CONCLUSÃO
Como foi possível constatar, a expressão "polícia" origina-se da palavra grega politeia. Remotamente significava a boa constituição, o bom ordenamento do Estado. A concepção alterou-se e o conceito tornou-se mais restrito a partir do século XIX. Nos dias atuais policia é entendida como força organizada do meio social para sua própria proteção. Na doutrina nacional, pelo menos até a década de sessenta, conceituava-se polícia destacando-se sua finalidade de manutenção da ordem pública e, atualmente, ela tem sido definida como função administrativa por meio da qual o Estado aplica restrições e condicionamentos, legalmente previstos, ao exercício de direitos e liberdades dos cidadãos, para garantir a ordem social. Essa noção de policia coincide com a noção de segurança coletiva desenvolvida por Kelsen para quem o Estado se apresenta como uma ordem normativa que regula o mútuo comportamento dos indivíduos. E, assim, pode-se adotar a orientação de que o que se chama de polícia é o regime de Estado que tem por objetivo fazer reinar a ordem e a paz pela aplicação preventiva do Direito. Em sentido amplo, a regra de polícia seria regra de direito.
Dentre suas classificações, a polícia pode ser classificada como polícia administrativa, que é preventiva, e polícia judiciária, que é repressiva. Ainda ocorre outra classificação que distingue policia administrativa e polícia de segurança. A polícia administrativa é relacionada aos vários ramos da Administração e a polícia de segurança é um ramo da polícia administrativa que tem por objeto a tutela de direitos individuais em oposição à proteção de bens.
Polícia é uma atividade e poder de polícia é o princípio jurídico que informa essa atividade. Polícia é um conjunto de regras impostas pela autoridade pública aos cidadãos e poder de polícia é o poder de fazer cumprir essas regras. Tem se definido poder de polícia como faculdade da Administração de restringir direitos individuais em benefício do interesse público. Mas se contesta essa concepção tendo como inadmissível a supremacia do interesse publico sobre os direitos individuais. Do confronto, resulta o esclarecimento de que o Estado só pode agir quando autorizado pela lei e de que, no conflito de interesses públicos e privados, o que cabe é a aplicação do princípio da proporcionalidade, sem primazia incondicional do interesse público. Assim, a concepção de que o fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, deve ser reavaliada para destacar que o seu fundamento, definitivamente, está no bloco de legalidade.
Nos termos da Lei Complementar nº 97/99, "Autoridade Marítima" é o conjunto de competências atribuídas ao Comando da Marinha para, dentre outras tarefas, exercer a polícia administrativa do tráfego aquaviário, com a finalidade de salvaguardar a vida humana, garantir segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores e de prevenir a poluição ambientalpor parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio. Constatou-se que o poder de polícia da autoridade marítima não tem fundamento, características e limites específicos, mas aqueles do poder de polícia em geral, encontráveis nas leis que o fundamentam. Verificou-se que o poder de policia administrativa da autoridade marítima para fiscalização do tráfego aquaviário teria sua origem na Lei Complementar e estaria regulada na Lei nº 9.537/1997, que trata da segurança do tráfego aquaviário.
Todavia, também se verificou que a Lei nº 9.537/1997 não dispôs sobre infrações às normas do tráfego aquaviário e tampouco sobre penalidades para as infrações cometidas. Esse é o óbice ao exercício do poder de polícia da autoridade marítima para fiscalização do tráfego aquaviário e segurança da navegação, que foi pretendido suprir com a edição do Decreto regulamentador. Há argumento de que o decreto poderia tipificar infrações com fundamento em comando genérico do art. 3º da lei, segundo o qual cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução da lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana, a segurança da navegação e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio. Entretanto, com sustento nas noções inicialmente examinadas, concluiu-se que o fundamento do poder polícia tem de estar no bloco de legalidade. Admitir como fundamento do poder de polícia um comando legal vago, genérico, principiológico, é o mesmo que admitir que o fundamento do poder polícia é o vago "interesse público" cuja supremacia se tem repelido como fundamento do poder de polícia. Por isso, concluiu-se que não há poder de polícia administrativo da autoridade marítima enquanto não ocorrer a edição de lei com a tipificação de infrações e a previsão de multas aplicáveis.
De outra parte, constatou-se que embora as funções de polícia marítima configurem uma atividade de segurança atribuída constitucionalmente à Polícia Federal, há competência concorrente da Autoridade Marítima e da Polícia Federal, restando à Marinha exercer a polícia de segurança nas áreas mais afastadas não alcançadas pela Polícia Marítima. Essa atividade, diferente da polícia administrativa antes comentada, conta com fundamento na Lei Complementar nº 97/99 que atribui à autoridade marítima a função de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos no mar e águas interiores. Deste modo, constatada uma transgressão à lei ou ao regulamento, por parte de embarcações, no mar, ou em águas interiores, incide a norma da Lei Complementar legitimando o poder de polícia de segurança da autoridade marítima.
De tudo, resulta que o poder de polícia da Autoridade Marítima é um poder de polícia de segurança que se exerce no mar e nas águas interiores, com fundamento na Lei Complementar nº 97/1999. Já o poder de polícia administrativa da autoridade marítima para fiscalização do tráfego aquaviário inexiste, no rigor técnico da expressão, carecendo da edição de lei que tipifique as infrações e estabeleça as específicas penalidades a serem aplicadas.
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Notas
1 Expressão utilizada pela Lei nº 9.537/1997 e adotada a partir dela, segundo a qual, no art. 39: "A autoridade marítima é exercida pelo Ministério da Marinha" .
2 Portaria nº 2, de 5 de agosto de 1999, do Departamento de Policia Federal, do Ministério da Justiça, que disciplina a organização e o funcionamento das atividades dos Núcleos Especiais de Polícia Marítima (NEPOM)