RESUMO: Com o ressurgir do instituto da colaboração processual, direito premial, emergem diversos questionamentos, quanto à plausibilidade de sua aplicação e a retidão de sua fundamentação, na esfera axiológica, pedagógica e, precipuamente, na ordem jurídica. De tal arte, empós minuciosa análise de tão controverso tema, resta aos cultores do direito ter a cognição Maquiavélica de se os funestos meios premiados seriam capazes de justificar o aclamado fito de combate a criminalidade hodierna.
PALAVRAS-CHAVE: direito premial; colaboração processual; princípio da isonomia; direito comparado.
O vetusto instituto da delação premiada, retratada liminarmente na Bíblia [01], fora introduzido em nosso ordenamento jurídico por intermédio das Ordenações Filipinas [02], havendo perdurado até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830.
Desmiúde, porém, que com o perpassar dos anos, e o aflorar de novas modalidades criminosas, exsurge das cinzas a denotada colaboração processual [03]. Em seu bojo, reverbera-se o acalorado debate entre as questões de política criminal [04], aliadas ao funcionalismo penal, versus a perspectiva ética de um desvalor, contrária – em sua essência – à concepção de vida moral alicerçada na dignidade da pessoa humana [05].
De qualquer modo, antes de adentramos nas trincheiras de tão tormentoso campo das ideações, é de imperiosa necessidade conceituarmos o objeto do presente trabalho.
Nessa vertente, denota-se que a delação premiada traduz a concessão de algumas vantagens – como redução da sanção penal ou, até mesmo, a inexistência de sua subsunção - àquele que confessa (sponte sua) a prática de determinado ato deletério ao mesmo passo em que pontua os demais autores e partícipes do ato ilícito.
Desta sorte, com estofo em inúmeros cultores do direito, o referido mecanismo exterioriza a falência do aparato investigatório e punitivo estatal. Isso porque, o Estado, ao reconhecer a cultura antivalorativa e antipedagógica [06] de que a traição merece benefícios, acaba por transigir com os mais elementares princípios éticos – verbi gratia, os valores de justiça, equidade, etc.
De mais a mais, questiona-se, outrossim, se tal meio espúrio é capaz de justificar o fim de combalir a criminalidade. É que, na senda deste luminar, professam-se sedimentadas críticas, como: a) a inexistência de mecanismos protetivos ao colaborador processual, que padece da possível represália de um dos agentes delatados; b) a possível utilização, pelo colaborador, dos mecanismos jurisdicionais como forma de retaliação às pessoas delatadas; c) o reemprego do ignóbil sistema inquisitivo, com a supervalorização da confissão do colaborador [07] e com o direcionar do processo à condenação das pessoas ligadas ao ato criminoso, e, derradeiramente, d) o vilipêndio aos axiomas da isonomia e proporcionalidade, ao se desvirtuar a equivalência da sanção penal de acordo com a culpabilidade de cada um no caso concreto.
Mutatis mutantis, apesar da louvável linha de raciocínio suso esboçada, cumpre obtemperar o outro cunho da moeda. Id est, a existência triunfal deste método de colaboração processual noutros ordenamentos jurisdicionais.
Nessa conjuntura, há de se destacar o êxito do modelo anglo-saxão (common law), pautado na condução processual pelos mecanismos da plea bargaining e guilty plea – sistema que encoraja as negociações entre defesa e acusação para a solução do litígio penal – e, identicamente, nas garantias da advertência (warning) [08]e da imprescindibilidade de outros elementos probatórios no mesmo sentido da colaboração premial (corroboration).
Ademais, na mesma alheta, calha salientar o congratulado emprego deste mecanismo na sistematização romano-gêrmanica (civil law) italiana. En passant, fator determinante para o debelar dos crimes organizados existentes naquela localidade (máfias).
Para tanto, pari passu com a estruturação anglo-saxã, a solução encontrada pelo sistema do pentito fora a exigência da junção dos lapidados dizeres do declarante com elementos objetivos externos [09], de modo que se conferisse credibilidade àquilo externado pelo colaborador.
De tal arte, ao se vislumbrar o adequado uso da colaboração premial no direito comparado, bem como ao rememorar as inovações advindas da nova ordem constitucional (neoconstitucionalismo) [10], conclui-se que inexiste qualquer óbice quanto à utilização deste instituto.
Senão vejamos.
A limine, apesar da existência de luminar antípodo, destaca-se a inviabilidade do colaborador usufruir dos mecanismos jurisdicionais como forma de retaliação às pessoas delatadas. Isso porque, com espeque no princípio do contraditório [11] - corolário do due processo of law –, bem como do princípio da não culpabilidade [12] (artigo 5°, inciso LVII, da CRFB) – dada a filtragem constitucional [13] –, assegura-se a impossibilidade de um decreto condenatório sem estar acoroçoado em demais elementos probatórios.
Nota-se aqui, en passant, que a presença do devido processo constitucional, precipuamente em sua dimensão substancial (substantive due process), esboroa completamente a ideia da revitalização do pérfido sistema inquisitivo.
Por demais, sequer há de se falar em qualquer vilipêndio ao axioma da isonomia, ou quiçá da proporcionalidade, haja vista a adoção, em nossa sistematização, da teoria valorativa, que possibilita uma igualdade material, com distinções justificadas. Nesta tela, reverbera-se a compatibilidade desta isonomia substancial com o princípio da individualização da pena, fundada em questão de política criminal.
De forma derradeira, é imperioso permutarmos nosso prisma quanto a algumas assertivas. Noutra palavra. Tal qual as lentes de um fotógrafo, é indispensável a alternância de perspectivas para uma abordagem mais extensiva e clara dos mais variados assuntos, jurídicos ou não. Decerto, é a partir desse exame detalhado que exsurge a viabilidade de se externar sobre as mais variadas formas de pensar com propriedade.
Nesse diapasão, é inconfutável uma comutação da imagem estigmatizada da delação premiada. Ou seja, é possível perfazer uma representação positiva da colaboração processual, esboçando que o arrependimento – pautado na boa-fé subjetiva – do colaborador é o estopim para um vindouro desmantelamento de uma organização criminosa (verbi gratia), ao invés de uma abordagem crítica, onde ela é visualizada como uma traição capaz de trazer benefícios.
Daí, ex positis, ainda que falha nossa legislação quanto à proteção dada aos colaboradores processuais [14], deveras plausível, e positiva, a adoção da delação premiada em nosso ordenamento. Diga-se de passagem, em mera elucubração, quiçá possível sua eventual extensão para outros diversos tipos penais, a serem revisados pelo Poder Legiferante.
Referências bibliográficas:
DELMAS-MARTY, Mireille. Modelos e movimentos de política criminal. Rio de Janeiro: Revan, 1992;
FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992;
GOMES, Luiz Flávio. Delação premiada e aspectos processuais penais. Material da 3ª aula da disciplina criminalidade econômica e organizada, ministrada no curso de especialização televirtual em ciências penais da Universidade Anhanguera – Uniderp/Rede LFG;
PEREIRA, Frederico Valdez. Valor probatório da colaboração processual. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, ano 98, v.879. jan.09;
RIVA, Carlo Ruga. Il premio per la collaborazione processuale. Milano: Giuffrè, 2002.
Notas
-
Conhecida passagem onde Judas Iscariotes entrega
Jesus Cristo aos sacerdotes, por intermédio de um beijo (Lc22,47), com o fito
de obter exatas trinta moedas de prata (Mt 26,15; 27,3).
- Datada de 11 de janeiro do ano de 1603.
- Parágrafo único, artigo 8º, da Lei 8.072, de 25-07-90; artigo 6º, da Lei 9.034, de 03-05-1995; parágrafo 4º, artigo 159 do Código Penal; parágrafo 5º, artigo 1º, da Lei 9.613, de 03-03-1998; artigos 13 e 14, da Lei 9.807, de 13-07-1999; o revogado parágrafo 2°, artigo 32, da Lei 10.409, de 11-01-2002; e, artigo 41, da Lei 11.343, de 23-08-2006.
- Definido como o conjunto dos procedimentos por meio dos "quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal". DELMAS-MARTY, Mireille. Modelos e movimentos de política criminal. Rio de Janeiro: Revan, 1992. p.24.
- FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p.221.
- JESUS, Damásio Evangelista de. Boletim IBCCrim n.5, p.1 (apud GOMES, Luiz Flávio. Delação premiada e aspectos processuais penais. Material da 3ª aula da disciplina criminalidade econômica e organizada, ministrada no curso de especialização televirtual em ciências penais da Universidade Anhanguera – Uniderp/Rede LFG. p.23).
- Note a semelhança com o funesto brocardo confessio est regina probationum.
- Vislumbre que no processo penal inglês a valoração probatória é matéria reservada aos jurados. Não por outra razão, imprescindível a necessidade de adverti-los (warning) do desastroso risco de uma condenação criminal sob o pálio de informações prestadas pelo colaborador, tão-somente.
- Antolha-se! Tal fenômeno recebe a tipologia de co-réu vestida. CUERDA-ARNAU, Maria Luisa. Atenuación y remisión de la pena en los delitos de terrorismo. Madrid: Ministerio de Justicia e Interior, Centro de Publicaciones, 1995. p.223 (apud PEREIRA, Frederico Valdez. Valor probatório da colaboração processual. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, ano 98, v.879. jan.09, p.481). Em idêntico cipoal: RIVA, Carlo Ruga. Il premio per la collaborazione processuale. Milano: Giuffrè, 2002. p.13-15.
- Exempli gratia, no caso em testilha,a) a importância dada aos valores; b) o caráter normativo atribuído aos axiomas; e, precipuamente, c) o respeito dos direitos fundamentais – com inconfutável promoção da dignidade da pessoa humana.
- Tanto em sua acepção formal (participação), quanto em sua acepção substancial (poder de influência nas deliberações do pretor).
- Princípio relacionado ao agente do fato.
- Tal fenômeno, igualmente denominado de contaminação virótica da constituição, traduz uma leitura da ordem jurídica sob o prisma constitucional.
- Fato este que necessita ser revisto.
Vale dizer. Esquadrinha quais são as estratégias mais adequadas ao combate à delinquência