6. Fiança: Perda da aplicabilidade
6.1 Contradição
O artigo 5º, inciso LXVI da Carta Magna de 1988 elevou o instituto da liberdade provisória a direito fundamental ao determinar que "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança".
As hipóteses de crimes inafiançáveis, que se enquadram nas exigências constantes nos artigos 323 e 324 do CPP, em que aparentemente o legislador pátrio dedicou uma atuação mais rigorosa, uma vez que veda a liberdade mediante fiança, tem tratamento atenuado, visto que o parágrafo único do artigo 310 do CPP autoriza para estes crimes a liberdade provisória sem prestação de fiança, tornando-se uma falácia a afirmação de que nos crimes inafiançáveis há um tratamento mais severo no que concerne a liberdade provisória. Destarte, nota-se um tratamento incongruente do Código de Processo Penal, já que naquelas infrações tidas como inafiançáveis, em tese mais graves, dispensa-se a prestação da fiança, possibilitando que o réu adquira a liberdade sem tal ônus, e por outro lado, naquelas infrações tidas com afiançáveis, em tese menos graves, impõe-se o ônus de o acusado prestar a fiança e se sujeitar às demais obrigações previstas no CPP para adquirir a liberdade.
Neste sentido, Eugênio Pacelli (2007) defende a necessidade de adequação entre os ônus processuais, isto é, entre as restrições de direitos e a gravidade dos delitos. Esta adequação deveria levar em conta o princípio da proporcionalidade e seus sub-princípios, de modo que os ônus sejam adequados, necessário e proporcionais em sentido estrito aos fins visados.
Nas hipóteses em que cabível a fiança, salvo raras exceções, também é cabível a liberdade provisória sem fiança, e por ser esta um beneficio maior, é ela que deverá ser concedida. Caso o juiz arbitre a liberdade provisória com fiança, quando cabível a liberdade provisória sem fiança, haverá constrangimento ilegal, passível de correção por via de Habeas Corpus (NUCCI, 2008).
Na hipótese de réu pobre preso em flagrante por delito afiançável, o magistrado, se verificar que não há necessidade de decretar a prisão preventiva, deverá ele invocar o parágrafo único do artigo 310 e não o artigo 350 do CPP para a concessão do benefício. Somente na hipótese de a lei vedar a liberdade provisória do artigo 310 parágrafo único é que o juiz deverá invocar o artigo 350 (NUCCI, 2008).
Isto se justifica pelo fato de que seria demasiadamente injusto impor condições mais onerosas ao réu (as previstas no artigo 350, e que são as mesmas da liberdade provisória com fiança), quando estiverem presentes condições para que seja concedido o benefício menos oneroso (NUCCI, 2008).
Mesmo que prevista a afiançabilidade de um delito, caso tenha preenchido os requisitos do artigo 310§ único do CPP, o indivíduo será posto em liberdade sem necessidade de pagar a fiança. Por outro lado, mesmo que for prevista a possibilidade de liberdade provisória somente mediante o pagamento da fiança, se houver razões para a decretação da prisão preventiva, também não caberá a concessão da fiança (PACELLI, 2007).
Enquanto a lei não estabelece nenhum outro requisito a ser preenchido para a liberdade provisória sem fiança (artigo 310, parágrafo único), para a liberdade provisória com fiança cogita de outros motivos de não cabimento (artigos 323, I, II, III, IV, V e 324, I, II, III), levando a incongruência de poder ser o agente liberado sem obrigação outra senão a de comparecimento aos atos do processo, nos crimes com pena mínima superior a dois anos, justamente por não preencher os requisitos para a fiança (ROCHA; BAZ, 1999, p.107).
Na hipótese de o crime ser apenado com detenção ou prisão simples deve o delegado fixar a fiança. O flagrado pode prestar a fiança para ser posto em liberdade de pronto após a lavratura do auto e, se não presente os requisitos da preventiva, pode requerer e, até mesmo o juiz de ofício conceder, a conversão da liberdade provisória com fiança na sem fiança. Nesta hipótese, a única vantagem da fiança é a de evitar que o indivíduo seja recolhido ao cárcere (ROCHA; BAZ, 1999), porém, não demonstra mais nenhuma outra vantagem (compensação econômica ao Estado e a sociedade, vinculação rígida ao processo, assegurar o pagamento das custas, fazer com que o indivíduo se recolha a prisão em caso de condenação entre outras). Ao converter, todas as exigências presentes nos artigos 327 e 328 também devem ser retiradas, pois, restringem a liberdade do indivíduo.
Desta maneira, delitos menos graves são suscetíveis de fiança, entretanto, aqueles mais graves que não aceitam fiança podem ter liberdade provisória sem fiança se preencher a exigência do artigo 310, parágrafo único do CPP.
Podemos citar como exemplos o artigo 323, V, do CPP que veda a liberdade provisória mediante concessão de fiança aos crimes cometidos mediante violência (lesão corporal grave), porém, se preenchidos os requisitos do artigo 310 parágrafo único do CPP livrar-se-á solto sem fiança (PACELLI, 2007) e o homicídio simples, cuja pena mínima é de seis anos de reclusão, em que é vedada a liberdade provisória com fiança (artigo 323, I), porém, caso atenda ao disposto no artigo 310 parágrafo único poderá ser concedida a liberdade provisória sem fiança (NUCCI, 2008).
Eugênio Pacelli (2007) observa que, na liberdade provisória com fiança, além deste encargo, fica o indivíduo obrigado a comparecer a todos os atos do processo, requerer previamente permissão da autoridade competente para a mudança de residência bem como não poderá ausentar-se dela por mais de oito dias sem comunicar a autoridade competente onde será encontrado, conforme determina os artigos 327 e 328 ambos do CPP. Já na liberdade sem fiança, exige-se somente o comparecimento a todos os atos do processo. Além do que, enquanto a liberdade com fiança, somente é cabível, como regra, para os crimes mais levemente apenados, a liberdade sem fiança é possível para os delitos mais graves. Esta incongruência, conforme se demonstrou, também vem sendo admitida nos crimes hediondos e equiparados, em que se tem admitido a liberdade provisória menos onerosa, mesmo que esteja vedada a prestação da fiança, exceto no crime de tráfico ilícito de entorpecentes, em que é vedada qualquer espécie de liberdade provisória.
Destarte, não se pode admitir, por configurar manifesto constrangimento ilegal que, caso o delito seja afiançável, o juiz fixe o valor obrigando o indivíduo desembolsar determinada quantia e se sujeitar aos demais ônus previstos no CPP, enquanto num delito inafiançável, o indivíduo seja posto em liberdade provisória sem a prestação da garantia. Por conseguinte, caso não estejam presentes os motivos autorizadores da prisão preventiva, a liberdade provisória deverá ser concedida por força do artigo 310 § único do CPP mesmo nos delitos afiançáveis.
Também na seara das infrações penais de menor potencial ofensivo e nos acidentes de trânsito a fiança sofreu redução na sua aplicabilidade. No que concerne as infrações previstas na Lei 9099/95, o artigo 69, parágrafo único determina que a autoridade policial lavrará termo circunstanciado do ocorrido, sendo que após a lavratura do termo, se o autor do fato for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer não se imporá a prisão em flagrante, nem se exigirá fiança.
Já nos acidentes de trânsito em que resulte vítima, o Código de Trânsito Brasileiro, proíbe a prisão em flagrante e dispensa a exigência da fiança caso o condutor do veículo preste pronto e integral socorro à vítima.
Apesar de a fiança ter perdido praticamente sua utilidade após a inserção do § único no artigo 310 do CPP, autores há que ainda vislumbram certas vantagens.
Para Scarance Fernandes apud Guilherme Nucci (2008, p. 636):
[...] a fiança ainda pode ter algumas vantagens, como o procedimento mais simplificado para sua concessão, não se exigindo nem mesmo a oitiva prévia do Ministério Público, além de ser autorizada a fixação da fiança, em alguns delitos, como os puníveis com detenção, pela própria autoridade policial [...].
Outra vantagem é a prevista no artigo 325 §2 do CPP que determina que nas hipóteses de prisão em flagrante pela prática de crime contra a economia popular ou de crime de sonegação fiscal, não se aplica o disposto no artigo 310 parágrafo único do CPP, sendo que a liberdade provisória nesta situação somente poderá ser concedida mediante o pagamento de fiança ou no caso de pobreza, dispensando-o do pagamento conforme artigo 350 do CPP.
Segundo Eugênio Pacelli (2007, p. 464), há algumas grandes vantagens do ponto de vista prático da liberdade provisória com fiança, a saber:
Nas infrações punidas com pena de detenção ou prisão simples, a própria autoridade policial poderá arbitrar o valor da fiança, o que impedirá o recolhimento à prisão, por mínimo espaço de tempo que seja (e sabemos o máximo das conseqüências de qualquer privação da liberdade);
Quando somente a autoridade judicial puder arbitrar e conceder a fiança (artigo 322 § único, CPP), o procedimento para o seu deferimento não prevê manifestação do Ministério Público (artigo 333), o que, por pouco que seja, torna mais célere a restituição da liberdade;
A fiança, quando cabível, pode ser prestada a qualquer tempo, enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória, Assim, não será cabível a execução provisória quando pendente recurso especial ou recurso extraordinário, conforme vem admitindo o Supremo Tribunal Federal.
O autor, entretanto, ressalta que, estas vantagens, apesar de verificadas no plano prático, são restritas a uma pequena parcela da população, pois, a realidade da população carcerária brasileira é composta em sua esmagadora maioria por indivíduos desprovidos de recursos para prestar a fiança e, por conseguinte da possibilidade de poder usufruir estas vantagens (PACELLI, 2007).
Outra vantagem é a de que se o agente for condenado, mesmo se ocorrer a prescrição executória, o valor da fiança não lhe será devolvido, servindo para pagar as custas e a indenização do dano.
Apesar de verificadas tais vantagens, elas não se sobrepõem às inúmeras situações contraditórias acima demonstradas, não se justificando que num juízo de razoabilidade, ocorra um tratamento mais severo a delitos menos graves, enquanto, noutros mais graves, o legislador dedique uma atuação mais branda.
A razoabilidade não é um critério que serve de orientação somente ao operador do direito, deve ela também ser observada pelo legislador no momento da atividade legislativa.
Segundo Humberto Ávila (2003), a razoabilidade deve ser utilizada como dever de harmonização do Direito, de modo a estabelecer congruência entre o critério de diferenciação escolhido (no caso, a gravidade do delito) e a medida adotada (no caso, exigência da fiança), sendo que, somente uma razão plausível justifica a imposição de certa medida pelo legislador. Ocorre que tal razão, existente na época de elaboração de nosso Código de Processo Penal, não mais se encontra presente, visto que a gravidade do delito como critério para se exigir a fiança, foi desprezado a partir da Lei 6416/77, em que se passou a dispensar a fiança em grande parte dos delitos, abrangendo mesmo àqueles, em tese, mais graves.
A liberdade provisória com fiança, da forma em que está prevista no Código de Processo Penal, foi concebida para ser aplicada em época fundada no modelo de presunção de culpabilidade do indivíduo. Com as alterações substanciais ocorridas durante mais de seis décadas de vigência de nosso código, passou-se deste modelo, para outro, fundado no princípio do estado de inocência, demonstrando a necessidade de uma redefinição dos critérios estabelecidos para as medidas cautelares previstas em nossa legislação processual penal (PACELLI, 2007).
Nota-se, então, a dissociação da liberdade provisória mediante fiança, com o contexto histórico-jurídico em que atualmente se encontra inserido nosso código, refletindo-se, a necessidade de sua reestruturação para que possa ser exigível em hipóteses coerentes e razoáveis.
7. Conclusão
O presente trabalho teve como intuito fazer uma análise do instituto da fiança, no âmbito da prisão em flagrante, tanto em nível constitucional como em legislação ordinária. O que se constatou é um tratamento incongruente em sua aplicação, ocasionador de situações ilógicas e contraditórias, acabando por relegar sua importância a diminutas situações.
A fiança não se incompatibiliza com o princípio do estado de inocência, pois nenhum princípio constitucional é absoluto. Não há razões para que o legislador imponha um regime de liberdade provisória menos oneroso, cabível em grande parte dos delitos e um regime de liberdade provisória mais oneroso, circunscrito a hipóteses restritas e menos graves. Não vemos motivos para relegar o instituto a um plano secundário, pois, a fiança entendida como medida cautelar não se relaciona a nenhum juízo de antecipação de culpabilidade.
A nosso ver, a possibilidade de prestação de fiança não deveria abranger apenas as hipóteses de delitos menos graves. Deveria ser estabelecido um patamar mínimo, acima do qual seria admitida sua prestação, excluindo-se apenas aquelas infrações penais que não são cominadas penas privativas de liberdade cumulativa ou alternativamente, nas que tenham leve apenação, cuja probabilidade de encarceramento em eventual condenação seja mínimo e nos casos em que se pudesse comprovar de plano que o indivíduo praticou a conduta acobertado por uma hipótese de exclusão de ilicitude, situações estas que não faria sentido a exigência deste ônus para o indivíduo ser posto em liberdade, já que se livra solto.
Nas infrações de extrema gravidade cujo risco suportado pela sociedade seria demasiadamente grande caso se permitisse que o indivíduo respondesse solto ao processo mediante prestação de fiança, o juiz, analisando a situação concreta verificando presentes os requisitos da prisão preventiva, não concederia nenhuma das modalidades de liberdade provisória.
Importante chamar a atenção para fixação dos valores, que deveriam ser estabelecidos de forma a vincular de maneira rígida e eficaz o réu ao processo, compatíveis com as suas condições de fortuna, fixando-se em patamares razoáveis, fazendo com que o indivíduo acompanhe os atos processuais como forma de evitar a quebra da fiança e que se apresente em caso de condenação evitando-se assim a perda da quantia prestada, de modo que eventual quebra ou perda da fiança resulte em compensações econômicas em favor do estado, que utilizaria os valores em melhorias nos sistemas carcerários, repressores, fiscalizadores, além de implantar melhorias nos aparatos de busca e captura de foragidos.
Deve-se estabelecer uma relação entre a condição econômica do indivíduo e a fixação da fiança de forma que ele fique efetivamente vinculado ao processo e que se recolha ao cárcere ao ser condenado como forma de se evitar que perca o valor da fiança.
Outro fator importante é a busca de mecanismos para que os valores fixados no CPP permaneçam devidamente atualizados e que se estabeleçam parâmetros de controle sobre os critérios legais de fixação da fiança, de modo a evitar grande disparidade entre os valores nas hipóteses de casos semelhantes.
Com relação à liberdade provisória sem fiança, cremos que deveria ficar adstrita às situações em que o indivíduo por motivo de pobreza não tivesse condições de prestar a quantia para obter a liberdade provisória.
Apesar de constatada praticamente a inutilidade da fiança, no âmbito da prisão em flagrante, nos moldes que hodiernamente está estruturada no Código de Processo Penal, visto que as poucas vantagens do instituto estão restritas a uma pequena e abonada parcela da população, acreditamos ser possível resgatar o seu prestígio mediante uma reestruturação sistemática e coerente das hipóteses de sua concessão, de critérios que fixem em todos os casos valores razoáveis, evitando-se abusos ou quantias irrisórias, de modo que o indivíduo fique vinculado ao processo por laços econômicos, trazendo assim grandes benefícios para a administração da justiça e para a própria sociedade.