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O poder de polícia da autoridade marítima brasileira.

Fundamento, características e limites

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14/08/2010 às 09:03
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O artigo verifica a existência de um poder de polícia de segurança da autoridade marítima e os possíveis óbices ao seu exercício.

Resumo: Este trabalho tem por objeto identificar os fundamentos, as características e os limites do poder de polícia da autoridade marítima brasileira. Compara a teoria da polícia administrativa com a teoria de segurança coletiva de Kelsen. Confronta a tese de supremacia do interesse público sobre o particular como fundamento do poder de polícia com a tese de desconstrução do princípio da supremacia do interesse público. Constata que o fundamento do poder de polícia está no bloco de legalidade. Verifica a existência de óbice ao exercício do poder de polícia administrativa da Autoridade Marítima. Conclui pela existência de um poder de polícia de segurança da autoridade marítima, que não conta com óbices para seu exercício.

Palavras-chave: Polícia administrativa. Polícia Marítima. Polícia do Tráfego Aquaviário.

Sumário: : INTRODUÇÃO. 1. POLÍCIA E PODER DE POLÍCIA. 1.1. Polícia e Segurança Coletiva. 1.2. Polícia e irrelevância de suas classificações. 1.3. Poder de policia e a potestade pública. 1.4. Poder de polícia e o principio da legalidade. 1.5. Poder de polícia, atividade sub-legal, função administrativa. 2. PODER DE POLÍCIA DA AUTORIDADE MARÍTIMA. 2.1. Autoridade Marítima: conceituação. 2.2. Polícia administrativa do tráfego aquaviário. 2.3. Óbice ao exercício do poder de polícia do tráfego aquaviário. 2.4. Poder de polícia de segurança da Autoridade Marítima. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


INTRODUÇÃO

Conforme ensina Cretella Júnior (1968, p. 16-31), o que se tem por objeto da atividade de polícia são as relações que asseguram o convívio dos indivíduos no Estado, bem como aquilo que ameaça ou perturba essa convivência. É do autor a definição de polícia como "conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as atividades dos administrados, através de medidas impostas a essas atividades, a fim de assegurar a ordem pública". Ainda, segundo o autor citado, organização policial são pessoas e meios aplicados à finalidade de segurança coletiva. Mas é intuitivo que essa organização – talvez melhor fosse dizer esse sistema – é formada por certos órgãos com atribuições atinentes aos fins de ordem pública ou segurança coletiva, que lhes são específicas e com limites próprios, o que permite distingui-los e classificá-los.

A Lei Complementar nº 97/1999 estabeleceu atribuições subsidiárias das Forças Armadas e, quanto à Marinha, ao estabelecê-las, definiu o Comando da Marinha como "Autoridade Marítima", designando-lhe a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas. O que se pretende é examinar a extensão desse dispositivo. Assim, o tema delimitado deste trabalho é o poder de polícia da autoridade marítima brasileira, seus fundamentos, suas características e seus limites.

Um esclarecimento é necessário. A expressão "autoridade marítima" decorre de dispositivo legal, o art.17, caput, incisos e parágrafo único da Lei Complementar nº 97/1999, que permitem definir "autoridade marítima" como o Comandante da Marinha no exercício de atribuições subsidiárias da Força. De tais atribuições subsidiárias da Força Armada, necessariamente, resulta o poder de polícia para executá-las e oportunizam-se questionamentos quanto à sua natureza e quanto à forma dele ser exercitado. Assim, é pertinente formular a seguinte pergunta: o poder de polícia da autoridade marítima brasileira tem fundamento, características e limites específicos ou se trata do poder de polícia em geral, exercido por agentes da autoridade marítima?

A hipótese básica do presente trabalho é a de que o poder de polícia da autoridade marítima não tem natureza jurídica própria, tratando-se de meras competências para exercício de polícia administrativa especial e de polícia administrativa geral, nesta incluída a polícia de segurança, segundo a classificação de Cretella Júnior (1968, p.59-62). Essa hipótese, contudo, comporta as seguintes, secundárias:

a) a polícia administrativa exercida pela autoridade marítima não é uma atividade militar e, portanto, deve ter fundamento na lei que a estabeleceu; e

b) entretanto, a autoridade marítima, no exercício das tarefas que lhe estão atribuídas, tem âmbitos de atuação específicos, o que torna o seu poder de polícia, além de especial, característico, forçando à interpretação restritiva do comando legal que estabelece para a mesma autoridade uma atribuição genérica de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, o que se aplicaria à polícia de segurança, distinta, por fundamento e natureza, da atividade de polícia administrativa.

O objetivo geral é identificar o fundamento, as características e os limites do poder de polícia da autoridade marítima brasileira. Os objetivos específicos são definir "autoridade marítima", distinguir campos e setores de aplicação do poder de polícia da autoridade marítima e apontar fundamentos, limitações e óbices para o exercício de tal poder.

A Lei Complementar nº 97/1999 atribuiu à autoridade marítima a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual quando se fizer necessário, em razão de competências específicas. A Lei nº 9.537/1997, Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, dispõe em seu art. 3º que cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução de tal lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação, no mar aberto e em hidrovias interiores, e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio.

Por seu turno, a Lei nº 2.419/1955, que instituiu a Patrulha Costeira, atribuiu à Marinha, entre outras, as tarefas de, em colaboração com outros órgãos, defender a fauna marítima, defender a flora aquática, fiscalizar a pesca no litoral brasileiro, auxiliar os serviços de repressão ao contrabando e ao comercio ilícito de tóxicos, o que se insere na moldura do art. 17, IV, da Lei Complementar nº 17/1999. O Decreto nº 5.129/2004 alterou a denominação da Patrulha Costeira para Patrulha Naval, regulando a abordagem de embarcações em atividades ilícitas nas águas jurisdicionais brasileiras com tiros de advertência e tiros diretos, sintetizando tarefas da Lei nº 2.419/1955 na genérica fórmula de implementação e fiscalização do cumprimento das leis e regulamentos nas águas nacionais. Outras leis atribuem competências à autoridade marítima e estas competências parecem adequar-se à fórmula genérica da Lei Complementar ou da Lei de Patrulha Costeira, que atribui à Marinha a tarefa de implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos no mar e águas interiores, como são exemplos a Lei nº 9.605/1998, que trata dos crimes ambientais, e a Lei nº 9.966/2000, que dispõe sobre a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional. Para aplicação de tais normas, ocorre certa imprecisão conceitual. Entretanto, nada das atribuições antes mencionadas se confunde com o exercício de atividade militar stricto sensu.

Há poucas obras dedicadas ao estudo aprofundado do tema. As leis mencionadas estabeleceram tarefas que eventualmente têm sido entendidas como atividades militares, quando, expressamente, a Lei Complementar 97/199 permite defini-las como atribuições subsidiárias da Marinha, configurando nítidas atividades de polícia administrativa ou de segurança.

Deste modo, podem ocorrer entendimentos conflitantes quanto à natureza jurídica da atribuição da Marinha. É, pois, adequado que se pesquise a natureza jurídica do poder de polícia exercido pela Força, apontando seus limites. O assunto tem repercussão na fiscalização do tráfego aquaviário, na formação de tripulações para embarcações mercantes, na prevenção da poluição por parte de embarcações, na fiscalização da pesca, assim como na repressão aos ilícitos praticados em nosso mar territorial, na Zona Econômica Exclusiva, no alto mar e nos rios que fazem fronteira com outros países. Daí, a utilidade da pesquisa ora conduzida.

O método utilizado para desenvolvimento do trabalho foi o dedutivo e exploratório. A técnica foi a de revisão bibliográfica doutrinária, jurisprudencial e legal, secundada por coleta de dados sobre a atividade estudada, junto à Capitania dos Portos do Rio Grande do Sul, sediada na cidade do Rio Grande, RS.

No primeiro capítulo, estuda-se a teoria da polícia administrativa e do poder de polícia, combinada com a teoria de segurança coletiva desenvolvida por Kelsen, examina-se as classificações usualmente dadas à atividade de polícia. Em seguida examina-se o fundamento, características e limites do poder de polícia, destacando as noções que veem na potestade pública o fundamento do poder de polícia para confrontá-la com a nova tendência que propõe a desconstrução do princípio da supremacia do interesse público, repelindo o pressuposto de que ele sempre deva prevalecer sobre quaisquer interesses privados, mesmo quando já haja regra constitucional específica dirimindo o conflito entre eles.

No segundo capítulo, então, passa-se ao estudo das fontes do poder de polícia administrativa da autoridade marítima, examinando a ilegalidade do Regulamento para o Tráfego Aquaviário que se pretende validar com fundamento em norma genérica da Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário, segundo a qual cabe à autoridade marítima promover a implementação e a execução da Lei, com o propósito de assegurar a salvaguarda da vida humana e a segurança da navegação, no mar aberto e hidrovias interiores, e a prevenção da poluição ambiental por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio, o que equivale ao argumento da potestade pública como fundamento do poder de polícia. A seguir, examina-se o poder de polícia de segurança atribuído à autoridade marítima com fundamento na Lei Complementar e na Lei de Patrulha Costeira, que lhe permite exercer uma atividade de segurança no mar e nas águas interiores, sem os óbices registrados para o exercício da polícia administrativa, que, contudo, revela-se competência concorrente da Autoridade Marítima e da Polícia Federal.


1. POLÍCIA ADMINISTRATIVA

1.1. Polícia e a segurança coletiva

É intuitivo que os homens, primordialmente, viveram isolados com interesses particulares, mas que, em seguida, precisaram agrupar-se, tentando nesses agrupamentos impor seus interesses e tendo frequentemente de ceder aos interesses alheios até que fosse logrado um equilíbrio social que permitisse a manutenção do grupo.

Nos agrupamentos humanos eclodem arbítrios e sobressaltos e isso gera um estado de guerra interna permanente, com insegurança das pessoas e de seus bens. Tal estado de coisas seria enfrentado inicialmente pela força particular de cada indivíduo e, em seguida, pela "força organizada do meio social". Em geral, "polícia é o termo genérico com que se designa a força organizada que protege a sociedade, livrando-a de toda vis inquietativa", na definição de Cretella Júnior (1968, p. 13-14). Quer dizer, polícia é o termo aplicado à centralização da força para garantir a ordem social.

Assim, se o Estado é uma ordem normativa que regula o mútuo comportamento dos indivíduos, é válido afirmar que polícia é o Estado e, num Estado de Direito, ato de polícia é o ato de fazer cumprir as leis, em prol da ordem pública, da segurança coletiva, da ordem social ou do interesse público. Todavia, as expressões "ordem pública", "segurança coletiva", "ordem social" e "interesse público" são ambíguas, cada uma delas tomada em substituição a outra, na pretensão de alterar o grau de interferência do Estado na vida das pessoas, mas, todas, em grau maior ou menor, admitindo a interferência do Estado na vida privada, sem conseguir livrar-se da concepção de que o Estado é uma ordem coercitiva, posta para controlar comportamentos prejudiciais à sociedade, admitindo-se o sacrifício de interesses minoritários em prol da coesão do grupo e da segurança comum.

A etimologia da expressão "polícia" estaria ligada à política, originada do grego, politeia, que indicava a constituição do Estado, a boa constituição, o bom ordenamento. Essa concepção teria se alterado e, na Idade Média, passou a significar a boa ordem da sociedade civil sob a autoridade do Estado. O conceito ampliou-se para abarcar toda atividade da Administração, com exclusão apenas da atividade financeira e da administração militar. Só a partir do final do século XVIII e início do XIX, encontra-se um conceito mais restrito de polícia. (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 15-16).

O campo de atuação da polícia era amplo, incluindo desde a religião até os empregados domésticos, os artesãos e os pobres, o que permitia dizer-se que "Na realidade, o objeto da atividade de polícia é, em geral, todo tipo de relações sobre as quais se funda convivência dos homens no Estado e toda a espécie de atos que ameaçam ou perturbam essa ordem." (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 16).

Quando a expressão polícia chegou à Alemanha, ela significava "bom estado da coisa comum" ("Guter Stand des Gemeinwessens"). Enfim, a polícia era entendida como um instrumento da autoridade, legitimadora, inclusive, do emprego da força:

No advento da época moderna, escreve OTTO MAYER, a polícia desempenha relevante papel, chegando até a caracterizar o Estado em todas as relações que assume para com o súdito: o exército e a justiça permanecem de lado. Tudo aquilo que fora deles pode fazer-se para fortalecer a ordem interna e consolidar a coisa comum pertence à polícia, a qual se mostra sempre infatigável na tarefa de preparar novos recursos e deixar-se guiar pela luz da economia política, ciência que acaba de desenvolver-se. Ademais, tudo o que a autoridade julga saudável pode agora a polícia realizar e, em caso de necessidade, mediante o emprego da força (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 17)

Há dificuldade em formular um conceito jurídico de polícia. Tratar-se-ia de palavra das mais genéricas e das mais ambíguas que existem. Nos dias atuais a palavra é empregada em pelo menos três acepções: como regras de polícia, como conjunto de atos de execução dos regulamentos ou como forças públicas incumbidas de promover a execução de leis e regulamentos.

No Direito francês, alemão, italiano, português e argentino, registram-se tentativas de conceituação que, essencialmente destacam como finalidade da polícia a manutenção da ordem, da segurança e da salubridade públicas. "A teoria dominante na doutrina continental européia entende por polícia uma seção qualificada da administração pública que tem por objeto a previsão ou o desvio das perturbações contra a ordem mediante a ameaça ou o emprego da coação." (CRETELLA JÚNIOR, 1968, P. 26).

Moreira Neto (2005, p. 395-396), mais recente, apresenta um conceito de "função administrativa de polícia, por meio da qual o Estado aplica restrições e condicionamentos legalmente impostos ao exercício das liberdades e direitos fundamentais, tendo em vista a assegurar uma convivência social harmônica e produtiva", mas cita conceitos propostos por Otto Mayer, Marcelo Caetano e Caio Tácito, que enfatizam como finalidade da atividade de polícia, a defesa da "boa ordem da coisa pública", a prevenção de "danos sociais" e o "interesse público".

Caio Tácito (2001, p. 18), lembra que o poder de polícia classicamente referia-se ao dever geral de não perturbar, o que se colocaria acima da liberdade individual e serviria para limitá-la. Citando Otto Mayer, esclarece o professor que:

Em seu conceito clássico o poder de polícia é simples processo de contenção de excessos do individualismo. Consiste, em suma, na ação da autoridade pública para fazer cumprir por todos os indivíduos o dever de não perturbar. Um dos mestres do direito administrativo alemão assim definia o papel da administração "O resultado de cada aplicação do poder de polícia não será mais outro: que este homem não perturbe. (CAIO TÁCITO, p. 18)

Na Doutrina brasileira, até a década de sessenta, predominantemente, conceituava-se polícia com destaque para a sua finalidade de manutenção da ordem pública. Os elementos integrantes da definição são o subjetivo, o objetivo e o teleológico, ao que correspondem, respectivamente, o Estado, as limitações à liberdade, e a segurança coletiva e individual. Com essa estruturação, Cretella Júnior propõe uma definição jurídica de polícia: "conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as atividades dos administrados, através de medidas impostas a essas atividades, a fim de assegurar a ordem pública." (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 31) ou, mais recentemente, "conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as atividades do cidadão mediante restrições legais impostas a essas atividades, quando abusivas, a fim de assegurar-se a ordem publica" (CRETELLA JÚNIOR, 1985, p. 125). Destaca-se aqui a mudança de posição do autor que passa a incluir no conceito o requisito de legalidade das restrições a serem impostas às atividades dos cidadãos, bem como o requisito de que as restrições se apliquem apenas às atividades abusivas, que, todavia, se resolve na legalidade, uma vez que abusivo é o que é contra direito. De qualquer, modo, em uma e em outra ocasião, o autor destaca a particular perspectiva em que se coloca ao elaborar o conceito: a de quem vê na polícia um conjunto de meios e de pessoas direcionados à finalidade de segurança coletiva.

Quando se emprega a expressão "segurança coletiva", cogita-se de medida autoritária, para obtenção de certa ordem social ou para repressão de alguma agressão externa. Isto, em parte, seria tarefa das forças de segurança pública e em parte seria tarefa das Forças Armadas. Mas, afinal, a segurança coletiva é a finalidade da ordem jurídica e, assim, é finalidade da atividade de polícia.

A finalidade de conservar a ordem e a paz públicas, inerente à polícia, se traduz em segurança coletiva. O Estado se apresenta como uma ordem normativa que regula o mútuo comportamento dos indivíduos. Trata-se de uma ordem coercitiva, oposta aos comportamentos prejudiciais à sociedade. Cogita-se de segurança dos estados na comunidade internacional e de segurança individual nos limites do próprio Estado. Estes níveis de segurança não são opostos, isto porque a segurança de um Estado é a segurança dos indivíduos que o compõem. Entretanto, a segurança individual é proporcionada pela lei nacional e a segurança internacional pela lei internacional. Mas, em ambos os casos, o resultado é a segurança coletiva, proporcionada pela ordem social. Pode-se supor que um indivíduo ou um Estado tente ele próprio estabelecer sua segurança, sem contar com a ordem social. Todavia, essa pretensão de segurança individual contra todos os outros é irrealizável. A segurança tem de ser coletiva. Por isso que "segurança coletiva" é um pleonasmo (KELSEN, 1957, p. 1-3, tradução nossa).

The assumption that man existed originally in a state is highly problematical. Men have probably always lived in society, and where there is society there is some kind of law – ubi societas ibi jus – although the law may be more or less effective. Transient periods of anarchy are possible and have actually existed in history. However, they are characterized by the fact that no security exists, and the attempts of single individuals to secure themselves against others are in vain. As we shall see, the same is true with respect to any attempt by an individual state to establish a non-collective security for itself. Hence, since security can be only collective, collective security is a pleonastic term. (KELSEN, 1957, p. 3)

A organização social, com suas regras, é que proporciona segurança. Isto é, a ordem jurídica proporciona a "segurança coletiva". Essa segurança consiste na proteção contra ofensas a certos interesses. Não se limita à proteção contra o uso da força física por parte dos outros indivíduos. Veda-se qualquer conduta de um indivíduo que cause prejuízos a outros e essa vedação se exerce independente da vontade dos sujeitos. Exercita-se uma força não necessariamente física, mas, principalmente, sanções centralizadas, como as que se observam no direito de um estado moderno. Ocorre, portanto, um uso simbólico da "força". Mas isto ainda é "força". Nesse caso, os indivíduos aos quais essas sanções são dirigidas, normalmente, não oferecem resistência, porque sabem que ela será ineficaz. Assim, Hans Kelsen (1973, p. 11-12) nos conduz ao entendimento de que qualquer delito, assim como qualquer sanção da ordem jurídica, é um uso de "força". O conceito de "força", como o aplicado à sanção do delito, em que se usa a força para prevenir o uso da força, muda seu significado sob o efeito da centralização e a centralização proporciona um aumento da eficácia da ordem jurídica. Aumentando a eficácia da ordem jurídica, aumenta a "segurança coletiva". (KELSEN, 1957, p. 11-12, tradução nossa)

However, an action of the same kind performed against the will of a victim must certainly be considered to be an enforcement action. In this sense, force is implied in any illegal conduct of a person directed toward another person against or without the will of the latter. This means that any delict, just as any sanction, may be considered to be a use of "force". Thus the very concept of force, as it applies to the description of the essential function of the law which is to provide for a sanction against a delict – that is, to provide a use of force to prevent a use of force – changes its meaning under the influence of centralization. Such centralization results in greater effectiveness of the law and the collective security guaranteed by it. (KELSEN, 19578, p. 11)

O que se percebe é que o significado de "força" pode se alterar. A "força" se torna simbólica, permanecendo latente, pronta para emprego, nos limites que a sociedade entende necessários. O que convém apontar é que esta "força centralizada" se organiza para dar proteção contra ofensas a certos interesses, logicamente os interesses hegemônicos na sociedade. Ora, desta forma, há coincidência entre os fins da polícia e a segurança coletiva. A "segurança coletiva", resultado do exercício da força centralizada contra a força de indivíduos que possam causar prejuízos aos outros, é, também, o fim da polícia, pois "o regime de Estado tem por objetivo fazer reinar a ordem e a paz pela aplicação preventiva do Direito; num sentido elevado, é isso que recebe o nome de policia" (CRETELLA JUNIOR, 1968, p. 21).

De tal forma, em um Estado de Direito, a força só pode ser empregada conforme dispõe o ordenamento jurídico. Ainda que com fundamento na noção de segurança coletiva se é obrigado a condicionar o exercício de algum poder de polícia à sua previsão pelo ordenamento jurídico. Não há espaço para um poder de polícia autônomo. Por isso que, mesmo na perspectiva de quem vê na polícia um conjunto de meios e pessoas direcionados à finalidade de segurança coletiva, é incompleto o conceito de polícia segundo o qual esta seria o "conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as atividades dos administrados, através de medidas impostas a essas atividades, a fim de assegurar a ordem pública." (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 31), impondo-se o esclarecimento de que esses poderes coercitivos se exercem mediante restrições legais, como reconhecido em definição mais recente, já citada, segundo a qual polícia é o "conjunto de poderes coercitivos exercidos pelo Estado sobre as atividades do cidadão mediante restrições legais impostas a essas atividades, quando abusivas, a fim de assegurar-se a ordem publica"(CRETELLA JÚNIOR, 1985, p. 125).

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1.2. Polícia e a irrelevância de suas classificações

Uma das classificações utilizadas para a atividade de polícia leva em conta o momento da atuação. Desse modo, identifica-se uma polícia preventiva, que atuaria antes do evento danoso e uma polícia repressiva, que atuaria após. A polícia preventiva é classificada como polícia administrativa e a repressiva é classificada como polícia judiciária. Ainda tem sido ensaiada uma divisão nas categorias de polícia de segurança e polícia administrativa, criticada porque tal classificação interessaria à natureza da medida, mas não serviria para delimitar a área de atuação da autoridade (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 31-37).

A polícia administrativa é constituída pelas atividades de polícia relacionadas aos vários ramos da administração e a polícia de segurança é um ramo da polícia administrativa que tem por objeto a tutela de direitos individuais em oposição à proteção de bens, objeto de outra espécie de polícia. A polícia administrativa poderia ser dividida em ramos que correspondem aos ramos da Administração. Uma primeira divisão indica dois ramos da polícia administrativa, o geral e o especial. A polícia administrativa geral atenderia a fins preventivos desvinculados de outro serviço público e teria por escopo a segurança, a tranqüilidade e a salubridade públicas. A polícia administrativa especial seria acessória de outros serviços públicos (CRELLA JÚNIOR, 1968, 59-62).

Essa divisão também é admitida por Hely Meirelles (2006, p. 131) que relaciona polícia administrativa especial a "setores específicos da atividade humana que afetem o interesse coletivo, tais como a construção, a indústria de alimentos, o comércio de medicamentos, o uso das águas, a exploração das florestas e das minas, para os quais há restrições próprias e regime jurídico peculiar".

Retornando a Moreira Neto, antes citado, colhe-se a observação de que a polícia judiciária é espécie do gênero polícia, destacado da polícia administrativa. A polícia administrativa incide nas atividades das pessoas, em suas liberdades e direitos fundamentais. A polícia judiciária incide nas pessoas, no direito de ir e vir, dirigindo-se à repressão de comportamentos típicos. Então, à polícia administrativa incumbe exercer as atividades preventivas e repressivas não atribuídas à polícia judiciária. Hely Meirelles (2006, p. 131) adota concepção semelhante, destacando que a polícia administrativa incide sobre bens, direitos e atividades, enquanto a polícia judiciária e, também, a polícia de segurança se exerce sobre as pessoas, individual ou indiscriminadamente.

Há uma polícia administrativa geral, como se viu. Mas, também há uma polícia administrativa especial, relacionada a específicos serviços públicos. Pode-se ainda classificar a atividade de polícia em ramos, campos e setores de atuação. A polícia de segurança, a de salubridade, a de decoro e a de estética, podem ser vistas como ramos (CRETELLA JUNIOR, 1968, p. 60-61) ou como campos de atuação (MOREIRA NETO, 2005, p. 401-403). Uma outra classificação distingue campos ou setores de atuação da polícia. Com isso, é possível distinguir-se, por exemplo, atividades de polícia sanitária, de polícia ambiental, de policia edilícia, de polícia da propriedade, das construções, do trânsito, de estrangeiros, das profissões, do comércio, dos costumes, de comunicação, de viação, de comércio, de indústria. A dificuldade, adverte Cretella Júnior (1968, p. 61), não está em relacionar os possíveis campos de atuação da polícia administrativa, mas em encontrar um critério que leve seguramente à classificação sistemática e suficiente de todas as espécies que o gênero polícia administrativa comporta.

Há alguma imprecisão nas classificações sugeridas. É de se observar que polícia administrativa ora é espécie do gênero polícia e ora é gênero de outras espécies. O que se entende como campo de atuação pode ser considerado setor de atuação, este definido como subdivisão daquele. De qualquer modo, não parece que tal sistematização tenha efeito prático considerável. Como já referido, essas divisões interessam à natureza da medida, mas não servem para delimitar a área de atuação da autoridade. Fica a compreensão de que polícia administrativa, polícia de segurança e polícia judiciária se revelam como espécies do gênero polícia, não sendo relevante as distinções peculiares, relacionadas a específicos serviços públicos.

Até mesmo a classificação da polícia em geral e especial não interessa ao nosso Direito. Vem da doutrina francesa a distinção entre polícia geral, concernente à tranqüilidade, à segurança e à salubridade públicas, e polícia especial, concernente aos outros campos de atuação. No direito francês, a Administração é autorizada a intervir por meio de regulamentos autônomos, quando se trata de segurança, tranqüilidade e salubridade públicas, e permanece submetida às leis que regulam seus poderes nas outras intervenções. Ora, no nosso Direito, "foge à alçada regulamentar inovar na ordem jurídica", os regulamentos existem para dar fiel cumprimento às leis, não se admitindo regulamento autônomo. Então, não nos interessa a distinção entre polícia de segurança, tranqüilidade ou salubridade e a concernente aos outros campos de atuação da Administração, porque todas as intervenções devem se dar no mesmo nível.(BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 830-831).

Mas polícia é expressão possível de entender-se como "regra de polícia", vista esta como um conjunto de normas impondo certas condutas aos cidadãos, nas relações interpessoais ou no exercício de atividades. Em sentido amplo, regra de polícia seria regra de direito. Direito e polícia, seriam uma mesma coisa, como sustentava Montaigne. Entretanto, em uma segunda acepção, polícia estaria referida aos atos de execução das leis e dos regulamentos e "Se a polícia é uma atividade ou um aparelhamento, o poder de polícia é o princípio jurídico que informa essa atividade, justificando a ação policial, nos Estados de Direito." (CRETELLA JUNIOR, 1968. p. 50-51, grifos do autor).

Então, o que se mostra relevante é o fundamento do poder de polícia. Promover a execução das leis é dever da Administração. Para cumprir tal dever, a Administração é compelida a exercer a autoridade, nos limites impostos pelas leis, "indistintamente sobre todos os cidadãos que estejam sujeitos ao império destas leis". Tal é a "supremacia geral" da Administração. "O poder, pois, que a Administração exerce ao desempenhar seus encargos de polícia administrativa repousa nesta, assim chamada, ‘supremacia geral’, que, no fundo, não é senão a própria supremacia das leis em geral, concretizada através de atos da Administração." (BANDEIRA DE MELLO, 2009. p. 816-817, grifos do autor).

Entende Cretella Júnior (1968, p. 43-45) que o poder de polícia é inerente ao Estado, sendo este inseparável daquele. Mas, deve-se destacar que poder de polícia não é uma velha expressão, pois teve origem na Jurisprudência norte-americana onde o "police power" foi cunhado em decisão que data de 1853. Aí, além da segurança, da salubridade e da moralidade, o poder de polícia se aplicaria à regulação econômica e ao bem-estar social.

Nos países europeus construiu-se uma doutrina associando o poder de polícia à defesa da ordem pública, da segurança e da salubridade, chegando-se ao entendimento de que, enquanto polícia é "um conjunto de regras impostas pela autoridade pública aos cidadãos", poder de polícia nada mais é do que o poder de fazer cumprir essas regras (CRETELLA JÚNIOR, 1968, p. 46).

1.3. Poder de polícia e a potestade pública

Entre nós, já se definiu poder de polícia como "a manifestação do poder público tendente a fazer cumprir o dever geral do indivíduo", segundo Aurelino Leal; "a faculdade ou poder jurídico de que se serve a Administração para limitar coercitivamente o exercício da atividade individual, em prol do benefício coletivo, assecuratório da estabilidade social", segundo Matos de Vasconcelos;"exercício do poder sobre pessoas e coisas, para atender ao interesse público" e "faculdade de manter os interesses coletivos, de assegurar os direitos individuais feridos pelo exercício de direitos individuais de terceiros", segundo Brandão Cavalcanti; "poder que tem por seu imediato objeto promover o bem comum subordinado a ele, restringindo em seu benefício os direitos privados", segundo Guimarães Menegale; "conjunto de atribuições concedidas à administração para disciplinar e restringir, em favor do interesse público adequado, direitos e liberdades individuais", segundo Caio Tácito; "expressão em que se costuma sintetizar a competência discricionária da Administração, para quanto concerne à segurança, à ordem, à saúde e ao sossego públicos", segundo Seabra Fagundes; e "faculdade discricionária da administração de limitar a liberdade individual em prol do interesse coletivo", segundo Cretella Junior. (CRETELLA JUNIOR, 1968, p. 48-56).

"Podem variar as aplicações do poder de polícia, de sistema para sistema, de governo para governo, mas a potestas politiae é imutável, de nada depende, porque é princípio que se exaure em si mesmo, pondo-se como pedra angular do mundo jurídico, fiel de balança que impede a confusão entre o arbitrário e o discricionário, autorizando a ação policial, mas limitando-a, permitindo que a atividade do particular se exercite ao máximo, sem que interfira, porém, com a atividade conferida a outro particular, de tal modo que se concilie o arbítrio de um com o arbítrio de outro, numa expressão total de esforços disciplinados." (CRETELLA JUNIOR, 1968. p. 56)

Autores modernos, tanto quanto os antigos, coincidem em conceituar o poder de polícia como faculdade da Administração Pública de restringir direitos individuais em beneficio do "interesse público". Hely Meirelles (2006, p. 131) define poder de polícia como "faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais em benefício da coletividade ou do próprio Estado". Bandeira de Mello (2009, p. 815) expõe que "A atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-a aos interesses coletivos designa-se poder de polícia.".

Carvalho Filho (2008, p. 68) conceitua poder de polícia como "prerrogativa de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade". Di Pietro (2005, p. 109-111) esclarece que na conceituação clássica, poder de polícia era "atividade estatal que limitava o exercício dos direitos individuais em beneficio da segurança" enquanto que, na conceituação moderna, trata-se de "atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público", tendo o poder de polícia por fundamento "o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que dá à Administração posição de supremacia sobre os administrados".

Hely Meirelles (2006, p. 132), sustentando-se em autores norte-americanos, descreve o poder de polícia (police power), em sentido amplo, como toda regulamentação interna do Estado, visando tanto assegurar a ordem pública quanto prevenir conflitos de direitos. Cita a definição de Caio Tácito que, como se viu, apresenta como finalidade do poder de polícia a restrição de direitos individuais em benefício do interesse público e destaca que a conceituação assim elaborada pela Doutrina, essencialmente, foi encampada pela legislação nacional, como consta do Código Tributário Nacional:

Art. 78. - Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão do interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício das atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

O interesse social motiva o poder de polícia, cujo fundamento é a supremacia do Estado, expressa em normas restritivas de direitos individuais. A cada restrição de direito individual se aplica um correspondente poder de polícia capaz de torná-la efetiva. "As liberdades admitem limitações e os direitos pedem condicionamento ao bem-estar social" e "Essas restrições ficam a cargo da polícia administrativa" (MEIRELLES, 2006. p. 133).

A exemplo da doutrina alemã, italiana e espanhola, pode-se distinguir supremacia geral e supremacia especial da Administração. A supremacia especial se dá nas relações em que o administrado voluntariamente se submete ao estatuto das instituições, caso em que seria admitida a modulação do princípio da legalidade. A supremacia geral é a exercida em relação a todo e qualquer cidadão pela simples razão de ele fazer parte de uma comunidade, prescindindo de relação estatutária entre ele e a instituição. A regra a observar é que, com fundamento na supremacia geral, não há poder para a Administração agir, além do expresso em lei. (BANDEIRA DE MELLO, 2009. p. 817-821).

É também este o entendimento de Vitta (2003, p. 84), lembrando que só a lei pode obrigar o cidadão a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Nenhuma norma, além da legal, pode estabelecer sanções ou definir infrações a que aquelas se aplicam, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade.

Na denominada supremacia geral, em que a sujeição do particular não se atém a determinado liame, por intermédio do qual o indivíduo ingressa na intimidade da organização administrativa, o princípio da legalidade vige na sua mais ampla acepção; apenas a lei formal, editada pelo Legislativo poderá estabelecer infrações e sanções administrativas. (VITTA, 2003, p. 84)

Moreira Neto (2005, p. 395-396), não dedica um capítulo ou um título de sua obra ao "poder de polícia". Refere-se à polícia, destacando a evolução histórica do instituto e o constitucionalismo norte-americano, onde foi cunhada a expressão poder de polícia. Ressalta que "Chegou-se, assim, ao atual conceito de função administrativa de polícia, por meio da qual o Estado aplica restrições e condicionamentos legalmente impostos ao exercício das liberdades e direitos fundamentais, tendo em vista a assegurar uma convivência social harmônica e produtiva". Adverte o autor que, na nossa ordem jurídica, o "emprego do poder estatal para restringir e condicionar liberdades e direitos individuais é uma exceção às suas respectivas afirmações constitucionais" e tal seria a razão desse emprego só poder ocorrer "sob reserva legal". Enfim, édo legislador a atribuição de criar normas de polícia "para alterar e adequar os direitos individuais ao convício social".

Com este esclarecimento sobre o que se deve entender pela difundida expressão, poder de polícia, chega-se a um conceito didático que põe em evidência a característica de instrumentalidade acima sublinhada: denomina-se polícia à função administrativa que tem por objeto aplicar concreta, direta e imediatamente as limitações e os condicionamentos legais ao exercício de direitos fundamentais, compatibilizando-os com interesses públicos, também legalmente definidos, com a finalidade de possibilitar a convivência ordeira e valiosa. (MOREIRA NETO, 2005. p. 396).

A apontada instrumentalidade do poder de polícia, que se estima coerente com a sistematização dos direitos fundamentais, parece confrontar noções mais antigas e o desacordo seria quanto ao emprego da expressão "supremacia do interesse público".

Em Cretella Junior (1972, p. 55-58), encontra-se a tese de oposição entre a pessoa jurídica de direito público e a pessoa jurídica de direito privado, que seria demonstrada, especialmente, pela criação, pela finalidade e pela capacidade, justificando prerrogativas ou privilégios da pessoa de direito público, um poder de imperium, uma vontade imperante, razão de ser dos atos de potestade pública que os órgãos do Estado praticam, exorbitando o direito comum. Haveria um princípio das prerrogativas públicas, traduzido como "faculdades especiais conferidas à Administração, quando se decide a agir contra o particular". O conjunto das prerrogativas e privilégios usufruídos ao agir para efetivar o interesse geral comporia a potestade pública."Da potestade pública ou potestas imperii advém a situação privilegiada da Administração, desnivelando-a diante do particular e tornando-a idônea para impor, em condição bastante vantajosa, sua vontade, em nome do interesse público." A finalidade da Administração é a satisfação dos interesses coletivos, que, não raro, cobram o sacrifício do interesse particular, ressalta o autor. Mas a Administração seria paralisada se, sempre que pretendesse agir, fosse obrigada a consultar interesses particulares. Assim, o Estado teria dotado a Administração de potestade pública, regime jurídico caracterizado por prerrogativas e sujeições. As prerrogativas têm fundamento no interesse público, "impõem-se sem prévia consulta ao administrado", derrogam o direito comum e "põem em evidência o traço de império da Administração". As sujeições, ou restrições, obrigam o administrador a agir com impessoalidade. Por fim, diz Cretella Junior, o fundamento da potestade pública é o interesse público: "Salus reipublicae suprema lex esto"

Então, é na potestade pública que se fundamentaria o poder de polícia segundo a maior parte das definições antes apresentadas, as quais, essencialmente, se referem a ele como atividade, faculdade ou prerrogativa da Administração de restringir, condicionar ou limitar direitos individuais em beneficio da coletividade, do Estado ou do interesse público.

O poder de polícia serve para impedir que os indivíduos perturbem a ordem pública. É uma noção afinada com o conceito de potestade pública e que não se distancia da definição de Cretella Junior (1968, p. 56): "Poder de polícia é faculdade discricionária da administração de limitar a liberdade individual em prol do interesse coletivo".

Bandeira de Mello (2009, p. 58-62) informa que é inválido todo ato administrativo contrário ao interesse público. Por sua vez, o "interesse público" não se trataria de algo autônomo. Seria o interesse do todo uma qualificação dos interesses das partes. Mesmo que possa acontecer do interesse público contrariar determinado interesse individual, não é lógico afirmar a existência de um interesse do todo ao mesmo tempo contrário ao interesse da cada uma de suas partes. Interesse público é "o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem". Isto é, segundo Bandeira de Mello, o interesse público não é desvinculado dos interesses individuais, sendo-lhes, porém, superior, porque se trata de uma qualificação deles.

1.4. Poder de polícia e o princípio da legalidade

Mas há uma corrente que propõe a desconstrução do princípio da supremacia do interesse público e não partilha da opinião de que a potestade pública ou o interesse público fundamenta o poder de polícia, por entender que "é ainda comum a invocação do ‘interesse público’ como meio de justificar qualquer medida restritiva das liberdades públicas [...]". O argumento fundamental dessa corrente é o de que se devem levar em conta os interesses públicos, estatais e sociais, na ponderação de interesses, mas que isso não justificaria, "partir do pressuposto de que sempre deva prevalecer sobre quaisquer interesses privados, mesmo quando já haja regra constitucional específica dirimindo o conflito entre eles.". (ARAGÃO, 2007)

Nesse mesmo rumo, Daniel Sarmento (2007) opõe-se à tese de que a supremacia do interesse público possa tratar-se de um axioma do Direito Público. O entendimento de que haja interesse público que não se confunde com interesses individuais dos componentes de uma sociedade e que lhes é superior, constituiria uma idéia organicista, insustentável no Estado Democrático de Direito. Adverte, então, para a impossibilidade de a tutela de interesses coletivos autorizar restrições a direitos fundamentais:

Recorde-se, por outro lado, que a compreensão sobre a preeminência dos direitos fundamentais na ordem jurídica tem levado a melhor doutrina administrativista a repensar a definição clássica de poder de polícia, que, infelizmente, ainda hoje se pode encontrar na maioria dos manuais nacionais, segundo a qual tratar-se-ia de atividade administrativa voltada à submissão dos direitos individuais aos interesses da coletividade. Esta, na verdade, era uma concepção própria do Estado de Polícia, e que não se concilia com o ideário do Estado de Direito, que postula a plena vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais.[..] (SARMENTO, 2007)

A "suposta supremacia do interesse público sobre o particular" não legitima restrições a direitos fundamentais. Os limites aos direitos fundamentais são estabelecidos diretamente na Constituição, ou dispostos em leis restritivas autorizadas pela Constituição, ou decorrentes de restrições a que o texto constitucional não se referiu expressamente. Destas hipóteses, só a última poderia se intentar associar a uma supremacia do interesse público. Entretanto, em tal caso, só se justificaria alguma restrição a direito fundamental para proteção de outro direito fundamental ou de algum interesse do Estado ou da coletividade, com envergadura constitucional. Se assim não for, estar-se-ia admitindo que interesses de nível legal ou infralegal se sobrepusessem à tutela dos direitos constitucionais (SARMENTO, 2007)

Esta é, aliás, uma razão adicional para a recusa à admissão de um princípio da supremacia do interesse público como critério de limitação de direitos fundamentais. Como nem todo interesse público possui berço constitucional, não há como postular sua prevalência sobre tais direitos. (SARMENTO, 2007).

As restrições a direitos fundamentais devem emanar de lei "geral, abstrata e suficientemente densa e determinada", que permita previsibilidade e segurança jurídica. Não são válidas restrições a direitos fundamentais que se apresentam com excessiva vagueza. Cláusulas "muito gerais" violam o princípio da reversa legal, por transferir para a Administração a atribuição de estabelecer concretamente os limites ao exercício de direitos fundamentais. Tal prática também interfere na sindicabilidade judicial dos direitos fundamentais, na medida em que priva os julgadores dos parâmetros objetivos de controle. Mas, o que é pior, o princípio da supremacia do interesse público não se compatibiliza com o princípio da proporcionalidade, porque afasta a possibilidade de ponderação por afirmar, a priori, a supremacia daquele interesse sobre o interesse particular. Ainda assim, advoga-se a defesa do princípio a supremacia do interesse público sobre o particular, numa "versão mais fraca", adotando-a como regra de precedência prima facie no caso de conflito entre ambos os interesses. Nessa concepção, o interesse público prevaleceria sobre o privado, sendo possível ocorrer o inverso, com o ônus argumentativo maior para defesa do interesse particular. Isso, porém, também fragiliza os direitos fundamentais, desconsiderando o status constitucional deles. Então, tanto a concepção "forte", quanto a "fraca" devem ser descartadas (SARMENTO, 2007).

E mais, por todas as razões acima aventadas, entendemos que, diante de conflitos entre direitos fundamentais e interesses públicos de estatura constitucional, pode-se falar, na linha de Alexy, numa ‘precedência prima facie’ dos primeiros. Esta precedência implica na atribuição de um peso inicial superior a estes direitos no processo ponderativo, o que significa reconhecer que há um ônus argumentativo maior para que interesses públicos possam eventualmente sobrepujá-los. Assim, o interesse público pode até prevalecer diante do direito fundamental, após um detido exame calcado sobretudo no princípio da proporcionalidade, mas para isso serão necessárias razões mais fortes do que aquelas que permitiriam a ‘vitória’ do direito fundamental. E tal idéia vincula tanto o legislador – que se realizar ponderações abstratas que negligenciarem esta primazia prima facie dos direitos fundamentais poderá incorrer em inconstitucionalidade – como aplicadores do Direito – juízes e administradores – quando se depararem com a necessidade de realização de ponderações in concreto (SARMENTO, 2007).

Deve-se questionar se seria admissível a supremacia do interesse público sobre interesse particular sem status de direito fundamental. Desta feita o que se descarta é a primazia incondicional do interesse público. Terá de incidir o princípio da legalidade administrativa opondo-se ao generalizado apelo aos interesses públicos para restrição de interesses individuais. O Estado só pode agir quando autorizado pela lei. Logo, os interesses públicos só podem ser alegados em detrimento de interesses particulares, consoante previsão legal.

É verdade, contudo, que no contexto atual de separação do legicentrismo, a vinculação do administrador à lei foi substituída pela sua subordinação ao ordenamento jurídico como um todo, no qual despontam, com importância capital, a Constituição e seus princípios. Assim, a exigência de lei formal para autorização da ação administrativa foi mitigada, admitindo-se hoje que a própria Constituição, pela força normativa que desfruta, possa fundamentar a atuação da Administração, independentemente de mediação legislativa. Entende-se assim que a Administração Pública encontra-se vinculada não apenas à lei, mas antes a todo um "bloco de legalidade", que incorpora princípios, objetivos e valores constitucionais, e a esta nova formulação tem se atribuído o nome de princípio da juridicidade, ou da legalidade em sentido amplo. Trata-se, contudo, de uma idéia de mão-dupla, pois da mesma forma que se presta para fundamentar, a partir da Constituição, ações da Administração Pública, ela serve também para limitá-la, impondo o acatamento imediato dos princípios e valores constitucionais. (SARMENTO, 2007)

Assim, considerada a inadmissibilidade da supremacia do interesse público sobre direitos fundamentais e considerada a necessária submissão da Administração ao princípio da legalidade, ainda que seja um interesse privado não incluído no catálogo dos direitos fundamentais, parece descartável a noção de supremacia do interesse público. Do que se deve cogitar no conflito entre interesse público e interesse privado é da aplicação do princípio da proporcionalidade, do que pode resultar o destaque de um ou de outro, não sendo correto aventar-se uma primazia incondicional do interesse público.

Humberto Ávila (2007) entende que a supremacia do interesse público não é uma norma-princípio, uma vez que a sua descrição abstrata não admite graduação, apresentando a sua prevalência como única possibilidade de aplicação. A supremacia do interesse público seria "uma regra abstrata de preferência no caso de colisão ("Kollisiononspräferenzregel) em favor do interesse público, nunca, porém, uma norma-princípio prima facie". Mas, à regra faltaria fundamento de validade. A Constituição protege a liberdade, a igualdade, a cidadania, a segurança e a propriedade com tanta ênfase que se regra abstrata e relativa de prevalência houvesse, seria em favor dos interesses privados. Dessas garantias constitucionais deriva um ônus de argumentação em favor dos interesses privados e em prejuízo dos interesses coletivos. Logo, em iguais condições, prioritários serão os interesses privados. De certo modo, assim tem se manifestado a Jurisprudência. Constata o autor que as decisões do STF não têm se referido diretamente à existência ou não de uma supremacia do interesse público. "Não obstante, demonstram a necessidade de previsão normativa para qualquer intervenção estatal, ficando o ‘interesse público’ sem significado autônomo".

Mas "não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de Direito Público" (BANDEIRA DE MELLO, 2009. p. 65). Com isso se quer destacar a existência dos interesses primários do Estado que correspondem aos interesses públicos propriamente ditos e interesses secundários, que são particulares da pessoa jurídica Estado, similares aos interesses individuais, lembrando que só os interesses primários têm supremacia sobre interesses privados. Todavia, a individualização dos interesses públicos estaria no Direito Positivo. A qualificação de tais interesses radicaria na Constituição. Com esse pressuposto, a proteção de interesse privado segundo previsão da Constituição também constituiria um interesse público a resguardar. É o que ocorre na indenização do desapropriado e de quem sofre lesão causada pelo Estado (BANDEIRA DE MELLO, 2009. p. 68-69).

Só mesmo em uma visão muito pedestre ou desassistida do mínimo bom senso é que se poderia imaginar que o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado não está a reger nos casos em que sua realização traz consigo a proteção de bens e interesses individuais e que, em tais hipóteses, o que ocorre...é a supremacia inversa, isto é, do interesse privado! (BANDEIRA DE MELLO, 2009. p. 69)

A propósito do texto transcrito, é de aceitar que, de fato, num Estado que tem por mandamento constitucional a tarefa de proteger e defender direitos fundamentais, garantir esses direitos é interesse público, conforme registra Daniel Sarmento (2007, p. 83).

Todavia, vale a ressalva de que se o interesse público e o privado não podem separar-se conceitualmente, então não pode um prevalecer sobre o outro, nem eles podem estar em contradição. "Interesse público como finalidade fundamental da atividade estatal e supremacia do interesse público sobre o particular não denotam o mesmo significado.". Por isso, a constatação de que cabe à Administração atender ao interesse público não pode levar à conclusão de que há prevalência do interesse público sobre o privado. (AVILA, 2007, p. 191).

Ora, derradeiramente, deve-se reconhecer que o interesse público acaba sendo o interesse hegemônico em uma comunidade. Pode-se afirmar que é interesse do todo, função qualificada dos interesses das partes, o que, logicamente, não pode ser ao mesmo tempo contrário ao interesse de cada uma das partes (BANDEIRA DE MELLO, 2009, p. 59). Então, pode-se dizer que o interesse público há de corresponder a uma vontade geral da comunidade, mas, não necessariamente.

Para se ter um interesse público, basta ele se apresentar como vontade da maioria. Interesse público é o interesse majoritário. É possível, portanto, que parte da comunidade, a minoria, não veja no interesse público uma correspondência com o próprio interesse individual. Mesmo assim, a minoria contribuirá para a concretização do interesse majoritário, ou será compelida a fazê-lo. Nos regimes totalitários o interesse público é definido pelo governo, pela Administração, pelo Estado e não corresponde à noção antes delineada, própria de um Estado Democrático, "porquanto falta a coincidência com os interesses majoritários". (SILVA, 2004, p. 207)

Também parece claro que o interesse público não corresponda ao interesse da totalidade dos cidadãos que compõem determinada comunidade, os quais, em regra, colidem, pela própria característica de uma sociedade pluralista, como é a brasileira. Cumprir o interesse público não é atender ao interesse comum de todos os cidadãos – o que seria impossível -, mas beneficiar uma coletividade de pessoas que tenham interesses comuns, ainda que estes não correspondam à soma dos interesses individuais. O interesse público é despersonalizado. (SILVA, 2004, p. 209)

1.5. Poder de polícia, atividade sub-legal, função administrativa

Vista a controvérsia que cerca o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, destacada sua feição de interesse majoritário imposto às minorias, é oportuno examinar a assertiva que bem representa a expressiva maioria da Doutrina nacional, segundo a qual "O fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, que dá à Administração posição de supremacia sobre os administrados" (DI PIETRO, 2005, p. 109, grifo da autora).

Afirmar-se que o fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, com o esclarecimento de que o interesse público é o interesse majoritário imposto às minorias, provoca a comparação com o conceito inicialmente exposto de segurança coletiva como fim da polícia, esta entendida como centralização da força para garantir a ordem social. Resulta que, muito mais do que o termo "poder de polícia", o fundamento a ele atribuído tem conotação autoritária, fazendo retomar, como se disse ao início, a concepção de que o Estado é uma ordem coercitiva, posta para controlar comportamentos prejudiciais à sociedade, com o sacrifício de interesses minoritários em prol da coesão do grupo e da segurança comum.

Afirma Sundfeld (1997, p. 11) que há na noção de Poder de Polícia uma conotação autoritária, presente em conhecida formulação de Otto Mayer, segundo a qual "Poder de Polícia consiste na ação da autoridade para fazer cumprir o dever, que se supõe geral, de não perturbar de modo algum a boa ordem da coisa pública". Isso faz parecer que a atividade de polícia pode ser algo mais do que a função de aplicar leis reguladoras de direitos, única acepção em que se pode tomar a expressão "poder de polícia" num Estado de Direito.

O poder de polícia surge, nessa definição, como correlato do dever (não expresso na lei, mas suposto) de os particulares respeitarem dado valor, jurídico por natureza: a boa ordem da coisa pública. A competência para cuidar dele é implícita, parecendo normal que, além de dispor de todos os instrumentos para fazê-lo, a Administração defina com autonomia seu conteúdo. Daí a admitir, mesmo inconscientemente, a existência de poderes não previstos em lei, mas supostos na competência para cuidar da boa ordem da coisa pública é um passo. O grande problema é que nada disso se compatibiliza com o princípio da legalidade administrativa. (SUNDFELD, 1997, p. 11)

A conotação autoritária tem levado à proposta de abandono da expressão "poder de polícia". Para afastar essa idéia, tem-se utilizado mais frequentemente a expressão "polícia administrativa", evitando empregar a palavra poder. A expressão "poder de polícia" tem carga negativa e os riscos de sua utilização mantêm-se nos dias atuais. Basta atentar-se para a rápida ampliação das funções do Poder Público com vista à proteção dos consumidores, do patrimônio cultural e do meio ambiente, o que estaria servindo de pretexto a imposições diversas com relação à liberdade e à propriedade, sem a específica fundamentação legal. "A tendência natural, inclusive pela simpatia em torno desses valores, é de esquecer o princípio da legalidade". Todavia, a Constituição não concedeu poderes indefinidos à Administração e, no vácuo legal, preferiu a liberdade à proteção de certos bens (SUNDFELD, 1997, p. 11-12).

É essa crua realidade que o conceito de poder de polícia – ainda mais adoçado com a troca da boa ordem da coisa pública, por defesa do consumidor, do meio ambiente, do patrimônio cultural, etc. – teima em obscurecer. Destarte, é forçoso descartá-lo, em busca de outro modo, mais feliz, de designar atividade que, como todo agir administrativo, significa aplicação da lei, e nada mais do que isso. (SUNDFELD, 1997, p. 13)

A expressão "poder de polícia" não é atualmente uma noção autônoma, porque essa função se espraiou por toda a atividade do Estado, não se limitando às clássicas e bem delimitadas áreas de segurança, salubridade e moralidade. A coerção estatal continua presente, mas não há uma atividade específica dos órgãos públicos a que se possa distinguir com a denominação de "poder de polícia". É equivocado querer fundamentar uma limitação de direito individual nesse conceito. As limitações aos direitos individuais devem sustentar-se concretamente em disposições constitucionais e em princípios jurídicos e não na noção de "poder de polícia" (GORDILLO, 2003. p. 13).

Com a mesma orientação, Grau (1993) informa que não existe um Poder de polícia. Essa expressão evocaria uma noção de prerrogativa da Administração que igualmente inexiste. Não há prerrogativas intrínsecas da Administração que embasem um poder de polícia ou que dele emanem. "O poder de polícia, em verdade, não é nem prerrogativa nem mera faculdade da Administração, porém função dela, dever-poder que vincula sua vontade. Daí dela dizer-se que consubstancia atividade sub-legal". Na noção de Otto Mayer, citado pelo autor, o poder de polícia se prestaria à realização de um "dever geral, que incumbe ao súdito, de não perturbar a coisa pública". Ora, dever é pressuposto que prescinde de disposição legal. Como competiria à Administração zelar pela ordem da coisa pública, então haveria uma competência reunindo poderes nem sempre expressos em lei, mas imanentes. Entretanto, ressalta o articulista, no Estado de Direito, com a adoção do princípio da legalidade, desloca-se o "ponto de sustentação do poder de polícia "de uma ‘natural e imanente’ competência da Administração para o "bloco de legalidade", isto é, para o conceito de legalidade, referido à totalidade do ordenamento jurídico.

O poder de polícia consubstancia atividade sub-legal, função administrativa, dever-poder. A Administração, pois, no seu exercício, está abrangida por um vínculo imposto a sua vontade (dever). Deve exercitá-lo prestando devido acatamento à legalidade, regra de conteúdo de sua atuação. Ou não deve – isto é, não pode – exercitá-lo. Se o caso de dever exercitá-lo – isto é, se houver norma dispondo neste sentido – pode, ao fazê-lo, fazer tudo quanto deva fazer: mas apenas isso, nada mais. Não pode fazer mais do que deva fazer. (GRAU, 1993)

É, portanto, conclusivo que a Administração não dispõe de um poder de polícia que se traduza em prerrogativas ou faculdades imanentes autorizando-a a restringir, condicionar ou limitar direitos individuais, seja a que pretexto for, inclusive o da controvertida supremacia do interesse público. Poder de polícia tem de significar exercício de "função administrativa por meio da qual o Estado aplica restrições e condicionamentos legalmente impostos ao exercício das liberdades e direitos fundamentais, tendo em vista a assegurar uma convivência social harmônica e produtiva", como define Moreira Neto, antes citado. Nessa direção seria possível falar-se em potestade pública, desde que ressaltado que só a potestade expressa em lei pode municiar a Administração.

O princípio da legalidade da Administração, com o conteúdo explicado, se expressa num mecanismo técnico preciso: a legalidade atribui potestades à Administração, precisamente. A legalidade outorga faculdades de atuação, definindo cuidadosamente seus limites, delega poderes, habilita a Administração para sua ação conferindo-lhe a tal efeito poderes jurídicos. Toda ação administrativa apresenta-se-nos assim como exercício de um poder atribuído previamente pela lei e por ela delimitado e construído. Sem uma atribuição legal prévia de potestades, a Administração, simplesmente, não pode atuar. (ENTERRIA e FERNANDEZ, 1990, p. 376-377)

Deste modo, conforme Enterría e Fernandez (1990, p. 383-395), a Administração só dispõe de potestades expressamente atribuídas pelo ordenamento jurídico, situação que decorre do princípio que exige delegação positiva de poderes para que a Administração possa agir, ainda que alguma concessão se faça à doutrina dos poderes implícitos, excepcionalmente inferidos da interpretação das normas. A atribuição de potestades à Administração também deve ser específica, o que obriga a que os poderes atribuídos pela lei tenham contorno concreto e determinado. Poder jurídico indeterminado seria ilimitado e, por isso, incompatível com o ordenamento, pois a falta de limites impossibilitaria os demais direitos. Não se concebe poder ilimitado da Administração quando o Estado reconhece os direitos fundamentais que, logicamente, limitam aquele. "Não há, pois, poderes administrativos ilimitados ou globais; todos são, e não podem deixar de ser, específicos e concretos, medidos, com um âmbito de exercício lícito (agere licere) detrás de cujos limites o poder desaparece pura e simplesmente". Entretanto, há os "conceitos jurídicos indeterminados". Enquanto para os conceitos determinados a lei delimita as hipóteses fáticas com precisão, para os conceitos indeterminados não há contornos de realidade bem delimitados. A imprecisão acontece porque, nesses casos, o legislador lida com conceitos que não admitem uma exata quantificação. De qualquer maneira, são hipóteses da realidade e, apesar da indeterminação com que são enunciados, tais conceitos podem ser determinados no momento da aplicação ao caso concreto. Assim, a indeterminação do enunciado não leva à indeterminação da aplicação, sendo admitida uma única solução justa para cada caso.

Assim, conceitos como urgência, ordem pública, justo preço, calamidade pública, medidas adequadas ou proporcionais, inclusive necessidade pública, utilidade pública e até interesse público, não permitem em sua aplicação uma pluralidade de soluções justas, senão uma só solução em cada caso. Observação com a qual se teriam convertido virtualmente (e a última doutrina alemã aceita esta solução extrema) a generalidade das potestades discricionais em reguladas, já que, explícita ou implicitamente, todas as potestades discricionais se outorgam para alcançar um interesse público, conceito indeterminado cuja aplicação só permitiria em cada caso uma única solução justa. (ENTERRIA e FERNANDEZ, 1990, p. 395)

Neste aspecto, é oportuna a definição de Bandeira de Mello (2009, p. 816):

O poder expressável através da atividade de policia administrativa é o que resulta de sua qualidade de executora das leis administrativas. É a contraface de seu dever de dar execução a estas leis. Para cumpri-lo não pode se passar de exercer autoridade – nos termos desta mesmas leis – indistintamente sobre todos os cidadãos que estejam sujeitos ao império destas leis. Daí a "supremacia geral" que lhe cabe.

Resulta que o poder da Administração no exercício da atividade de polícia tem fundamento na "supremacia geral" das leis e não no controvertido princípio da predominância ou supremacia do interesse público sobre o privado. Retomando Kelsen, o Estado é a ordem normativa que regula o mútuo comportamento dos indivíduos, uma ordem coercitiva, oposta aos comportamentos prejudiciais à sociedade a fim de proporcionar a segurança coletiva. Por sua vez, "polícia é o termo genérico com que se designa a força organizada que protege a sociedade, livrando-a de toda vis inquietativa",na definição de Cretella Júnior (1968, p. 13-14). A força organizada que protege a sociedade é a sua ordem normativa, então, poder de polícia é o poder da ordem normativa.

Por isso, conforme Grau (1993), "poder de polícia" refere-se a uma atividade sub-legal, função administrativa, dever-poder, que a Administração é obrigada a exercer, quando há previsão legal para fazê-lo, e é proibida de exercer, na falta de previsão legal. Presentes essas noções, é possível afirmar que é irrelevante omitir-se a palavra "poder" ao designar a atribuição de polícia da Administração. O emprego da palavra não autoriza a Administração a agir sine lege e a sua omissão não a impede de agir segundo a lei. Assim, é na lei que o "poder de polícia" encontra seu fundamento e é na lei que estão os limites do seu exercício.

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Sobre o autor
Darcy Fernando Brum

Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Especialização em Politica pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Especialização em Direito Publico pela ESMAFE. Pos Graduando em Direito Ambiental pela UFPel. Advogado em São Lourenço do Sul/RS.<br><br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRUM, Darcy Fernando. O poder de polícia da autoridade marítima brasileira.: Fundamento, características e limites. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2600, 14 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17177. Acesso em: 22 nov. 2024.

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