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Valor probatório da delação premiada no Brasil e no direito comparado

Agenda 14/09/2010 às 15:01

Questão problemática não somente no Brasil é definir o valor do testemunho do delator, que bem ou mal é um traidor. NUCCI [01] quando trata o tema aborda essa dificuldade.

Para compreensão do tema, faz-se necessário iniciar abordando a experiência anglo-saxã, pois no sistema americano e inglês, a colaboração de réus com a administração da justiça é um dos pilares que dão sustentabilidade ao sistema. Nesses sistemas, como em qualquer um que adota a colaboração de réus, deve-se levar a discussão o valor do testemunho do co-réu para a credibilidade e valor probatório da acusação. Entretanto, como os julgamentos são feitos por jurados que não possuem necessariamente formação jurídica, a valoração do testemunho de colaboradores seguiu uma discussão diferente dos países que não adotam o tribunal do júri de forma tão ampla.

Predomina o entendimento no sistema inglês que a valoração do testemunho do delator deve ser feito pelos próprios jurados no momento do julgamento e não pelo juiz togado. Consequência prática disso é que, em tese, é possível a condenação de alguém baseada unicamente no testemunho do delator, ainda que ausente outros elementos de prova a corroborá-lo.

Levando em conta que os jurados não precisam ter formação jurídica e como forma de minimizar esse entendimento, foi criada uma advertência a ser feitas aos jurados referente ao risco de condenação de alguém com base exclusivamente no testemunho do colaborador. Tamanha importância dada a essa advertência pelo judiciário inglês que chegou a ser considerada como requisito de validade do julgamento, sendo nulo o julgamento feito por jurados não advertidos. Posteriormente a obrigatoriedade da advertência foi abolida pela "Criminal Justice and Plubic Order Act", que entendeu ser uma discricionariedade do juiz togado fazer ou não a advertência.

Nos Estados Unidos a problemática da advertência ou não dos jurados tomou rumo contrário do que ocorreu na Inglaterra. Inicialmente prevaleceu o entendimento de que não competia ao juiz togado fazer qualquer advertência aos jurados quando à valoração da prova. Posteriormente, já na década de 1950, vários estados, usando de suas amplas competências legislativas, criaram leis que tornavam obrigatória a advertência a ser feita pelo juiz quanto ao risco de condenação fundada exclusivamente em colaboração de co-réu. Ressalta-se que essas leis não se fazem presentes em todos os estados, onde permanece a questão, assim como na justiça federal americana, onde igualmente não há lei federal sobre a matéria. Em âmbito federal, não é comum decisões acatando a tese de condenação fundada exclusivamente na colaboração, ainda que não existam outros elementos de prova.

Deixando de lado o sistema americano e inglês, a realidade espanhola e italiana se aproximam mais da brasileira. Na Espanha a lei não atribui o valor probatório a que deve ser dado ao testemunho dos co-réus por meio da delação premiada. Nem mesmo na jurisprudência espanhola é possível buscar essa solução. Isso se deve ao fato da legislação trazer duras exigências para aplicação da delação. Inicialmente é necessário que haja por parte do delator, antes da prisão ou atuação policial, um abandono da atividade criminosa e colaboração voluntária por parte do agente. Soma-se a isso a não obrigatoriedade da concessão de benefícios ao colaborador.

Apesar disso, as poucas decisões sobre o tema foram no sentido de exigir outras evidências externas que contribuam com as declarações do co-réu. Além disso, as declarações devem ser submetidas ao contraditório. Conclui-se que na Espanha as declarações de delatores são válidas no processo, entretanto não são suficientes por si para fundamentar uma condenação.

Na Itália a análise do valor probatório das declarações do delator para melhor compreensão deve ser feita em dois momentos.

No primeiro momento, quando ainda em vigor o Código de Processo Penal Italiano de 1930, existiam duas posições quando ao valor probatório de delações feitas por Réus. A primeira entendia que esta consistia apenas em uma "notitia criminis", não possuindo qualquer valor de prova no processo. Em contra partida, existiam posições extremadas que consideravam-na (delação) uma prova plena que por si era suficiente para condenação. O auge desta posição ocorreu no período de combate o crime organizado, máfia, na Itália.

Mesmo nessa época prevaleceu uma posição intermediária que considerava o valor probatório da delação, mas exigia que a condenação também estivesse fundada em outras provas além das declarações do co-imputado. Esse posicionamento da jurisprudência italiana, em especial da Corte de Cassação Italiana, serviu de referência para como a matéria viria a ser tratada pelo novo Código de Processo Penal Italiano de 1988. Hoje existe disposição legal, art. 192, §3º do citado código, que exige que declarações do co-réu seja analisadas em consonância com as demais provas dos autos, de forma que sustente a credibilidade das declarações.

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Eis o teor da legislação italiana:

192 Valutazione della prova

1. Il giudice valuta la prova dando conto nella motivazione (125-3, 606-1 lett. e) dei risultati acquisiti e dei criteri adottati.

2. L`esistenza di un fatto non puÚ essere desunta da indizi a meno che questi siano gravi, precisi e concordanti (2729 c.c.).

3. Le dichiarazioni rese dal coimputato del medesimo reato o da persona imputata in un procedimento connesso a norma dell`art. 12 sono valutate unitamente agli altri elementi di prova che ne confermano l`attendibilitý (210).

4. La disposizione del comma 3 si applica anche alle dichiarazioni rese da persona imputata di un reato collegato a quello per cui si procede, nel caso previsto dall`art. 371 comma 2 lett. b).

De acordo com a legislação italiana, os termos da delação não são suficientes por si para eventual condenação. Para tal devem estar acompanhados de outros elementos que confirmem as declarações prestadas.

Para análise da valoração probatória na delação premiado no Brasil, inicialmente devemos considerar o princípio da livre convicção motivada que impera em nosso ordenamento. Nesse sistema a lei não estabelece valor às provas, nem hierarquia entre elas. Cabe ao julgador, no caso concreto, atribuir o valor correspondente a cada prova obtida no processo, valorando-a de acordo com sua consciência, mas de forma fundamentada para permitir às partes concluir de que forma o magistrado chegou àquele entendimento, possibilitando assim o contraditório.

Sobre o tema é valiosa as palavras de Rangel (2005, p. 465):

O sistema da livre convicção não estabelece valor entre as provas, pois nenhuma prova tem mais valor do que a outra nem é estabelecida uma hierarquia entre elas...a confissão do acusado deixa de constituir prova plena de sua culpabilidade. Todas as provas são relativas;nenhuma delas terá valor decisivo, ou necessária mente maior prestígio que outra. Porém, o juiz está obrigado a motivar sua decisão diante dos meios de prova constantes nos autos. Não há possibilidade de o juiz decidir de acordo com provas que não constam nos autos do processo, pois as partes tem o direito subjetivo constitucional de conhecer as razões de decidir do magistrado para, se assim entenderem, exercer o direito de duplo grau de jurisdição [02].

Dessa forma, a regra do ordenamento nacional é que qualquer prova poderia ser suficiente para condenação desde que assim entendesse e fundamentasse o magistrado. Concluir-se-ia que até mesmo a delação premiada desprovida de qualquer outra prova poderia ser suficiente para condenação. Mas a solução não é tão simples assim.

Sobre essa questão, assim como ocorreu na Itália até o advento do novo Código de Processo Penal italiano de 1988, existem duas posições quanto ao valor probatório da delação. Há os que entendem que a delação possui forma incriminatória, ou seja, a delação seria por si suficiente para condenação. Essa é aposição de Atalvilla, citado por Aranha, para quem:

A acusação do co-réu não deve ser uma simples afirmação, antes precisa ser enquadrada numa narração completa. Efetivamente, não basta dizer que alguém tomou parte do crime, mas é necessário descrever a modalidade dessa participação, pois o pormenor pode revelar a veracidade ou a falsidade do que se narra [03].

Em contrapartida a outra posição renega tal força à delação, somente admitindo a condenação caso haja outras provas em consonância com a delação. Aderindo a essa corrente Mittermayer:

O depoimento do cúmplice apresenta também graves dificuldades. Tem-se visto criminosos que, desesperados por conhecerem que não podem escapar à pena, se esforçam em arrastar outros cidadãos para o abismo em que caem; outros denunciam cúmplices, aliás inocentes, só para afastar a suspeita dos que realmente tomaram parte no delito, ou para tornar o processo mais complicado, ou porque esperam obter tratamento menos gravosos, comprometendo pessoas em altas posições [04].

Como não poderia deixar de ser, diante da ausência de disposição legal sobre o tema, coube a jurisprudência a definição da questão. Face a fragilidade de uma condenação baseada exclusivamente na prova fornecido por co-autor de crime, prevaleceu, assim como na Itália, a posição que não aceita a condenação baseada exclusivamente na delação.

Essa foi a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal nos termos abaixo:

PROVA – DELAÇÃO – VALIDADE. Mostra-se fundamentado o provimento judicial quando há referência a depoimentos que respaldam delação de co-réus. Se de um lado a delação, de forma isolada, não respalda condenação, de outro serve ao convencimento quando consentânea com as demais provas coligidas.[203] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Penal. Habeas Corpus. HC nº 7526. Paciente: Noriel José de Freitas. Impetrante: Manoel Cunha Lacerda. Coator: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Relator: Ministro Marco Aurélio, Brasília, DF, 12 de agosto de 1997. Disponível em < http://www.stf.jus.br/portal/inteiro

Correta a posição da Suprema Corte. No Brasil como na grande parte dos ordenamentos, existe uma presunção de inocência, garantia máxima do cidadão frente a justiça penal, estabelecendo o dever das autoridades de persecução penal de provar a culpa do acusado. Se uma mera declaração em juízo de pessoa extremamente parcial na causa, visto co-réu, desprovida de qualquer outro elemento de convicção fosse suficiente para reverter a presunção de inocência, torna-se-ia inócua a garantia constitucional.


Notas

  1. NUCCI, Guilherme de Souza, Leis Penais e Processuais Penais Comentadas.
  2. RANGEL, Paulo. Direito processual penal10. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005;
  3. ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 7 ed., São Paulo: Saraiva, 2006.
  4. MITTERMAYER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal. Tradução de Hebert Wüntzel Heinrich. 3 ed., Campinas: Bookseller, 1996.
Sobre o autor
Celso Costa Lima Verde Leal

Procurador da República. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito Público pela UNB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEAL, Celso Costa Lima Verde. Valor probatório da delação premiada no Brasil e no direito comparado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2631, 14 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17390. Acesso em: 5 nov. 2024.

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