A imputabilidade dos menores de 18 anos está prevista nos artigos 228 da Constituição Federal [01] e 104 da Lei nº. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente [02]. Ainda hoje, não raro, assistimos a discussão sobre o tema ganhar contornos apaixonados e um certo grau de irracionalidade em decorrência do imediatismo embutido no discurso dos defensores da redução do limite da idade penal a 16 anos ou, como já querem alguns, até mesmo a 14 anos, buscando "dar efetiva satisfação às reivindicações sociais." Com esta postura acabam ignorando as reais causas que na maioria das vezes levam o menor a praticar infrações e insistem em não reconhecer as transformações ocorridas nesta área com o advento do Estatuto, que em poucos anos de vigência tem proporcionado resultados positivos nunca alcançados anteriormente. Encaram a medida como se ela fosse, repentinamente solucionar complexo e grave problema social da violência, um anseio de todos nós, por certo..
A alegação de que reduzindo a idade penal será possível combater "a crescente criminalidade juvenil", senão idêntico, bastante semelhança guarda com a outrora muito utilizada por defensores da pena de morte, segundo os quais a prática de crimes cairia vertiginosamente nos locais onde a medida fosse adotada. O resultado é conhecido por todos e não será diferente caso haja a redução da idade criminal. A pena, mesmo exacerbada, por si só não será capaz de inibir a atuação do infrator, que em sua grande maioria não é "criminoso" por vontade própria.
A inimputabilidade ao menor de 18 anos foi justificada na exposição de motivos da lei nº. 7.209/84E [03] como "opção apoiada em critérios de Política Criminal". Aqueles preconizadores da redução penal sob a justificativa da criminalidade crescente no Brasil, que a cada dia recruta maior número de adolescentes, não levam em consideração a circunstância de que o menor, como um ser incompleto, é naturalmente anti-social na medida em que ainda não é socializado ou instruído suficientemente. "O reajustamento do processo de formação do caráter deve ser cometido à educação, não à pena criminal", afirmam os estudiosos.
Sobre o assunto Jorge de Figueiredo Dias [04] ensina que "a colocação dessa barreira etária intransponível à intervenção penal funda-se em um princípio de humanidade, que deve caracterizar todo o direito penal de um Estado de direito material. Deve evitar-se a todo custo a submissão de uma criança ou adolescente às sanções mais graves prevista no ordenamento jurídico e ao rito do processo penal, pela estigmatização que sempre acompanha a passagem pelo corredor da justiça penal e pelos efeitos extremamente gravosos que a aplicação de uma pena necessariamente produz ao nível dos direitos de personalidade do menos, marcando inevitavelmente o seus crescimento e toda a sua vida."
Não bastassem esses danos irremediáveis que seriam causados aos menores de 18 anos, é preciso que se diga que a diminuição da idade penal será incapaz de impedir que amanhã sejam recrutados os jovens entre 14 e 16 anos de idade, ou mesmo os mais novos. Este é mais um argumento demagógico e simplista. E a partir daí, qual será a próxima suposta solução a ser apresentada? Por mais absurdo que pareça, a continuarmos o mesmo processo de redução, sem o debate das verdadeiras causas a serem enfrentadas, por certo chegará o dia em que no Brasil até mesmo os recém-nascidos, preferencialmente os nascidos em famílias excluídas e marginalizadas, merecerão punição por serem "criminosos em potencial".
As estatísticas desautorizam os defensores desse argumento. Em Goiânia, p.ex., com uma população superior a um milhão de habitante, tramitam no Juizado da Infância e Juventude, cerca de 450 representações do Ministério Público em desfavor de adolescentes por prática de ato infracional, e deste pouco mais de 10% (dez por cento) referem-se a crimes praticados com violências ou grave ameaça à pessoa (roubo, homicídio etc.). Em sua grande maioria, referem-se a delitos contra o patrimônio, levando-nos a concluir que existem outros fatores sociais contribuindo para que o infante passe a delinqüir, talvez aqueles mesmos que têm levado cada dia mais crianças e adolescentes às ruas de nossas cidades para pedir "uns trocados" nas janelas de nossos carros e em nossas residências.
Certo. O legislador facultou ao jovem de 16 anos escolher seus representantes pelo voto direto [05], mas não permitiu que ele seja votado [06] para qualquer cargo eletivo,. Esse é mais um fato frequentemente utilizado com o propósito de demonstrar a capacidade do jovem de "responder por seus atos como se adulto fosse". Entretanto, comparar esta faculdade de votar com a "obrigação" de responder penalmente pelo delito eventualmente praticado, recebendo o mesmo tratamento dispensado ao delinqüente adulto é ignorar por completo que, uma vez recolhido ao presídio e exposto à contaminação carcerária, sem ter o necessário desenvolvimento físico e psíquico para tanto, certamente não haverá qualquer chance de recuperação para esse adolescente e ele, assim como acontece com a maioria dos reeducandos adultos, voltará a delinqüir.
Na realidade, ocorrerá uma dupla condenação. As seqüelas (físicas e mentais) geradas durante o período em que se encontra encarcerado entre marginais adultos – que se encarregarão de especializá-lo no crime – não se apagarão jamais, tornando-o mais violento e anti-social. Haverá ainda o peso de uma condenação criminal a persegui-lo por toda a vida, que somente se inicia.
O que causa angústia em muitos profissionais que trabalham com o adolescente infrator é verem essa discussão sempre ocorrer superficialmente. Não pode ser tomado como sério o debate sobre a idade penal no Brasil se ele não vier acompanhado de uma profunda discussão sobre o sistema carcerário do país. Para que se tenha uma idéia, segundo o diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) [07], Maurício Kuehne, "o Brasil é o país com a oitava maior população carcerária do mundo. Se fossem contabilizados os mandados de prisão expedidos e não cumpridos, o país disputaria com Cuba a terceira posição mundial". Além disso, diz ele "os dados mostram que, em 1995, eram 148.760 mil presos no país. Até junho de 2007, havia 419.551 mil detidos em penitenciárias e delegacias. Em 1995, a proporção era de 95 presos para cada 100 mil habitantes. Hoje, esse número é de 227 presos para cada 100 mil habitantes e para acabar com o déficit de cerca de 200 mil vagas do sistema penitenciário nacional seriam necessários R$ 6 bilhões". Não bastasse isso, o índice que reincidência do adulto é próximo a 50%. Isso mesmo, deficit de 200 mil vagas, e ainda dizem que a impunidade ocorre é em relação ao adolescente.
Diante desse quadro de desmandos, corrupção e flagrante impunidade, seria interessante ouvir dos defensores da mudança constitucional as propostas que têm para reverter esta lamentável situação e, de fato, promover a punição e a ressocialização dos condenados, como preconiza a legislação brasileira.
Ao considerar inimputáveis os menores de 18 anos, o legislador não adotou uma postura paternalista definindo apenas direitos ao infrator sem a devida contrapartida. A lei atual não permite que estes fiquem impunes quando cometam delitos, agora chamados atos infracionais. O artigo 2º [08] do ECA (lei nº. 8.069\90) [09], considera adolescente a pessoa entre 12 e 18 anos e este, ao cometer um ilícito penal, está sujeito às medidas previstas no ECA (art.104) [10], que vão da simples advertência até a internação (art.112) [11], conforme o caso. E essa internação nada mais é do que a prisão do infrator em estabelecimento próprio e adequado, reservado para adolescentes apenas, com o acompanhamento de técnicos por todo o tempo que ali permanecerem, sempre com o objetivo de puni-los e ressocializa-los.
E mais, o Estatuto inova quando permite a punição do adolescente infrator a partir dos 12 anos, idade esta muito inferior aos 16 anos pretendidos por alguns. Mas o faz de forma responsável, seguindo os caminhos de uma lei antes de tudo pedagógica, cujo fim é a proteção integral da criança e do adolescente e não apenas sua inconseqüente punição. Busca-se a recuperação daquele que errou levado por inúmeros fatores sociais, ou até mesmo por sua imaturidade, reintegrando-o à sociedade com o regate de sua cidadania.
Embora ser este um debate possível, entendo que não têm razão aqueles advogam ser o período máximo de internação do infrator (03 anos – artigo 121, parágrafo 3º) [12], insuficiente para puni-lo e, conseqüentemente, recuperá-lo.
Oportuno deixar aqui uma indagação que nos leve a refletir ao mesmo tempo que demonstra o acerto do legislador ao fixar o atual limite: o adulto, primário, de bons antecedentes, que cometeu homicídio simples (artigo 121, do Código |Penal – pena de 06 a 20 anos de reclusão), julgado pelo tribunal do Júri, terá de ser condenado a pena superior a 18 anos de reclusão para que assim permaneça na prisão, em regime fechado como querem, os mesmos 03 anos a serem impostos pelo juiz da Infância e Juventude, em regra, ao adolescente infrator que tenha cometido idêntico ato. Isso ocorre por que, ao primeiro aplicam-se os benefícios do artigo 112 da LEP (progressão após cumprir um sexto da pena) [13], o que não ocorre com o menor de 18 anos. Tal condenação ocorrerá? Por certo que não, levando-se em conta todos os requisitos exigidos pela lei, e a amplitude da defesa garantida pelo Código de Processo Penal brasileiro.
Mesmo após cumprido o prazo total da internação, adolescente poderá ser submetido à medida sócio-educativa de semiliberdade e, após, sendo o caso, à de Liberdade Assistida [14], todas por igual período.
Campanhas como as que estamos assistindo omitem os dados mencionados acima. Não apontam os males que serão provocados à nossa infância e juventude por essa irresponsável redução. Atacam o efeito e não a causa. Momentaneamente, esquecem seus defensores de que ao direito penal não cabe a solução de problemas sociais.
Tentam passar a idéia que o Estatuto não é uma boa lei e inaplicável à nossa realidade, mesmo sabendo que este ainda sequer foi colocado integralmente em prática apenas por omissão da sociedade e do poder público, que insiste em não tratar as questões relativas à população infanto-juvenil como prioridade absoluta, assim como exige a Constituição Federal e o ECA. Senão como explicar a ausência de Conselhos dos Direitos e Tutelares da Criança e do Adolescente que se verifica na grande maioria dos nossos municípios? Como explicar por que ainda não houve esta mesma "mobilização social" que há para a redução da idade penal, para se garantir às nossas crianças e adolescentes, verdadeiramente, o direito a uma vida digna, com educação de qualidade, moradia, saúde, livres de qualquer forma de exploração e constrangimento. Inúmeras perguntas que por eles nunca serão respondidas.
Penso que dispomos de legítimos instrumentos de participação popular, fornecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, para alcançarmos dias melhores na área da infância e Juventude. A lei vigente busca restabelecer o papel da família, fortalecendo-a para a função de formadora do indivíduo. O chamado sistema de garantias, por sua vez, tem relevante papel em todo esse contexto, e deve chamar para si a responsabilidade de articular e orientar a comunidade, fomentando uma discussão séria e responsável acerca dos problemas e soluções para a infância e a juventude brasileira, isenta de demagogia, paixão, preconceitos e ideologias de última hora.
Notas
01Artigo 228 da CF – São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.
02Artigo 104 do ECA – São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta lei
03.A lei nº. 7.209/84 deu nova redação à Parte Geral do Código Penal Brasileiro
04.Direito Penal – Parte Geral. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, t. 1, p. 547 Código Penal e sua interpretação - Editora Revista dos Tribunais – 8ª Edição – pg. 217
05.Artigo 14 da CF – A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
Inciso II – facultativos para:
c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.
06.Artigo 14 da CF -
§ 3º São condições de elegebilidade, na forma da lei:
VI. A idade mínima de:
a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador;
b) trinta e cinco anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal;
c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;
d) dezoito anos para Vereador
07 - Radiobrás – Agência Brasil - 18 de Setembro de 2007 - 16h48
08.Artigo 2º do ECA – Considera-se criança, para os efeitos desta lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
09.Estatuto da Criança e do Adolescente
10.Artigo 104 do ECA – São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta lei
11.Artigo 112 do ECA – Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
I. advertêbncia;
II. obrigação de reparar o dano;
III.prestação de serviços à comunidade;
IV. Inserção em regime de semiliberdade;
V. internação em estabelecimento educacional;
12.Artigo 121 do ECA – A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento
§ 3º – Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos
13. Artigo 12 da Lei nº 7.210/84 - Lei de Execução Penal – A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para o regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.
14.Artigo 121 do ECA -
§ 4º – atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de semiliberdade ou de liberdade assistida.