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Inaceitabilidade da manutenção da prisão processual por prazo excessivo em crimes hediondos

Agenda 01/08/2010 às 12:36

Há muito se acompanha, nos países da América Latina, perigoso fenômeno de ordinarização da prisão processual.

Esse fenômeno é particularmente sensível no Brasil, em que a presença de grande conflituosidade social, somada ao elevado quantitativo populacional, faz com que a violência urbana apresente números consideráveis, o que contribui na sensação de pânico social, passando os integrantes da sociedade a reacionar de forma violenta, inserindo-se o uso da prisão como uma das mais usuais formas de violência institucional.

Como parte das respostas ineficazes, mas dotadas de elevada popularidade para a questão da violência urbana, foram ocorrendo liberalizações nos mecanismos de controle da prisão anterior à condenação, ou seja, da prisão processual, passando a ocorrer sua utilização com caráter de generalidade, quando, na verdade, deveria encontrar-se limitada aos casos de extremada necessidade, calcados na demonstração objetiva de que o acusado apresente perigo para a ordem pública, para a ordem econômica, esteja atuando a prejudicar a instrução criminal ou demonstre risco de ser frustrada a aplicação da lei penal, registrando-se que mesmo nestas hipóteses não se pode estender a cautela incidente sobre a liberdade da pessoa por prazo desmedido.

O Estado Democrático de Direito tem como uma de suas características mais marcantes a interpretação das leis em permanente acordo com os direitos e garantias estabelecidos no Texto Constitucional, surgindo deste aspecto, inclusive, o chamado "ativismo judicial", em que o Magistrado corrige ataques normativos aos direitos e garantias do cidadão no dia a dia da operacionalização do sistema jurídico.

É conveniente observar que a Constituição brasileira, fruto de discussões imediatamente posteriores ao término do regime ditatorial militar, é sensível para com a questão do aprisionamento, em especial por haver contado, em sua elaboração, com a contribuição de pessoas que conheceram o cárcere na condição de criminosos políticos e, então, vivenciaram a realidade do sistema prisional, convivendo com presos comuns e conhecendo suas histórias, observando a desumana condição a que se encontravam submetidos.

A partir desses dados é que a Carta Política estruturou-se em prol da defesa da liberdade, tornando a admissão da prisão medida de cunho absolutamente excepcional. A propósito é esta a exegese imposta, por exemplo, pelos incisos do seu artigo 5º, dos quais provém o devido processo legal e o estado de inocência, respectivamente, com a redação abaixo:

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Embora a certeza da filiação constitucional brasileira ao regime de proteção das garantias e das liberdades e repulsa ao modelo prisional, a resistência encontrada para tornar esta idéia efetiva sempre foi muito grande, em clara conexão com o acima referido sentimento de pânico social e com o fenômeno da violência urbana.

Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a Carta Magna nacional impõe a interpretação de utilização excepcional da prisão, o sentimento de pânico social faz com que as pessoas desejem seu incremento continuamente crescente, havendo maior sensibilidade para com este reclamo que para com as diretrizes constitucionais.

A amarração constitucional da excepcionalidade do aprisionamento foi bastante rígida, pois desenvolvida no campo das cláusulas pétreas, ou seja, de conteúdo não passível de reforma, o que fez com que a estratégia desenvolvida para flexibilizar a Lei Maior seja a de gerar exceções ao seu universo de aplicação, ainda que não tendo a coragem de assumir de maneira franca que o que se faz é a promoção de discurso defensor de quadros diferenciados, para em verdade afastar a incidência constitucional para um grande número de casos.

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O mais evidente exemplo da política referida no parágrafo acima foi o que passou a ser adotado com relação aos crimes hediondos e aos a eles equiparados, em que se construiu um discurso muito semelhante ao inicialmente utilizado para o combate à heresia durante a inquisição e o combate aos anti-nacionais durante o nazi-fascismo, ou seja, que haveria um campo diferenciado nas hipóteses delitivas tratadas como hediondas ou equiparados, o que faria surgir diversa interpretação com relação ao sistema de penas, ao desenvolvimento processual e aos mecanismos cautelares, entre os quais se insere a prisão processual.

Claro que a inicial descrição de crimes tidos como hediondos e equiparados sofreu continuo aumento, em processo interminável de inclusão de novas figuras típicas no catálogo inicial previsto.

Interessa observar que durante a inquisição não foi diferente, primeiro foram criadas as regras de exceção para combater a heresia cátara. Assassinados os cátaros, novas figuras de heresia foram concebidas, até que quase tudo passou a ser considerado prática herética, incrementando consideravelmente o poder dos que controlavam o sistema. No nazi-fascismo, as pessoas consideradas anti-nacionais também foram continuamente aumentadas, da inicial previsão de que elas seriam os membros ou simpatizantes do partido social-democrata, para, ao término do regime, o universo de possibilidades ter aumentado consideravelmente para incluir, por exemplo, muçulmanos, eslavos, ciganos, negros, deficientes físicos, deficientes mentais, entre vários outros que passaram a ser catalogados como anti-nacionais.

O que há na atualidade é apenas uma repetição da estratégia histórica de dominação, ou seja, a criação de campos excepcionais, que começam a admitir desrespeitos aos direitos e garantias, para, no momento seguinte, ampliar o campo excepcional até que ele se torne a regra.

Importante decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal, no dia de 22 março de 2010, mais que resolver o caso concreto a que se refere, reforça sonoro alerta que vem sendo reiteradamente manifestado para toda a sociedade e para a Magistratura em especial.

Na análise do Habeas Corpus 101.357, originário do Estado de São Paulo, foi concedida liminar a acusado de homicídio qualificado, detido preventivamente e que aguardava há anos a oportunidade de ser julgado pelo Tribunal do Júri.

Todas as instâncias anteriores, no que se insere inclusive o Superior Tribunal de Justiça, haviam negado o pleito liberatório ao argumento bastante utilizado de que os prazos para a prisão processual devem ser analisados com razoabilidade, comportando flexibilização, notoriamente diante da hipótese versada de crime hediondo.

O Relator, Ministro Celso de Melo, ao analisar a questão, rechaçou de forma serena a argumentação acima, reafirmando que a acusação por crime hediondo não retira a condição humana da pessoa, portanto não sendo possível negar-lhe os direitos e garantias estampados no texto constitucional.

A esse respeito, a decisão em comento destacou a dignidade humana, prevista no artigo 1º, da Lei Maior, como valor-fonte, ou seja, como valor do qual deve confluir toda interpretação do sistema jurídico.

Por certo a submissão de pessoa à prisão processual sem que sejam observadas as hipóteses excepcionais em que ela se admite ou os prazos definidos em lei para o final julgamento de quem se encontra cerceado de sua liberdade, independente da natureza da infração sobre a qual recai a acusação conflita com a dignidade humana.

Nesse sentido há importante precedente do pleno do Supremo Tribunal Federal em que pode ler:

"O EXCESSO DE PRAZO, MESMO TRATANDO-SE DE DELITO HEDIONDO (OU A ESTE EQUIPARADO), NÃO PODE SER TOLERADO, IMPONDO-SE, AO PODER JUDICIÁRIO, EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, O IMEDIATO RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR DO INDICIADO OU DO RÉU.

- Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933-934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu, mesmo que se trate de crime hediondo ou de delito a este equiparado.

- O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário - não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu - traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei.

- A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.

- O indiciado ou o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, ainda que se cuide de pessoas acusadas da suposta prática de crime hediondo (Súmula 697/STF), sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes."

(RTJ 195/212-213, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Assim é que a Corte Constitucional tem reafirmado que manter alguém preso processualmente por prazo acima dos limites razoáveis da lei, choca-se com o "valor-fonte" da estrutura constitucional brasileira, ou seja, agride a dignidade da pessoa humana e não pode ser aceito pela sociedade de um País democrático, menos ainda ratificado pelo Poder Judiciário.

Lembre-se que a não admissão do abuso prisional estende-se a toda e qualquer acusação, inclusive a de crimes hediondos ou com eles equiparados, não havendo, portanto, qualquer justificativa para a flexibilização dos comandos constitucionais em razão da acusação contra a pessoa ser por um ou outro delito.

Com efeito, a decretação ou manutenção da custódia prisional processual depende necessariamente da existência de fortes razões, de que livre o acusado represente concretamente prejuízo para o processo.

Não é suficiente a presença de repulsa social para com o fato do qual a pessoa é acusada, ou que ele esteja inserido em catálogo legislativo de hipóteses tidas como mais graves, posto que justamente com lastros nestas premissas surge a atual política de "prisionalização processual" no Brasil e que é confrontante com a Carta Maior, representando perigosa autorização para o incremento da intervenção do Estado sobre as liberdades individuais.

É de BECCARIA a lembrança que se deve ter nos momentos em que o pânico social conduz ao desejo cego de incremento excessivo do poder estatal, quando em seu Dei delliti e delle pene afirma: "não existe liberdade onde as leis permitem que, em determinadas circunstâncias, o homem deixe de ser pessoa e se converta em coisa."

A liberdade dos cidadãos é predicado inafastável da estrutura democrática de Estado, portanto, a ninguém pode ser negada a condição humana e exacerbar na prisão processual é fazê-lo e, em última análise, representa abdicar dos atributos democráticos essenciais, portanto trilhar os caminhos tortuosos que sempre conduziram ao mesmo destino: a implementação do Estado autoritário.

Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EL TASSE, Adel. Inaceitabilidade da manutenção da prisão processual por prazo excessivo em crimes hediondos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2587, 1 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17088. Acesso em: 23 dez. 2024.

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