprios direitos, o que também funcionou aumentando consideravelmente o número de demandas judiciais. E, por fim, a promulgação da Constituição de 1988, ao atribuir garantias funcionais aos juízes, também promoveu uma reafirmação do Poder Judiciário como poder político. Recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, o Judiciário passou a desempenhar suas funções institucionais com altivez e independência, ocupando o espaço político a ele reservado ao lado do Executivo e do Legislativo. Essa afirmação institucional, obviamente, modificou a relação da sociedade com o Poder Judiciário, que passou a ser visto com mais confiabilidade e como desaguadouro natural dos anseios pela efetividade de direitos [20].

Ainda podemos elencar outros fatores que fomentaram esse fenômeno da demasiada judicialização das relações sociais. Além da criação de novos direitos no texto constitucional, nas últimas décadas houve uma significativa renovação dos serviços judiciários, cujo exemplo maior consistiu na criação dos "Juizados de Pequenas Causas" (depois substituídos pelos Juizados Cíveis), instituídos para funcionar regulados por procedimento simplificado e despojado de formalidades, possibilitando uma maior abertura da ordem processual para a defesa dos interesses individuais e coletivos [21]. Tendo por pano de fundo um procedimento centrado em três aspectos fundamentais - a isenção de taxas e custas, a desnecessidade de representação por advogado e a celeridade processual -, favoreceu a universalização da jurisdição, permitindo o acesso à Justiça de parcelas cada vez maiores da sociedade, em especial dos menos favorecidos pela fortuna, e possibilitando que pequenos litígios que, antes, não eram levados ao conhecimento dos juízes, passassem a fazer parte do dia-a-dia das cortes judiciárias, revelando o efeito do que se convencionou chamar de "litigiosidade contida" [22]. Esses órgãos judiciários especializados, aliados a outras iniciativas de política processual, que vingaram sob a influência das teorias da efetividade do processo e introduziram novos tipos de ações e ampliaram a legitimação para a tutela de interesses, terminaram também por promover a excessiva judicialização dos fatos sociais. Se antes falava-se em "litigiosidade contida", por falta de instrumentos de acesso à Justiça, talvez hoje já se possa perceber uma "litigiosidade desenfreada". A possibilidade de se ingressar em juízo sem qualquer ônus processual inicial ou possibilidade de responsabilização, promove a multiplicidade de lides temerárias [23]. Também a nossa cultura, refratária ou pouco habituada a qualquer outra forma alternativa de solução de disputas, favorece a que toda sorte de conflito termine sendo decidido no Judiciário. A Lei da Arbitragem [24] ainda não se mostrou capaz de popularizar entre nós esse instituto, deixando que possíveis usuários continuem recorrendo à tutela processual estatal para resolver suas controvérsias. "O Poder Judiciário deixou de ser a ultima ratio. Ao invés, é o primeiro passo na resolução de conflitos de interesses que vão desde o pequeno entrevero entre vizinhos até as grandes demandas societárias" [25].

Todo esse conjunto de fatores leva a uma crescente intervenção judiciária na vida dos brasileiros, fazendo com que toda e qualquer matéria, mesmo aquelas originadas de construções sociais mais simples e aparentemente incapazes de gerar conflito, terminem sendo decididas num tribunal. A judicialização excessiva num país de grande extensão territorial com uma complexa organização judiciária, reforçada pela atual tendência ao ativismo judicial, oferece as condições para o surgimento de decisões contraditórias (ainda que em casos idênticos), demasiadamente impregnadas de cunho político e ideológico e sem qualquer respeito aos precedentes e a uma visão integracionista do sistema de normas. Sem que se tenha alguma coerência sistêmica, em termos de segurança jurídica quanto ao resultado das decisões judiciais, tal situação corrói a confiabilidade no Poder Judiciário. As incertezas provocadas pela atuação judiciária, em termos de imprevisibilidade das decisões dos juízes (mesmo em casos semelhantes), arranham a imagem do Poder Judiciário, como alerta Lenio Streck, que cunhou a expressão de "Justiça lotérica" para diagnosticar a profusão de decisões conflitantes e, muitas vezes, sem qualquer possibilidade de harmonização teórico-hermenêutica, que caracteriza o funcionamento do Judiciário brasileiro. Essa prejudicial "criatividade" decisional dos juízes brasileiros, explica o mencionado jusfilósofo, "é causada pela ânsia do juiz de ir além do que diz a lei e fazer prevalecer a sua consciência" [26].

Ora, se é um dos maiores jusfilósofos brasileiros que reconhece a excessiva "subjetivação" de muitos julgados produzidos por tribunais e juízes brasileiros, não é demasiado exigir – como de fato o faz Lenio Streck – uma maior responsabilidade (accountability) dos juízes no momento da fundamentação da decisão, de forma a torná-la mais adequada com a integridade e a coerência do Direito (sistema de leis e a Constituição). Nesse sentido, parece razoável a reclamação de alguns setores produtivos quanto à exigência de decisões mais previsíveis, baseadas nas normas vigentes, evitando decisões alternativas ou predominantemente políticas. Obter decisões judiciais seguras, visando à realização de negócios e investimentos econômicos, é uma reivindicação tão legítima quanto qualquer outra, afinal os princípios relacionados à atividade econômica encontram-se condensados na Constituição Federal [27] e se apóiam na forma econômica capitalista, fundamentados na liberdade da iniciativa privada e apropriação privada dos meios de produção [28]. Reclamar que os magistrados prestem mais atenção às conseqüências econômicas de suas decisões, por conseguinte, equivale de modo indireto a exigir respeito aos princípios e regras que regulam a atividade econômica [29]. Se um dos objetivos da nossa república é a erradicação da pobreza, isso só se faz com desenvolvimento econômico, para suprir as necessidades coletivas de emprego, alimentação, saúde, saneamento e outros serviços públicos essenciais. Se o cumprimento das promessas constitucionais depende do desenvolvimento econômico, o Juiz tem o dever de examinar se sua decisão pode de qualquer forma afetá-lo. Por isso, o magistrado, no momento de decidir um caso, deve estar atento às múltiplas variáveis que o compõem, não podendo se cingir a apenas um único interesse envolvido. Como adverte o Desembargador Rogério Gesta Leal, "é preciso haver uma sensibilização da magistratura brasileira para a complexidade das relações sociais, marcadas hoje por variados fatores. Um tema que aparentemente é jurídico, no sentido de ser tratado e regulado por lei, tem implicações de natureza econômica, social e política. Essas dimensões extra-normativas precisam ser consideradas pelo julgador" [30].

Estudos mostram que, em diversos casos, decisões judiciais podem impactar negativamente as relações econômicas no Brasil, repercutindo no desenvolvimento, visto que interfere na expectativa dos agentes econômicos. Essa realidade justifica que os magistrados devam ter o cuidado, por decorrente de sua responsabilidade funcional de fundamentar adequadamente suas decisões, de examinar detidamente as repercussões econômicas de seus julgados, o que contribui para a integridade e eficiência do sistema e da segurança jurídica. A obtenção de decisões judiciais seguras possibilita negócios e investimentos, diminuindo o "risco jurídico" que os torna pouco atrativos, fazendo com que cumpram sua função social, impulsionando o desenvolvimento. Portanto, nas situações que comportem mais de uma solução plausível, nada impede que o Juiz busque a que seja mais correta à luz dos reflexos econômicos de sua decisão.

É importante deixar claro que, com essa afirmativa, não se está advogando uma "auto-contenção" do Judiciário ou uma volta ao conservadorismo existente antes do processo de redemocratização, quando juízes e tribunais, premidos pela falta de garantias funcionais, atuavam mais à semelhança de um "departamento técnico especializado", sem desempenhar qualquer papel político. Nem tampouco se cuida de pretender um direito de feitio vazio de valores [31], sem qualquer conteúdo, cuja atividade resume-se a chancelar as relações de fato criadas pelos agentes econômicos. Apenas se defende que, "em uma perspectiva de análise econômica do direito, a opção por uma norma e não pela outra, deve se dar a partir da escolha da norma que seja mais eficiente, economicamente. Significa, pois, analisar a demanda sob o aspecto de eficiência. Ao juiz cabe avaliar o impacto que as decisões ocasionarão" [32].

Uma avaliação legal completamente neutra, que desconsidere o fator econômico, é que significa um retrocesso. O que se quer é que o Juiz ou intérprete desperte para a extrema importância que as decisões judiciais representam para o desenvolvimento sócio-econômico do país. O que se pretende é que, para propiciar previsibilidade, estabilidade e integridade (em relação ao sistema normativo), o Juiz tenha também uma perspectiva de análise econômica do direito. Se fatores econômicos estão envolvidos desde a criação e elaboração das leis, porque não se levá-los também em consideração quando se trata de reduzir o texto legal à norma do caso concreto? Não se trata, portanto, "de substituir critérios de justiça por critérios econômicos, mas de perceber que os agentes econômicos mudam as estratégias à medida que a justiça se demonstra ineficiente e a economia injusta" [33].

Claro que, quando se está diante de direitos fundamentais da pessoa humana, ou outros valores constitucionais de maior realce, o critério da eficiência econômica não pode prevalecer. Só poderá prevalecer fator econômico se estiver ligado também a outro princípio constitucional de igual peso, se sua prevalência significar a preservação de outro valor constitucional fundamental. Quando se depara com situações de colisão de princípios, o intérprete deve, à luz dos elementos do caso concreto, proceder a uma ponderação dos valores e interesses em jogo. "Sua decisão deverá levar em conta a norma e os fatos, em uma interação não formalista, apta a produzir a solução justa para o caso concreto, por fundamentos acolhidos pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral" [34].

Analisando a questão sob esse prisma, a consideração aos impactos econômicos da decisão judicial está em consonância com o pós-positivismo e com as teorias hermenêuticas que buscam superar a exagerada discricionariedade judicial. Se o que se quer é evitar a insegurança jurídica, proporcionada pelo subjetivismo decisional, isso significa sem sombra de dúvidas estar em linha de adequação ao pós-positivismo. Se o que se defende é que o Juiz, diante de um caso complexo, faça uma condensação de valores, preocupado com a unificação e integridade do sistema de normas, para formular decisão que evite o risco de "efeitos sistêmicos" na economia, tal proceder se coaduna com as premissas das teorias hermenêuticas pós-positivistas [35].

2.1. Os impactos econômicos no setor elétrico em razão do impedimento judicial ao corte de energia do usuário fraudador

No caso específico do embaraço judicial ao corte de energia elétrica por débito pretérito do usuário que frauda o sistema de medição do consumo, parece não se ter levado em consideração os aspectos econômicos do problema. Se as concessionárias de energia elétrica tinham a previsibilidade de poder realizar o corte em casos de fraude, quando se envolveram originalmente no negócio, o impedimento posterior pode prejudicar o modelo de distribuição de energia elétrica, já que aumenta os riscos da atividade. Aumentando os riscos da atividade e, portanto, interferindo no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão [36], a consequência última pode ser o comprometimento do próprio atendimento da demanda dos consumidores que pagam suas contas de luz em dia.

A natureza social do serviço de distribuição deve ser entendida no sentido de que a energia elétrica é um bem destinado à toda comunidade, e não somente a uma parcela dela, e que como um bem finito, envolve a racionalização do custo financeiro de sua geração e distribuição. Os legisladores levaram isso em consideração, no momento de definir as políticas públicas pertinentes à definição dos agentes provedores, a forma de fazer a distribuição, com que custos e pagos por quem. Como lembra Rogério Gesta Leal, "no que tange à viabilidade econômica destes serviços, não optou a norma constitucional vigente por prever a sua gratuidade universal, como princípio informativo das prestações, até porque isto implicaria impactante resultado no processo da concessão/permissão de tal atividade por parte do Estado, quiçá afastando dela qualquer interesse da iniciativa privada" [37]. Daí que a própria Lei de concessões e permissões vigentes no país (Lei n. 8.987/95) prevê a existência de uma política de tarifa pública remuneratória à prestação dos serviços. A Lei 9.427/96 (que disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica), por sua vez, estabelece que o regime econômico e financeiro da concessão de serviço público de energia elétrica, conforme estabelecido no respectivo contrato, compreende a contraprestação pela execução do serviço, paga pelo consumidor final com tarifas baseadas no serviço pelo preço (art. 14, I).

Como se observa, o regime econômico e financeiro da concessão do serviço de energia elétrica previu a contraprestação do usuário, representada em termos do pagamento de um preço pelo consumo. Para garantia do equilíbrio econômico-financeiro das concessões, as leis específicas (Lei 8.987/95 e Lei 9.427/92) previram que o usuário do serviço assume uma contraprestação financeira [38]. O contrato que assina com a concessionária, termina por gerar o vínculo obrigacional que autoriza esta a exigir o cumprimento de sua contraprestação. Sem a satisfação de sua própria e específica obrigação, prevista em lei e assumida em negócio jurídico contratual, consistente na prestação positiva de realizar o pagamento do preço, o usuário não pode pretender a execução da prestação da outra parte. Em outras palavras, a empresa distribuidora de energia não pode ser compelida a continuar fornecendo o serviço se não recebe a compensação prestacional da outra parte.

Uma descabida intervenção judicial nessa equação pode ter o efeito de interferir no equilíbrio do setor elétrico, notadamente nos custos da distribuição de energia. A perspectiva para o fornecedor de energia elétrica, que decorre da relação contratual estabelecida com o consumidor, de poder realizar o corte do fornecimento em caso de inadimplemento (ainda com mais razão quando o não cumprimento da obrigação decorre de fraude) é uma forma de garantir a continuidade, qualidade e eficiência da prestação do serviço para toda a sociedade. Essa garantia foi dada legalmente ao distribuidor [39] sobretudo para possibilitar a diminuição dos custos de sua atividade e, por decorrência, a modicidade das tarifas do serviço.

A possibilidade de suspensão do serviço (corte do fornecimento de energia) é uma garantia legal e que foi atribuída ao prestador, no caso de inadimplemento do consumidor (quer por simples impontualidade no pagamento ou pela utilização de mecanismos para subtrair o faturamento). Impedir o prestador do serviço de realizar o corte, mesmo quando constatada a fraude, a par de gerar insegurança jurídica, estimular o cometimento de crimes e interferir no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, é também medida socialmente injusta. Pode inviabilizar o sistema de distribuição de energia elétrica, tal qual foi pensado e deliberado politicamente, pelos representantes eleitos do povo. Ao se impedir o corte de energia elétrica do fraudador, está-se subvertendo a ordem econômica do setor. Não existindo qualquer norma constitucional ou infraconstitucional obrigando a que o prestador privado (concessionário de serviço de fornecimento de energia elétrica) garanta o fornecimento quando não ocorre o pagamento da contraprestação do usuário, o impedimento do corte da energia elétrica do consumidor fraudador (inadimplente por ter fraudado o faturamento do consumo) representa uma interferência indevida na economia do setor.

Não se pode dizer que o Judiciário esteja completamente insensível a esse problema, já havendo manifestações do STJ reconhecendo que o impedimento ao corte (quando inadimplente o usuário) pode comprometer as receitas do sistema elétrico e, por decorrência, a economia pública, afetando o atendimento da demanda dos consumidores adimplentes. Veja-se, a respeito, ementa de acórdão proferido no AgRg na SLS n. 216/RN:

"ENERGIA ELÉTRICA. CORTE POR INADIMPLÊNCIA. MUNICÍPIO. POSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL.

1. A interrupção do fornecimento de energia elétrica por inadimplemento não configura descontinuidade da prestação do serviço público. Precedentes.

2. O interesse da coletividade não pode ser protegido estimulando-se a mora, até porque esta poderá comprometer, por via reflexa, de forma mais cruel, toda a coletividade, em sobrevindo má prestação dos serviços de fornecimento de energia, por falta de investimentos, como resultado do não recebimento, pela concessionária, da contra-prestação pecuniária.

3. Legítima a pretensão da Concessionária de suspender a decisão que, apesar do inadimplemento, determinou o restabelecimento do serviço e a abstenção de atos tendentes à interrupção do fornecimento de energia.

4. Agravo Regimental não provido" [40] (grifo nosso).

O relator do acórdão, Min. Edson Vidigal, então Presidente do STJ, destacou em seu voto o seguinte:

"Ao celebrar o contrato de concessão com a União, a COSERN não o fez para fornecer energia gratuitamente a quem quer que fosse. Assumiu a obrigação de fornecer regular, adequada e eficientemente energia elétrica aos consumidores residentes nas municipalidades a que atende, e estes, em contrapartida, têm a obrigação de pagar pontualmente a energia consumida, sejam entes públicos ou não.

Impõe-se, portanto, um perfeito equilíbrio na equação fornecimento/pagamento, pois o contrário acarretará descompasso financeiro no contrato de concessão, comprometendo, de resto, todo o sistema de fornecimento de energia" (grifo nosso).

Mais recentemente, apreciando pedido de suspensão (SLS n. 1.136-SP) de liminar concedida em ação civil pública ajuizada com o objetivo de impedir o corte de energia por débitos pretéritos apurados com constatação de fraude do medidor, o atual Presidente do STJ, Ministro Cesar Asfor Rocha, repetiu os argumentos utilizados no acórdão antes transcrito, quanto aos efeitos nefastos sobre a economia do sistema de distribuição de energia elétrica e comprometimento da equação financeira do setor, acrescentando que no caso de fraude a situação é muito mais grave, daí que com mais razão não se pode impedir a suspensão do fornecimento:

"Na hipótese presente, a situação é mais grave do que a verificada no precedente acima, tendo em vista que a liminar deferida inviabiliza o corte no fornecimento de energia elétrica independentemente do pagamento dos valores exigidos para reposição das perdas decorrentes de fraude. Não se está diante, em princípio, de simples inadimplência, mas de possíveis fraudes em medidores de consumo de energia elétrica.

Assim, a parte final da liminar deferida, que afasta a obrigatoriedade de pagamento das perdas vinculadas à fraude para efeito de restabelecimento do serviço pela concessionária, pode causar grave lesão à ordem e à economia públicas.

Ante o exposto, defiro o pedido para permitir o corte do fornecimento de energia elétrica quando não efetuado o pagamento dos valores exigidos para reposição das perdas decorrentes de fraude, apuradas conforme as normas editadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL" [41].

Esses dois precedentes foram construídos no âmbito de pedidos de suspensão de liminar/sentença [42], instrumento processual onde o julgador faz uma apreciação mais de conteúdo político do que meramente técnico-jurídico [43], mas representam, como se disse, as primeiras manifestações da Corte Superior de Justiça Superior reconhecendo a interferência judicial indevida na economia do setor elétrico. Tudo leva a crer que a preocupação econômica refletida nesses julgados se transfira para o leito de outras ações, pela razão de que a proibição ao corte do fornecimento de energia por débito pretérito do fraudador contraria direta e frontalmente a legislação do setor de energia elétrica, pois retira a força coativa de normas preordenadas para afastar e coibir as situações de fraude, como veremos adiante.

Sobre o autor
Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito. Doutor em Direito. Ex-Presidente do IBDI - Instituto Brasileiro de Direito da Informática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REINALDO FILHO, Demócrito. A possibilidade de corte do fornecimento de energia elétrica por débito pretérito (estimado em decorrência de fraude no consumo).: Uma tentativa de reversão da jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2505, 11 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14832. Acesso em: 5 nov. 2024.

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