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A posse de terras quilombolas na região metropolitana de Belo Horizonte

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4. Belo Horizonte e Contagem

O bandeirante João leite da Silva Ortiz recebeu em carta de sesmaria a porção de terras que ia da serra do Congonhas à Lagoinha. Mais tarde conhecido com Curral Del rey, a capitania cresceu vindo a abastecer a região mineradora do Rio das Velhas e a receber um contingente de forasteiros. Já nesta época, estabeleceram-se os Luízes na região. Com o tempo o local cresceu vindo a dar origem à cidade de Belo Horizonte e a se tornar a capital do estado.

Como tal, Belo Horizonte recebeu um grande incentivo ao desenvolvimento do seu parque industrial que foi acompanhado pelas cidades ao seu entorno. Dentre elas a mais expressiva neste sentido é o município de Contagem.

Contagem fica numa posição estratégica servindo de rota para vários distritos cuja exploração de minérios foi intensa. Desta forma, recebia um grande contingente de escravos e comerciantes que ali foram se estabelecendo. O Município era conhecido pelo tráfico de escravos e de mercadorias, abrigando um número expressivo de negros. Alguns deles fixaram-se na cidade desenvolvendo atividades ligadas principalmente à agricultura, à criação de gado e ao comércio. Ali se desenvolveu a comunidade dos Arturos.

4.1 Luízes

A atual matriarca dos Luízes, Dona Luzia, é descendente de José Luiz Lopes, senhor de escravo e fazendeiro de muitas posses. A tataravó de seu pai Ana Apolinária, escrava da família Lopes, foi amante do proprietário José Luiz Lopes e desta união tiveram nove descendentes que receberam o sobrenome de Luiz.

As filhas de José e Ana Apolinária receberam, no séc.XVIII após a morte do dono da fazenda, um terreno que se encontra em terras de Nova Lima, atual Mina Morro Velho. Até meados de 1930 seus descendentes se mantiveram nestas terras. Entretanto, anos depois a empresa de mineração Anglo Gold comprou a mina Morro Velho e em troca ofereceu aos Luízes uma área que abrange desde o condomínio Vale dos Cristais, em Nova Lima e chega até o bairro Grajaú, em Belo Horizonte, onde hoje se localiza a comunidade.

Segundo consta nos registros, o terreno inicial era superior a 18 mil metros quadrados na região do atual bairro Grajaú, com mais de 2 mil pessoas que ocupavam cerca de 37 lotes.

No ano de 2005 a comunidade dos Luízes foi reconhecida como quilombo pela Fundação Cultural Palmares, através da portaria FCP n° 23 e neste mesmo período a matriarca dos Luízes, Dona Luzia, se dirigiu ao INCRA com o objetivo de regularizar a área da comunidade. O processo ainda está em andamento.

O Relatório Antropológico da comunidade foi finalizado em 2008, com o apoio do NUQ (Núcleo de Estudos de Quilombolas e Comunidades Tradicionais) da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) por meio de um convênio firmado com o INCRA. No presente ano, 2009, os moradores foram cadastrados de acordo com dados do INCRA e informações fornecidas pelos membros da própria comunidade em visita oportuna, realizada a 27 de julho de 2009.

Hoje o terreno dos Luízes abrange uma área de 6 mil metros quadrados, com cerca de 30 famílias. Muitos descendentes tiveram que mudar para outros bairros da capital, como o Morro das Pedras e Olhos D’água. A comunidade que permaneceu na região do Grajaú sofre com as pressões e a crescente especulação imobiliária no local. Em 2002, a preparação para erguer mais um prédio no bairro levou consigo o centro cultural dos Luízes. De acordo com informações da Secretaria Especial de Políticas Públicas de Igualdade Racial, SEPPIR [01], na área correspondente ao terreno original dos Luízes há prédios, casas, comércio e parte do campus da Universidade Newton Paiva.

4.2 Arturos

Camilo Silvério, pai de Arthur Camilo Silvério, teria chegado como escravo em Minas Gerais por volta do séc. XIX. Em 1888 conseguiu juntar uma quantia em dinheiro que lhe permitiu comprar uma parcela de terra na região suburbana de Contagem.

Arthur Camilo casou-se com Carmelinda Maria da Silva e teve dez filhos que são hoje a base da Comunidade. Além a figura paterna, a união familiar constitui uma referência cultural e religiosa que entrelaça as gerações dos Arturos, na tentativa de concretizar a promessa do patriarca que era de unir seus descendentes em torno de suas tradições, conforme relata uma de suas filhas:

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Depois de tudo o que passou, papai prometeu que lutaria para que seus filhos nunca tivessem que passar pelo sofrimento que ele passou. Nunca culpou os pais pelo sofrimento que passou, pois a situação era de muita dificuldade para todos, negro ainda era escravo. Mas o que ele não queria era que seus filhos, que nós tivéssemos o mesmo destino que ele. Por isso temos terra para morar hoje. Ele cumpriu sua promessa

. (apud OLIVEIRA, 2005, p. 84).

Hoje a comunidade é formada por cerca de 50 famílias que ocupam um terreno particular que possui cerca de 6,5 hectares a 2,5 KM do centro de contagem. O grupo mantém importantes tradições da cultura negra brasileira. Dentre elas o batuque, a festa do João do Mato da capina e a Folia de Reis. Além de aspectos da culinária e do modo de organização da vida comunitária.

As atividades rurais não são mais o meio principal de geração de renda e subsistência da comunidade. O desenvolvimento do parque industrial de Contagem e de Belo Horizonte e a oferta de empregos culminou no abandono do trabalho do campo pelos Arturos.

No entanto, as tradições resistem apesar de certas mudanças, conforme se pode depreender:

Saber-se Arturo é reconhecer-se portador de uma historia que remete para um passado em que o negro teve de fazer-se forte para superar as opressões. Contemporaneamente não se alterou o painel que o marginaliza. Os arturos sabem que são "gente humilde" e não querem se sentir agredidos pelos mecanismos de transformações sociais".

A comunidade coloca-se desse modo como participante da realidade regional e nacional que a vê redefinir a sua atuação em face de um passado a ser preservado e de um futuro a ser construído. Por outro lado, contagem, minas e Brasil são redefinidas pelos arturos, que são forças sociais capazes de enriquecer o patrimônio de uma identidade brasileira que tenha o negro como um de seus componentes ativos.(GOMES; PEREIRA, 2000, p.202).

O procedimento de titulação foi iniciado em 2005. Porém o Relatório Antropológico sequer teve início.


5. A Instrução Normativa (IN) Nº 49 do INCRA

A aprovação do decreto 4887 em novembro de 2003 trouxe à tona intenso debate acerca da titularização das terras quilombolas. O Decreto foi impugnado pela primeira vez em 2004, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 3239 de autoria do então Partido da Frente Liberal, PFL, atual Democratas, DEM. A ação, que até o presente ano (2009) não foi julgada, requer a sustação dos efeitos do decreto 4887, pois este estaria equivocado quanto aos critérios que estabelece a respeito da auto-atribuição das Comunidades como Quilombolas, a desapropriação a ser cabível durante o processo de demarcação e a forma de delimitação do território durante a produção do RTID.

O Projeto de Decreto legislativo, PDC, 44 de autoria dos deputados Valdir Colatto e Waldir Neves, proposto em 2007, também impugna o Decreto 4887. O PDC 44 pretendia sustar o decreto 4887 sob a alegação de que este havia extrapolado a competência Constitucional, regulando o ADCT nº 68 invadindo, desta forma, esfera reservada à lei. O mesmo Deputado é também autor do Projeto de Lei nº 3654, que pretende alterar a definição de remanescentes de quilombos, restringir o direito à titulação às zonas rurais e possibilitar a titulação individual dos territórios.

Dentro deste contexto, em que de um lado protestavam as Comunidades pela manutenção do decreto e, de outro, vários setores da sociedade tentavam derrubá-lo, instituiu-se um grupo interministerial, em 2007, visando ponderar os interesses de ambas as partes. O grupo optou por conservar o decreto e alterar a norma interna do INCRA que disciplinava o procedimento de regulamentação. Assim, em outubro de 2008 foi aprovada a Instrução Normativa 49 do INCRA.

O movimento quilombola aponta alguns entraves para as titulações gerados por esta legislação, dentre eles:

1. A IN 20 de 2005, anterior à IN 49, fazia menção á produção de um Relatório Antropológicocomposto em síntese por uma caracterização histórica, econômica e sócio-cultural das Comunidades. Pela nova norma IN 49, deverão constituir este Relatório demais itens como: levantamento de dados sobre taxas de natalidade e mortalidade do grupo, representação de trajetórias políticas da comunidade, entre outros.

2. A contratação de especialistas fora do quadro de funcionários do INCRA e os convênios com as Universidades foram restritos pela nova instrução, devendo-se dar apenas em caráter excepcional quando reconhecida a impossibilidade material para elaboração do relatório antropológico, conforme art.10, parágrafo 2º.

Art. 10. O RTID, devidamente fundamentado em elementos objetivos, abordando informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, sócio-econômicas, históricas, etnográficas e antropológicas, obtidas em campo e junto a instituições públicas e privadas, abrangerá, necessariamente, além de outras informações consideradas relevantes pelo Grupo Técnico, dados gerais e específicos organizados da seguinte forma:

§ 2º. O Relatório de que trata o inciso I deste artigo será elaborado por especialista que mantenha vínculo funcional com o INCRA, salvo em hipótese devidamente reconhecida de impossibilidade material, quando poderá haver contratação, obedecida à legislação pertinente.(BRASIL, 2008).

3. As contestações ao Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, RTID, podem ocorrer em até 270 dias, sendo que a IN 49 concede um prazo de 90 dias para a apresentação das contestações e de 180 dias para que o INCRA as analise e julgue. Estas contestações têm efeito suspensivo, ou seja, durante a análise das mesmas o processo fica suspenso.

4. De acordo com a nova instrução, deve-se notificar os órgãos federais e estaduais envolvidos na questão das terras em três momentos distintos, a saber: na formalização do processo (art. 7º, parágrafo 4º), no processo de elaboração do RTID ( art. 10º, parágrafo 4º) e quando da publicação do RTID (art.12º). Na antiga regra (IN 20/2005), a consulta dava-se apenas quando da publicação do RTID.

A produção do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação dos territórios quilombolas, RTID, envolve a elaboração de um estudo a ser realizado por um grupo multidisciplinar. Entretanto, a Superintendência regional do INCRA de Minas gerais não dispõe de estrutura suficiente para abarcar este estudo em tempo razoável nas diversascomunidades que o reivindicam. Não há um quadro de funcionários em número satisfatório e tampouco recursos disponíveis para tanto. Desta forma, o estabelecimento de convênios com as Universidades Federais favoreceu o andamento de alguns processos, vez que possibilitava o engajamento de professores e estudantes relacionados a produção dos Relatórios. Posto que a nova norma interna do INCRA proíbe tais convênios, torna-se mais difícil ainda a conclusão da primeira fase do procedimento de titularização das terras.

Percebe-se com o acréscimo de novos quesitos ao Relatório uma preocupação em analisar sob todos os ângulos as comunidades, o que é necessário. Contudo, quando atrelado ao processo de titulação acaba tornando-o ainda mais moroso, pois não se pode querer sustentar uma pesquisa genérica para a implantação de programas de apoio às comunidades entravada à questão da titulação.

Conforme dados de pesquisas realizadas pela Comissão pró -Índio de São Paulo, CPI-SP, houve um decréscimo em relação à quantidade de relatórios finalizados pelo INCRA em 2008; Tendo apenas 8 relatórios concluídos de janeiro a setembro.

A fase de contestações pode manter o processo suspenso por até 6 meses, de acordo com a IN nº 49, paralisando o procedimento. A instrução Normativa anterior utilizava o prazo geral da lei de processo Administrativo Federal, Lei 9.784/99. De acordo com o art. 49 desta "Concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de até trinta dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada". (BRASIL, 1999).

Muitos são os conflitos travados entre particulares e quilombos pela propriedade das terras. Em certos casos, o proprietário não aceita o fato de ter de se retirar de suas terras, muito embora seja indenizado pelo poder Público.

De acordo com o procurador Daniel Sarmento, quando em conflito o direito dos quilombolas e o de terceiros, em relação a determinada propriedade, a questão quilombola se sobreporia, tendo em vista a singular especificidade do território nestes casos. Entretanto, não restariam anulados os direitos do particular, cabendo-lhe, em tais casos, a justa indenização pelas terras que ate então lhe pertenciam, bem como pelas benfeitorias que nelas realizou. O caso a rigor seria de afetação constitucional, o que legitimaria a proteção aos direitos possessórios das comunidades quilombolas mesmo antes da proposição da ação expropriatória cabível, podendo as comunidades defender sua ocupação em juízo. Assim, mister se faria recorrer à desapropriação apenas para fins de cálculo e pagamento das indenizações dos proprietários de boa-fé.


6. Conclusão

Com a edição do Decreto 4887 de 2003 a discussão acerca das questões referentes às comunidades quilombolas fez parte da agenda política nacional pela primeira vez, desde a Constituinte de 1988. Naturalmente, suscitou debates e reações opostas. Porém, várias comunidades foram descobertas, e, seus membros passaram a ter alguma noção dos seus direitos. Quando o INCRA deu início às titulações, o tema, até então muito distante de todos os meios ganhou a mídia e a Academia.

As tentativas de revogar o decreto são lamentáveis, vez que este encaminha de modo claro e fiel os anseios do legislador representados no ADCT 68. Assegurar que a titulação compreenda o uso de um espaço comum, para que a cultura ali desenvolvida possa subsistir é indispensável. De nada valeriam títulos individuais ou mesmo delimitações muito restritas numa Comunidade baseada na vivência comum. Seria o mesmo que assegurar uma espécie de usucapião extraordinário, esquecendo-se da preocupação cultural e histórica do legislador de 1988.

Entretanto, com a adoção da atual Instrução Normativa, o procedimento, que já era moroso tornou-se ainda mais burocrático.

A produção do Relatório Antropológico é essencial para que se delimite a área a ser reconhecida. Mas, o INCRA não dispõe de recursos humanos e financeiros para tal. A demanda de processos em nosso estado é muito grande, são cerca de 400 comunidades. O estímulo à formação de convênios com Universidades e entidades não-governamentais para a produção do Relatório Antropológico poderia agilizar os processos. Além disto, a simplificação dos quesitos a serem avaliados pelo grupo técnico no Relatório é importante. Deve-se estimular a pesquisa em torno das Comunidades, contanto que esta seja paralela ás atividades do INCRA. E o mais importante: independentes do trabalho deste. Há, sem dúvida muitos aspectos a serem analisados sobre estes povos. Contudo, este estudo não pode se sustentar no procedimento de reconhecimento de suas terras.

Com relação à questão da Desapropriação ainda há muito que se fazer. É importante que o Relatório seja concluído e a área delimitada para que as comunidades possam recorrer aos órgãos públicos e defender as áreas por elas ocupadas. Não se pode admitir que as terras quilombolas continuem a ser esbulhadas. É necessário delimitar um espaço onde a comunidade possa se desenvolver. Para tanto, não basta apenas a área referente ás moradias individuais, e deve-se levar em conta o significado que certos locais têm para determinado povo. Por vezes a beira de um lago não é simplesmente um terreno, mas a simbologia de um ritual, uma tradição. Desta forma, não é o espaço em si, mas o que ele representa que lhe traça um contorno peculiar para os quilombos.

É importante ainda lembrar da necessidade da justa indenização nos casos de desapropriação. Não só porque não se podem prejudicar os proprietários de boa-fé. Este ato tem como finalidade minimizar os conflitos que surgem com a titulação. É também uma forma de dividir com toda a sociedade o ônus pela reparação de um direito até então negado a esta minoria. Mesmo assim, é preciso que a polícia, o Ministério Público e a Defensoria Pública estejam lado a lado dos quilombos durante este processo para que intervenham nos conflitos de modo a solucioná-los da melhor forma.

Os processos de ambas as comunidades analisadas iniciaram-se em 2005. Entretanto, enquanto os Luízes já concluíram o Relatório Antropológico, nos Arturos tal procedimento sequer teve início. O apoio do Núcleo de Estudos de Comunidades Quilombolas e Tradicionais da UFMG foi de grande auxílio para os Luízes. Porém, com a nova instrução, os Arturos não terão tamanha sorte. Sabe-se lá quando o INCRA poderá disponibilizar o grupo técnico para esta comunidade.

Uma parte do procedimento já foi concluída pela Comunidade dos Luízes, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido até a titulação.

Espera-se que sejam revistas as novas regras para a titulação. Para tanto, é preciso que os segmentos ligados aos quilombos se articulem e tragam o debate para a cena política nacional. A participação da sociedade e das entidades e Universidades é importantíssima. Ainda há muito que se esclarecer sobre as comunidades, seus direitos e sua história, pois é pelo conhecimento que se vence o preconceito, e pela informação que se busca o que é preciso.

Sobre os autores
Ana Luisa Albergaria Lima Oliveira

Aluna participante do projeto, estudante do curso de graduação da PUC, unidade São Gabriel.

Aline Maria dos Santos Lara

Estudante de Direito da PUC Minas, Unidade São Gabriel.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Adriano Stanley Rocha; OLIVEIRA, Ana Luisa Albergaria Lima et al. A posse de terras quilombolas na região metropolitana de Belo Horizonte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2581, 26 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17043. Acesso em: 23 dez. 2024.

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