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A legitimidade do Ministério Público para a instauração de ação civil pública em matéria tributária

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Agenda 19/09/2010 às 07:41

No tocante à defesa dos interesses supraindividuais envolvendo questões tributárias, a legitimação constitucionalmente atribuída ao "Parquet" tem sido limitada.

RESUMO

A Constituição da República, ao conferir amplas atribuições ao Ministério Público, estabeleceu como sua missão a defesa do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, tornando o órgão ministerial o guardião preponderante do sistema jurídico. A evolução das relações sociais, alavancadas pelo ideário iluminista, pelo reconhecimento dos direitos sociais, e pela massificação da sociedade, exigiu a criação de novos mecanismos processuais, aptos a satisfazerem as necessidades da coletividade. Nesta esteira, a ação civil pública surgiu como instrumento de defesa de interesses supraindividuais, tendo sido a sua abrangência gradativamente ampliada. Contudo, no tocante à defesa dos interesses supraindividuais envolvendo questões tributárias, a legitimação constitucionalmente atribuída ao parquet tem sido limitada. Nestas condições, a legitimação do órgão ministerial para instaurar ações civis publicas envolvendo questões atinentes a matérias tributárias, na defesa do contribuinte ou do próprio interesse difuso da sociedade tem sido merecedor de estudos, em especial diante do fato de que as interpretações que atualmente ganham força, limitam, em última análise, a própria busca pelo direito. Uma vez que a Constituição Federal consignou em seus dispositivos que é função do Ministério Público exercer, além daquelas expressamente insculpidas na norma do seu art. 129, quaisquer outras funções compatíveis com sua finalidade, e tendo em vista que a discussão acerca do tema não parece ter chegado a um desfecho conclusivo, analisar-se-ão os meandros da altercação, com o intuito de contribuir, ao menos, para o fomento da discussão acerca da matéria em comento.


1. INTRODUÇÃO

A ação civil pública, moderna ferramenta jurídico-processual apta a resguardar os direitos da coletividade, vislumbra na instituição do Ministério Público seu mais assíduo manejador.

A legitimidade preponderante do parquet para promover a ação civil pública visando a proteção de interesses difusos e coletivos - expressamente consignada na norma do art. 129, inciso III, da Constituição da República - aliada aos dispositivos constitucionais expressos que delineiam a sua natureza jurídica, imputando-lhe a incumbência de defender a ordem jurídica - colocaram o órgão ministerial na posição de principal utente das normas jurídicas atinentes ao instrumento processual em análise.

Aclamada como "Constituição Cidadã", a lei suprema trouxe em seu bojo um alargamento no plexo de atribuições e funções do Ministério Público, o que representou um importante avanço para a sociedade democrática e um desafio para a instituição.

Consagrado como órgão essencial à função jurisdicional do Estado, o Ministério Público recebeu a ampla incumbência de promover a defesa do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, constatando-se que o texto constitucional esteve a conferir legitimidade ao parquet na busca pela defesa e respeito ao sistema jurídico, e, em última análise, ao devido cumprimento dos preceitos constitucionais. Decorre desta previsão constitucional a assídua atuação do órgão no ajuizamento de ações civis públicas, e, por consequencia, a insurgência de forças de reação, sendo controvertida a aceitação da legitimidade ministerial em vários casos concretos. [01]

Considerada a evolução do estado democrático de direito e o surgimento dos mecanismos de defesa de interesses transindividuais, as transformações operadas na lei reguladora da matéria e nas normas jurídicas introduzidas e modificadas pelo Código de Defesa do Consumidor colocam o direito brasileiro às voltas com a necessidade de se definir a amplitude das matérias discutíveis no bojo da ação civil publica.

Importa frisar que a interpretação das atribuições constitucionais, a teor do princípio da indisponibilidade da ação civil pública, tornam o agir do parquet, antes de um direito, um dever, posto inexistir espaço para discricionariedade em sua ação quando identificada hipótese legal de atuação. [02]

Verifica-se, seja pelos posicionamentos encontrados na doutrina, seja pelas demandas levadas a julgamento perante os Tribunais Superiores, que embora em determinadas matérias a legitimação do Ministério Público para agir seja inquestionada, como nas lides envolvendo o meio ambiente e os direitos da criança e do adolescente, tal não se dá quando se apresentam assuntos envolvendo tributos, sobretudo em razão do recentemente introduzido parágrafo único do art. 1º da Lei nº 7.347/85, fruto da Medida Provisória n° 2.180-35 de 2001. Nestes casos, a figuração do parquet enquanto parte legítima tem sido objeto de acirrada controvérsia, sobretudo em razão da natureza jurídica atribuída pela doutrina aos direitos e interesses dos contribuintes, considerados disponíveis sob determinado espectro.

Entretanto, levando-se em conta que as discussões alçadas pelo Ministério Público quando da propositura de ação civil pública envolvendo matéria tributária podem se dar sob diversos prismas, ora estando o parquet a defender interesses e direitos coletivos em favor do sujeito passivo tributário, ora a defender o próprio interesse público enquanto dimensão coletiva, há que se perquirir quais seriam as efetivas fronteiras jurídicas que balizam a atuação do órgão ministerial em tais demandas.


2. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA: FUNDAMENTOS

O processo histórico do direito, reflexo do desenvolvimento social da civilização, traz em si a perene criação e metamorfose de institutos jurídicos. O reconhecimento e a consequente proteção aos direitos fundamentais, destacados em razão das evoluções sociais ocorridas na civilização contemporânea – notadamente à influência do jusnaturalismo no ideário iluminista – ocorreram de forma contínua até a definitiva consagração do lema "liberdade, igualdade e fraternidade".

À luz da concepção de Rousseau, sintetizada na idéia de que os homens nascem livres e iguais em direitos, insculpiram-se no panorama jurídico, como reflexo de tal consagração, os denominados direitos fundamentais de primeira geração, assim entendidos como os direitos da liberdade, "primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente". [03]

Os institutos jurídicos desenvolvidos nesta primeira geração, caracterizados pela proteção e oposição do indivíduo em face do Estado – em homenagem ao primado da liberdade – logo fizeram surgir os direitos sociais, culturais e econômicos, amplamente discutidos no século XX e difundidos nos textos constitucionais do pós-guerra, onde se passou a considerar essencial o agir social do Estado como instrumento de garantia do direito à liberdade. [04]

Nesta condição, ao passo que a primeira geração dos direitos fundamentais representou o estabelecimento das garantias fundamentais da liberdade, a incorporação dos direitos fundamentais de segunda geração significou o ingresso à ordem jurídica de uma ordem de valores, criando princípios orientadores das Constituições. [05]

Ainda no período pós-guerra [06], quando floresciam nações em diferentes graus de desenvolvimento sócio-econômico, passou-se a buscar uma nova e mais extensa concepção do que seriam os direitos fundamentais, de modo a efetivar o primado da fraternidade. Em razão do amplo reflexo de tais direitos no seio social, os direitos e garantias individuais passaram a transmutar-se muitas vezes em direitos afetos a vários indivíduos ou grupos sociais.

A busca pela efetiva tutela de direitos fundamentais fez emergir os denominados direitos de terceira geração, guiados pelo signo da solidariedade, cuja essência transborda a proteção específica de direitos inerentes a uma coletividade.

Conforme o escólio do mestre constitucionalista Paulo Bonavides, a matriz destes direitos, dentre os quais compreendidos o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à propriedade e à comunicação, pode ser assim concebida e analisada:

(...) um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade. [07]

Os desdobramentos do surgimento da denominada "terceira geração" de direitos fundamentais implicaram em premente necessidade de se promover uma extensa lapidação nos institutos jurídicos, de forma que estes fossem moldados para satisfazê-los de forma íntegra. Da mesma forma, portanto, que as normas jurídicas de cunho material, as próprias regras processuais haviam de se adequar à nova realidade social.

O fenômeno de índole social, representado pela amplitude dos direitos de terceira geração, fez surgir situações em que um determinado grupo de indivíduo se encontrava ligado por uma questão comum, mostrando-se inapropriado que o direito de ação somente pudesse ser exercido individualmente, de forma isolada.

Do ponto de vista jurídico, a amplitude dos direitos resguardados apontou para uma realidade social que fazia brotar interesses transindividuais, inerentes a uma massa de indivíduos – determináveis ou não-, anelados por uma relação fático-jurídica

O arcabouço jurídico delineado pelos direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração – em atenção aos direitos sociais atrelados aos primados da igualdade, fraternidade e solidariedade –, apontou para a necessidade de que o Estado promovesse de forma eficaz a tutela dos interesses afetos ao coletivo, vez que os instrumentos processuais não se mostravam suficientes para a ampla e adequada garantia dos direitos fundamentais.

Com efeito, o capitalismo impulsionado pela Revolução Industrial empreendida no século XX gerou uma sociedade de massas, com interesses comuns a várias pessoas, nem sempre determináveis e individualizáveis. Ações nefastas ao meio-ambiente, empreendidas por grandes corporações, prejudicavam integralmente os componentes de determinado grupo social. No mesmo diapasão, a magnitude do sistema econômico passou a implicar em constante envolvimento de interesses metaindividuais nesta seara.

As regras processuais, portanto, houveram de se adequar para esta nova realidade, "para proporcionar uma resposta rápida e eficaz às lesões típicas deste novo modelo de sociedade emergente". [08]

O processo histórico da civilização, no contexto jurídico ora apontado, adentrava ao esteio das ações coletivas. Nesta mesma esteira, sintetizando a gênese do instituto jurídico-processual das ações coletivas, aponta a doutrina de Ricardo Negrão para a sociedade massificada da pós-modernidade como mola propulsora de seu incremento:

(...) de um lado há o inexorável dever das normas processuais de sempre privilegiarem a melhor realização dos ideais e aspirações sociais (para que seja possível o desenvolvimento agregado e positivo dos sujeitos que compõem a sociedade), mediante o aparelhamento da justiça com o melhor instrumental técnico possível e, de outro lado, devem aguardar o desenvolvimento das chamadas normas de conduta, cujas regras devem fazer valer (na medida em que o processo, ainda que dotado de instrumentação científica própria, visa, em última análise, a melhor aplicabilidade do direito material).

As ações coletivas são um exemplo vivo desta realidade. De fato, ainda que o fenômeno de demandas coletivas (não tomado o termo aqui no seu aspecto técnico tal qual definido hoje em lei, mas como realidade da existência de fatos ou atos jurídicos que venham a interessar um grupo de pessoas, mais ou menos determinado), não seja novo, a efetiva necessidade de sua tutela coincide com o momento histórico "pós-moderno", no qual a realidade de uma sociedade de massa se tornou efetiva (e, portanto, a necessidade do reconhecimento material de conflitos de massa e sua solução também se tornam prementes). [09]

Decorrência deste contexto foi o surgimento e aperfeiçoamento da modalidade de ações coletivas, podendo ser apontado como um dos seus primórdios o instituto das representative actions, utilizadas nos casos em que a quantidade de indivíduos envolvidos na controvérsia tornasse inviável a formação de litisconsórcio, bem como nos casos em que os indivíduos do grupo tivessem interesses comuns na controvérsia. [10]

A experiência estadunidense com as chamadas class actions (regradas desde 1912) [11], aptas a proteger interesses de grupos sociais compostos por uma coletividade de titulares de direitos, veio também a demonstrar a conveniência de um processo único, onde o grupo se fazia representar por um representante da classe. [12]

A doutrina indica que a Constituição de 1934, ao incorporar na legislação brasileira a ação popular, trouxe à luz o primeiro instrumento processual de natureza coletiva. [13] Aponta-se ainda a ação de dissídio coletivo, disciplinada pelo art. 856 e seguintes da Consolidação das Leis do Trabalho, como remoto instrumento de defesa de interesses transindividuais previsto na legislação pátria.

A Lei Complementar nº 40/81, ao dispor acerca da organização dos Ministérios Públicos Estaduais, fez uma primeira menção à ação civil pública em seu art. 3º, inciso III, conferindo ao parquet, na qualidade de defensor da ordem jurídica e dos interesses sociais indisponíveis, "a função institucional de promovê-la", conjeturando assim as normas de natureza infraconstitucional que anos após viriam a ser insculpidas na ordem jurídica, quando da entrada em vigor da Lei nº 7.347/85. A norma conta com a seguinte redação:

Art. 3º - São funções institucionais do Ministério Público:

I - velar pela observância da Constituição e das leis, e promover-lhes a execução;

II - promover a ação penal pública;

III - promover a ação civil pública, nos termos da lei.

Impulsionada pelo contexto histórico em que inserido o indigesto período da ditadura militar, a evolução constante dos direitos fundamentais e da democracia no Brasil trouxe à ordem jurídica a Constituição da República de 1988, que recepcionou e consagrou a ação civil pública, compatível com a nova ordem constitucional, o que fez em seu art. 129, inciso III, in verbis:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos

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A Constituição não apenas mencionou de forma inequívoca a ação civil pública, mas também referiu-se ao objeto de sua tutela, tornando-a mais abrangente no sentido de ter ampliado sua órbita de alcance à defesa de direitos transindividuais. Destaca-se uma sutil e importante mutação na norma, qual seja, a conversão do rol de interesses e direitos transindividuais referidos nos incisos do art. 1º da Lei nº 7.437/85 de numerus clausus para rol enumerativo, já que o texto constitucional estabeleceu como função institucional do Ministério Público a promoção da ação civil pública para a proteção "de outros interesses coletivos e difusos". [14]

Os parâmetros de utilização da ação civil pública, nos termos da Lei nº 7.347, encontram a seguinte redação normativa:

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:

I - ao meio-ambiente;

II - ao consumidor;

III – à ordem urbanística;

IV – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

V - por infração da ordem econômica e da economia popular;

VI - à ordem urbanística.

Embora o legislador constituinte apenas tenha se referido à atuação do Ministério Público em ações civis públicas na defesa dos "interesses coletivos e difusos", o ordenamento jurídico brasileiro veio a acolher, anos após, a possibilidade de instauração da ação civil coletiva para defesa dos interesses individuais homogêneos, expressão insculpida na Lei nº 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor, que inseriu na Lei nº 7.437/85 o art. 21, cujo teor menciona de forma expressa a defesa de interesses individuais.

Em razão de ter sido a referida norma editada no bojo do codex consumerista, estabelecedor de normas de proteção e defesa do consumidor, sua aplicabilidade restou questionada no que tange a questões não-consumeristas, assim como a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ações visando salvaguardar interesses individuais homogêneos indisponíveis e disponíveis de relevância social.

Destaca-se que a Constituição somente se referiu à legitimidade do Ministério Público para atuar na tutela dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos, respectivamente nos arts. 127 e 129, inciso III.

A par de tais altercações, vê-se como inegável que o fundamento constitucional da ação civil publica tornou-a, em suma, instrumento processual destinado à defesa de diversos interesses da coletividade, conforme o magistério de Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida:

A ação civil pública é

, com efeito, preordenada constitucionalmente à consecução da tutela adequada e efetiva da ampla e diversificada plêiade de direitos fundamentais difusos e coletivos, bem como dos interesses individuais das vítimas/lesados, simultaneamente lesados ou ameaçados de lesão. E é abrangente de todos os direitos e interesses derivados do sobreprincípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), dos alvissareiros objetivos traçados para o Estado Democrático e Social brasileiro (CF, art. 3º), dos princípios da Administração Pública (art. 37, caput), da ordem econômica e tributária (art. 170 e incisos) e da ordem social (Título VIII). [15]

(grifos nossos)

Sendo, pois, a ação civil pública, incidenter tantum da ordem jurídica constitucional [16], seu manejo se dá à luz das normas de regência, tendo sido utilizada para a tutela de uma variado plexo de direitos.

Embora seja pacífica a sua utilização para a tutela de direitos descritos literalmente na norma (meio-ambiente, consumidor, dentre outros), tem se tornado frequente a sua utilização na defesa de direitos afetos a outras áreas, tal como a tributária. Com base em interpretações do texto constitucional e da amplitude dos efeitos advindos de ações governamentais no âmbito tributário, discute-se na doutrina e na jurisprudência a possibilidade ou não de se veicular interesses relativos a tributos em sede de ação civil pública, seja para a defesa de contribuintes anelados por interesse coletivo, seja para a tutela da própria ordem econômica ou da ordem jurídica e do patrimônio público (arts. 127, caput, e 129, inciso III, ambos da Constituição).

Estas discussões, objeto do presente estudo, permeiam a natureza da ação civil pública, a legitimidade ad causam do Ministério Público e os interesses atingidos por medidas tributárias, o que se passa a analisar.

2.1. Contornos do instituto jurídico-processual

Como destacado alhures, não se pode olvidar que é uma norma constitucional, a do art. 129, inciso II, que dá supedâneo à ação civil pública, sendo portanto fonte primária desse instrumento jurídico-processual. [17]

Fruto de relevantes transformações sociais, afetadas pela evolução conceitual dos direitos humanos e por sua positivação nas ordens constitucionais, bem como pelo momento político posterior a um período ditatorial - e portanto propício à proteção de interesses sociais -, a ação civil pública emergiu sob a perspectiva da tutela de direitos enquanto dimensão coletiva em uma sociedade massificada. [18]

Como bem apontou Humberto Theodoro Júnior, com a consagração dos direitos fundamentais de terceira geração, e tendo em vista as suas peculiaridades,

(...) despertou-se o direito para interesses relevantíssimos, como meio ambiente, valores históricos culturais, saúde pública, segurança coletiva, relações de consumo, que, embora dizendo respeito a todos os indivíduos, não são suscetíveis de fracionamento para que cada um possa defendê-los particularmente. [19]

Na mesma esteira, ainda em 1978, Ada Pellegrini Grinover registrou que o surgimento de conflitos de configuração coletiva e de massa era algo típico das escolhas políticas, a indicar a necessidade de serem adotadas novas formas de participação. [20]

Conforme se depreende da análise literal das normas dos arts. 1º, incisos I a VI, e 3º da Lei da Ação Civil Pública, esta se presta à responsabilização por danos ao meio-ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, por infração da ordem econômica e da economia popular, tendo por objeto a condenação em dinheiro ou em cumprimento de obrigação comissiva ou omissiva.

A redação originária do inciso IV do art. 1º destacava a ação civil pública como instrumento de tutela aos danos que afetassem quaisquer interesses difusos ou coletivos, induzindo à clara idéia de que o rol de interesses dispostos nos demais incisos era apenas enumerativo. Contudo, tal dispositivo foi inicialmente vetado pelo então Presidente da República José Sarney, forte em argumento segundo o qual "as razões de interesse público dizem respeito precipuamente a insegurança jurídica, em detrimento do bem comum, que decorre da amplíssima e imprecisa abrangência da expressão ‘qualquer outro interesse difuso’". [21] O legislador infraconstitucional adequou o texto legal aos preceitos constitucionais fixados no art. 129, inciso III da Lei Maior, posto que ao confeccionar a Lei nº 8.078/90 (em seu art. 111) voltou a inserir no rol dos insertos nos incisos do art. 1º da Lei nº 7.347/85 quaisquer interesses difusos ou coletivos. [22]

Limitações no âmbito de utilização da ação civil pública, em detrimento do texto constitucional, foram se agregando à lei e mesmo a entendimentos jurisprudenciais. Neste particular, norma de pouca nitidez é encontrada no parágrafo único do art. 1° da lei, segundo o qual não é cabível o ajuizamento de ação civil pública para discutir pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, FGTS ou outros fundos cujos beneficiários possam ser individualmente determinados. A propósito, a controvérsia originadora do presente estudo muito deve à aludida norma, introduzida no ordenamento jurídico no dia 24 de agosto de 2001, data da publicação da Medida Provisória nº 2.1180-35/01. A interpretação histórico-contextual do surgimento da norma não permite negar seu evidente propósito: incrementar a arrecadação de tributos e evitar demandas contra o Poder Público, o que será detidamente examinado no tópico 4.3 infra. [23]

Visando conceituar a ação civil pública, destacando seus elementos caracterizadores basilares, Rodolfo de Camargo Mancuso assinala que esta se consubstancia em:

meio processual de natureza não penal, apto à instrumentação judicial dos interesses metaindividuais, socialmente relevantes, e, mesmo quando de natureza individual, desde que qualificados pela nota da indisponibilidade ou homogeneizados pela origem comum, uns e outros portados em juízo pelos co-legitimados credenciados pelo legislador como sendo "representantes adequados", atuando em caráter concorrente-disjuntivo. [24]

Valendo-se do conteúdo legal, o magistério de Hely Lopes Meirelles é no sentido de definir a ação civil pública como "o instrumento processual adequado para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo". [25]

Assevera ainda que a ação civil pública "não se presta a amparar direitos individuais (outros, que não delimitados ou especificados, pelo ordenamento jurídico pátrio), nem se destina à reparação de prejuízos causados a particulares pela parte, conduta, comissiva ou omissiva do réu". [26]

Vê-se portanto que a ação civil pública é um instrumento jurídico de índole eminentemente processual-instrumental [27], cujo objetivo é tutelar interesses e direitos afetos a uma coletividade de pessoas, determináveis ou não, representados em juízo por órgãos ou entidades cujas às quais a lei conferiu legitimidade para postular, sendo, contudo, à luz da Constituição, preponderante a atuação do Ministério Público, posto ser sua função institucional promover a defesa da ordem jurídica e dos interesses coletivos.

Importa destacar que as referências encontradas nas leis ordinárias, quando cotejadas com a Lei Maior, devem levar em consideração que na fonte de todas as normas, ou seja, no texto constitucional, não há limitação imposta ao parquet na amplitude de sua função institucional de promover a ação civil pública para a proteção de interesses difusos e coletivos.

Tendo em vista tal disciplina normativa, cumpre analisar conceitualmente tais direitos e interesses, passíveis de tutela por intermédio do instrumento processual em estudo.

2.2. Direitos e interesses difusos e coletivos

É bastante vasto o conteúdo dos interesses passíveis de proteção por meio da ação civil pública, em especial devido à hodierna configuração social e a atual conjuntura de amplo acesso dos direitos sociais à proteção perante o poder judiciário, conforme já asseverado.

De fato, "constitui hoje quase um truísmo a constatação de que o surgimento de uma moderna sociedade de massas está a exigir o desenvolvimento de novas formas jurídicas que superem, tanto quanto possível, o modelo processual calcado numa concepção individualista de direito subjetivo". [28]

O art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, em seu inciso I, traz a definição legal do que sejam os interesses difusos. Registra que estes são os interesses transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.

Com base nesta definição, pode-se afirmar que os direitos ou interesses difusos tem como principal característica o fato de serem indivisíveis e não pertencerem a pessoas determinadas (caráter da transindividualidade). Os sujeitos se encontram anelados por circunstâncias de fato, mas a natureza da controvérsia espraia efeitos tão amplos que não é possível determinar os atingidos. [29]

A indivisibilidade dos direitos ou interesses representa a impossibilidade de se proceder com sua defesa em favor de determinado sujeito, sem que as pessoas atingidas pela mesma situação se vejam beneficiadas.

O vocábulo interesse, derivado do latim ite’rese (estar entre, estar no meio, participar) apresenta-se com dois significados intrínsecos: aquilo que desperta a atenção e aquilo que é vantajoso, benéfico, proveitoso. [30] Em outras palavras, o liame subjetivo do ser ao objeto almejado, permite conceituar o interesse como marca da "completa supressão de distância entre a pessoa e a matéria e resultados de sua ação: é a união orgânica da pessoa e do objeto". [31]

A par deste primado enunciativos, o interesse grupal (interesses denominados transindividuais ou metaindividuais), do qual emergem os direitos difusos e coletivos aludidos na legislação, representa uma posição intermediária entre o interesse público e o interesse privado, posto que compartilhado por grupos, classe ou categorias de pessoas, excedendo o âmbito estritamente individual. [32]

Além de serem caracterizados pelo compartilhamento por diversos titulares individuais coligados por uma mesma relação fática ou jurídica, os interesses transindividuais, sob o ponto de vista processual, denotam a positivação do reconhecimento de que o acesso individual dos lesados ao Poder Judiciário deve ser substituído por um processo coletivo, apto a evitar decisões contraditórias e ineficientes em proveito de todo o grupo lesado. [33]

Em suma, os interesses difusos podem ser considerados como aqueles cujos interessados são indetermináveis, sendo comum a situação fática, porém indivisível o dano. São compartilhados por um grupo indeterminável de indivíduos ou por grupo "cujos integrantes são de difícil ou praticamente impossível determinação". [34]

No tocante aos interesses coletivos, estes tem sido concebidos, lato sensu, como "interesses transindividuais, de grupos, classes ou categorias de pessoas. Nessa acepção larga é que a Constituição se referiu a direitos coletivos em seu Título II, ou a interesses coletivos, em seu art. 129, III". [35] O interesse coletivo "é correntemente qualificado como sendo aquele que, ainda que indivisível, possui grau maior de identificação dos sujeitos individuais envolvidos, na medida em que estes estão unidos entre si por uma relação jurídica base." [36]

O conceito aplicado pelo legislador, no inciso II do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, aduz que interesses e direitos coletivos são transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.

Assim, pode-se afirmar que os direitos e interesses coletivos tem uma abrangência mais restrita, pois se exige comunhão de relação jurídica, remanescendo contudo o caráter da transindividualidade e da indivisibilidade.

Vê-se que ambos são indivisíveis, distinguindo-se quanto à origem da lesividade e pela abrangência do grupo, sendo os difusos indetermináveis, ligados for conjecturas fáticas, enquanto os coletivos referem-se a um grupo de pessoas determinadas ou determináveis, ligada pela mesma relação jurídica base. [37]

No tocante à tutela de tais direitos ou interesses, não há controvérsia acerca da legitimidade do parquet para a instauração de ação civil pública, em razão de que a norma do art. 129, inciso III, da Constituição Federal, é clara no sentido de atribuir tal função ao Ministério Público.

Ocorre que a relação tributária implica em uma relação de direitos e deveres entre o contribuinte e o Fisco, sendo o tributo, a teor da definição legal, uma prestação pecuniária compulsória. Trata-se portanto, em princípio, de uma relação obrigacional afeta ao direito de propriedade do contribuinte, tratando-se portanto de um direito individual disponível. De fato, não pode ser obrigado o contribuinte a pleitear a repetição de valores perante o Fisco. Ocorre que, conforme se verá, o Código de Defesa do Consumidor permite a tutela coletiva de interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum (art. 81, inciso III).

2.3. Direitos e interesses individuais homogêneos

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, o art. 21 da Lei nº 7.345, de 1985 ampliou expressamente o alcance da ação civil pública, possibilitando o seu manejo para a defesa dos direitos e interesses individuais homogêneos, operando a legitimação extraordinária do Ministério Público como substituto processual.

Como afirmado alhures, os direitos e interesses individuais homogêneos se consubstanciam em desdobramento daqueles afetos à uma coletividade [38]. Assim o são em razão de que embora possuam um nascedouro de índole individual, se destacam por serem coletivos nos efeitos e na forma de sua tutela em juízo. [39]

O mesmo art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, em seu inciso III, objetivou estabelecer um conceito legal de direitos e interesses individuais homogêneos, cujo teor aduz que são os decorrentes de origem comum.

O estudo da natureza jurídica do instituto, à luz da singela definição legal, induz à noção de se tratar de direito subjetivo individual complexo, caracterizado pelos anseios de uma determinada pessoa, comuns a um grupo de pessoas, tornado-os socialmente relevantes. [40] Diferencia-se, assim, o instituto da defesa de interesses coletivos de natureza individual homogênea do litisconsórcio a que se refere o Código de Processo Civil, posto que no segundo caso florescem direitos individuais simples de mais de uma pessoa, sem qualquer relevância social. [41]

A teor do magistério de Hugo Nigro Mazzilli, tal como ocorre com os interesses difusos, os individuais homogêneos decorrem de circunstâncias fáticas comuns, porém distinguem em razão de serem determináveis ou determinados, "e o dano ou a responsabilidade se caracterizam por sua extensão divisível ou individualmente variável entre os integrantes do grupo" [42].

Para o autor, o parquet detém legitimidade para pleitear a tutela de interesses individuais homogêneos desde que o objeto da lide represente interesse socialmente relevante.

Em vista do caráter de relevância social dos direitos transindividuais, pode-se afirmar que, em relação aos direitos individuais homogêneos, se trata, em realidade, "de situações envolvendo direitos individuais que adquirem por lei tratamento de ação coletiva por terem uma origem comum, esse tratamento especial para direitos, que na sua essência tem natureza individual tem como fundamento a necessidade de efetivo acesso à justiça." [43]

No tocante ao aspecto patrimonial, e acerca da disponibilidade, verifica-se que "os interesses individuais homogêneos são de natureza individual, divisíveis e integrantes do patrimônio individual de cada um dos seus titulares. Portanto, podem ser transmitidos, renunciados ou transacionados livremente, salvo as exceções legais". [44]

A análise sob o espectro do sistema tributário induz a uma difícil conceituação quanto à índole dos interesses e direitos afetados por determinada matéria envolvendo tributos. A amplitude de ações tais como imposição irregular de obrigação tributária, a concessão de isenções, restrição às imunidades tributárias constitucionais, dentre tantas outras, deságuam em altercação acerca da natureza dos interesses envolvidos, posto que a noção de sistema demonstra ser o objeto indivisível (sistema econômico-financeiro-tributário), sendo habitualmente impossível identificar as pessoas ligadas pelo mesmo laço fático ou jurídico.

Devido a tal abrangência, a análise da relevância social ganha contornos diferenciados, pois a despeito da disponibilidade do direito patrimonial do contribuinte, eventual medida nesta seara pode irradiar efeitos no patrimônio público, na ordem econômica, dentre outros interesses protegidos pelo parquet e passíveis de tutela por meio de ação civil pública.

De outra banda, em que pese a amplíssima extensão social dos efeitos decorrentes de medidas adotadas no âmbito tributário, casos há em que a discussão afeta diretamente a esfera patrimonial de determinado grupo de indivíduos, sujeitos passivos tributários ou não, o que torna acirrada a discussão acerca das possibilidades de utilização da ação civil pública enquanto instrumento de defesa dos interesses coletivos, afetos à toda a sociedade ou ao contribuinte, de forma mediata ou não.

2.4. A relação jurídico-tributária

A Constituição de 1988 traz em seu bojo normas que estruturam o denominado Sistema Tributário Nacional, que nada mais é senão "um conjunto de elementos organizados de forma harmônica, formando um todo uniforme através de princípios que presidem o agrupamento desses elementos". [45]

Nestas condições, afirma-se que a base do sistema reside em normas tributárias guiadas por princípios de status constitucional, de forma que o Estado, alicerçado nestas premissas maiores, se utiliza de um conjunto de tributos para manter o seu funcionamento. Tais obrigações tributárias representam uma prestação em pecúnia, devida pelo contribuinte em caráter compulsório, eis que decorrente de lei, conforme preceitua o art. 3º do Código Tributário Nacional, in verbis:

Art. 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada

Segundo a doutrina de Ricardo Lobo Tôrres,

a relação jurídica tributária é complexa, pois abrange um conjunto de direitos e deveres do Fisco e do contribuinte. A Fazenda Pública tem o direito de exigir do contribuinte o pagamento do tributo e a prática de atos necessários a sua fiscalização e determinação; mas o dever de proteger a confiança nela depositada é pelo contribuinte. O sujeito passivo, por seu turno, tem o dever de pagar o tributo e de cumprir os encargos formais necessários à apuração de débito; mas tem o direito ao tratamento igualitário por parte da Administração e ao sigilo com relação aos atos praticados. [46]

Com relação ao contribuinte, a natureza obrigacional da relação tributária revela o caráter de disponibilidade, haja vista seu caráter patrimonial. [47]

A par desta constatação, vozes na doutrina tem defendido a impossibilidade de se inserir direitos do contribuinte no âmbito dos direitos difusos, vez que a disponibilidade da prestação pecuniária representaria óbice à verificação da transindividualidade, vez que estes, "caracterizados pela indivisibilidade, indeterminação do indivíduos e indisponibilidade (...) jamais compreenderão temas tributários, marcados pela divisibilidade, identificação do titular e disponibilidade, posto que de cunho eminentemente patrimonial".. [48]

Com fundamento nesta construção teórica, parte da doutrina tem se posicionado de forma desfavorável à legitimação do Ministério Público para a propositura de ação civil pública em que se discute matéria tributária, uma vez que o art. 127 do texto constitucional aduz que a atuação do órgão ministerial se restringe à defesa dos direitos indisponíveis.

Contudo, a controvérsia acerca da disponibilidade intrínseca à relação tributária e a conseqüente impossibilidade de se veicular ação civil pública pelo parquet (o que – ainda que de forma oblíqua – usurparia o direito de ação e de propriedade dos contribuintes), tem recebido contornos interpretativos baseados na magnitude do sistema tributário, haja vista a possibilidade de medidas em âmbito tributário implicarem em lesão ou ameaça a direito ou interesse afeto indistintamente à coletividade, conforme se passa a analisar.

2.4. A questão da disponibilidade e a relevância social

Conforme já asseverado, o Código de Defesa do Consumidor ampliou o rol de legitimados para a promoção da defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Para Vinícius Caldas da Gama e Abreu, "deve ser questionada a constitucionalidade destes dispositivos legais, que ampliam o rol de competência do Ministério Público, atribuindo-lhe a defesa judicial de direitos individuais disponíveis, quando a Constituição da República, de forma clara, limitou a atuação da instituição à defesa de "interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, "caput")". [49]

Entretanto, as funções institucionais do Ministério Público e o disposto acerca da ação civil pública no art. 129, inciso III, da Constituição, tem levado a jurisprudência a se manifestar quanto a possibilidade de tal proteção, desde que em certas circunstâncias.

Consoante a orientação dos tribunais, o conceito de direito indisponível, para efeito de autorizar a atuação do Ministério Público em sua defesa, decorre da circunstância de o interesse coletivo apresentar-se em primeiro plano, tornando-se, na perspectiva jurídica, menos relevante o interesse privado do titular em sua efetivação.

Embora, de regra, seja "desprovida de importância prática no que se refere aos efeitos de admissibilidade da ação civil pública" [50], a classificação dos interesses coletivos tem sido utilizada pela doutrina e pela jurisprudência para solucionar questões envolvendo a legitimidade do Ministério Público para propor demandas envolvendo matéria tributária.

Sempre tendo como suporte normativo o texto constitucional, a discussão reside, substancialmente, à possibilidade de se conferir legitimidade ad causam ao Ministério Público na tutela de interesses disponíveis.

A Constituição Federal esclarece que é permitido ao Ministério Público promover a defesa de interesses individuais difusos e coletivos, bem como os interesses sociais e individuais indisponíveis (arts. 127 e 129, inciso III). A par desta constatação, tem-se admitido que a legitimidade do parquet exsurge quando a defesa dos interesses atinge relevância coletiva.

Buscando discernir a atividade ministerial da própria advocacia privada, sob o ponto de vista dos efeitos econômicos da tutela, Hugo de Brito Machado [51] externa entendimento segundo o qual, para que possa haver a atuação ministerial, além de os interesses necessitarem de relevância coletiva, as cotas individualizáveis não devem ter grande expressão econômica:

Existem direitos individuais homogêneos nos quais as quotas individualizadas ou individualizáveis são de valor economicamente significativo. Os indivíduos, titulares dessas quotas, por isto mesmo são motivados a defendê-las. No caso da cobrança de um tributo inconstitucional isto geralmente acontece.

(...)

Existem, todavia, direitos individuais homogêneos que, embora tenham, globalmente, considerados, expressão econômica elevada, não são economicamente significativas as parcelas ou quotas individuais. Os titulares desses direitos, por isto mesmo, não são motivados a defendê-los individualmente.

(...)

O entendimento segundo o qual todos os direitos individuais homogêneos podem ser defendidos pelo Ministério Público leva a conclusão de que os membros do parquet podem advogar, e tal conclusão conflita flagrantemente com a norma constitucional que expressamente o proíbe. O entendimento segundo o qual somente os direitos difusos ou coletivos podem ser defendidos pelo Ministério Público deixa inúteis as normas da Constituição segundo as quais tem o parquet o dever de zelar pelo efetivo respeito aos direitos nela assegurados, e nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Judiciário.

Penso que as normas de leis ordinárias que legitimam o Ministério Público para a defesa dos direitos individuais homogêneos nos casos aqui referidos, são meramente explicitantes ou exemplificativas. Aliás, a não ser assim, seriam inconstitucionais. Como a Constituição não deu, explicitamente, ao Ministério Público, tal legitimação, de duas uma: ou se entende que se trata de legitimação implícita na Constituição, e neste caso não pode ser restrita aos casos indicados em leis ordinárias, ou então ter-se-á de concluir que a mesma não está implícita na Constituição, e neste caso as leis que a conferem , como fizeram as de início referidas, são inconstitucionais.

Conclui-se, portanto, que o Ministério Público está legitimado para a defesa dos direitos individuais homogêneos que tenham duas características, a saber: a) sejam, em sua globalidade, de grande expressão coletiva e b) em suas quotas, ou parcelas, individualizadas, ou individualizáveis, sejam de valor econômico não significativo. Não, porém, para a defesa daqueles direitos cujas parcelas individualizadas ou individualizáveis sejam de porte econômico capaz de estimular a defesa, individualmente, por seus titulares. Ainda que tenham grande expressão coletiva.

Na doutrina, entendimento diverso é do eminente jurista Ives Gandra Silva Martins, para quem tão somente o titular de um direito pode dele dispor, "não podendo ser substituído por ninguém contra sua vontade, contra sua autorização, contra sua deliberação. O MP não pode dispor de direito individual de um cidadão, sem que este o autorize, razão pela qual não lhe outorgou a CF competência para proteção dos direitos individuais se não aqueles que são indisponíveis." [52]

Contudo, vale mencionar o teor da súmula nº 329 do STJ, cujo teor esclarece que "o Ministério Público tem legitimidade para promover ação civil pública em defesa do patrimônio público". Como conciliar a pretensa vedação constitucional à proteção pelo parquet de interesses disponíveis, quando a ausência de tal proteção possa afetar interesses maiores, como o patrimônio público?

A Lei Complementar nº 75/93, Lei Orgânica do Ministério Público da União (aplicável aos órgãos ministeriais estaduais por força do disposto no art. 80 da Lei nº 8.625/93), estabelece em seu art. 5º, que é função institucional a defesa do patrimônio social (inciso III, alínea ‘b’), ao passo que em seu art. 6º, inciso VII, alínea ‘d’, e inciso XII, que lhe incumbe a proteção de interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos, e ainda propor ação civil pública para a defesa de interesses individuais homogêneos.

Os perigos decorrentes da ampliação da legitimação do parquet na defesa dos interesses individuais homogêneos, sob o prisma da disponibilidade, é tema analisado também por Kazuo Watanabe. Este admite que os direitos disponíveis podem ser tutelados pelo parquet, desde que haja expressão coletiva, ou seja, relevância social:

Em linha de princípio somente os interesses individuais indisponíveis estão sob a proteção do parquet. Foi a relevância social da tutela a título coletivo dos interesses ou direitos individuais homogêneos que levou o legislador a atribuir ao Ministério Público e a outros entes públicos a legitimação para agir nessa modalidade de demanda molecular. Como já ressaltado, somente a relevância social do bem jurídico tutelando ou da própria tutela coletiva poderá justificar a legitimação do Ministério Público para a propositura de ação coletiva em defesa de interesses privados disponíveis. [53]

Embora o Código de Defesa do Consumidor tenha consagrado a tutela dos interesses individuais homogêneos, os direitos individuais disponíveis já foram mencionados na legislação pátria, em especial na lei de ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores do mercado de valores mobiliários (Lei nº 7.913/89) e a lei de ação por responsabilidade por prejuízos causados aos credores por ex-administradores de instituições financeiras em liquidação ou falência (Lei nº 6.024/74).

Acerca da questão envolvendo a possibilidade de o Ministério Público propor ação civil pública com o objetivo de discutir interesses individuais homogêneos de relevância social, o Ministro do Celso de Mello, quando do julgamento do Recurso Extraordinário 472.489/RS, exarou voto cuja fundamentação possui o teor a seguir reproduzido:

A existência, na espécie, de interesse social relevante, amparável mediante ação civil pública, ainda mais se põe em evidência, quando se tem presente - considerado o contexto em causa - que os direitos individuais homogêneos ora em exame revestem-se, por efeito de sua natureza mesma, de índole eminentemente constitucional, a legitimar, desse modo, a instauração, por iniciativa do Ministério Público, de processo coletivo destinado a viabilizar a tutela jurisdicional de tais direitos. [54]

Verifica-se portanto uma tendência jurisprudencial no sentido de considerar, antes de todos os aspectos, se a questão posta atinge relevância social, ou seja, se independentemente de se tratar de direito patrimonial disponível, podem haver desdobramentos que interfiram em interesses metaindividuais de índole difusa.

Seria o caso, por exemplo, de medidas tributárias que embora atinjam determinado grupo de indivíduos, acabam por gerar lesão ao patrimônio público de forma indistinta.

Vê-se portanto uma tendência jurisprudencial no sentido de considerar, antes de todos os aspectos, se a questão posta atinge relevância social, ou seja, se independentemente de se tratar de direito patrimonial disponível, podem haver desdobramentos que interfiram em interesses metaindividuais de índole difusa.

Insta transcrever o parecer da Procuradoria-Geral da República, nos mesmos autos de Recurso Extraordinário, que em brilhante análise, expõe e defende:

Inicialmente, vale frisar ser incorreta a afirmação genérica de que o ‘Parquet’ não pode defender interesses individuais homogêneos. Tal afirmação é demasiadamente superficial. Se a defesa de tais interesses envolver relevante abrangência social, como a hipótese dos presentes autos, que trata do direito dos segurados da previdência social obterem certidão relativa ao seu tempo de serviço, deverá a ação civil pública correspondente ser intentada pela instituição. Ou seja, se, no caso concreto, a defesa coletiva de interesses transindividuais assumir importante papel social, não se poderá negar ao Ministério Público a defesa desses direitos.

(...)

Destarte, válido ainda destacar que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 129, inciso III, traz apenas as expressões ‘interesses difusos e coletivos’, pois foi em 1990, ano da edição do Código de Defesa do Consumidor, que a expressão ‘interesses individuais homogêneos’ foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro. Dessa forma, quando a Carta Magna diz ‘interesses difusos e coletivos’, na realidade, está a referir-se aos interesses transindividuais ‘lato sensu’, nos quais também estão abrangidos os ‘interesses individuais homogêneos’

Os interesses individuais homogêneos, considerados, portanto, denominação reconhecida doutrinariamente para representar os interesses afetos a um grupo de pessoas, muitas das vezes, em que pese a dita disponibilidade ou não, são circundados pelo próprio interesse coletivo, tendo em vista as repercussões econômico-sociais advindas da sua violação ou da ameaça à sua violação.

Se as opiniões dividem-se as quanto à legitimidade ministerial para defender interesses individuais homogêneos alheios ao direito do consumidor, dada a previsão legal no bojo do codex consumerista, amplia-se a discussão quando se passa a tratar da disponibilidade dos interesses individuais homogêneos, posto que estes, via de regra, seriam direitos patrimoniais disponíveis, o que configuraria vilipêndio ao art. 127, caput, da Constituição Federal.

Em fevereiro de 1995, a Egrégia Corte Cidadã externou entendimento segundo o qual "legitimidade tem o Ministério Público para a ação civil pública em prol de interesses coletivos de comunidade de pais e alunos de estabelecimento de ensino" [55], denotando assim que o norte preponderante a ser destacado pelo intérprete da norma reside na relevância social da questão afeta aos direitos individuais homogêneos, ainda que disponíveis.

Tal entendimento torna inevitável a verificação dos precedentes emanados no âmbito da Corte Constitucional, vez que o próprio texto constitucional, em 1988, conferiu ampla atuação ao Ministério Público enquanto guardião da ordem jurídica e dos direitos sociais, podendo exercer quaisquer funções compatíveis com esta finalidade.

Assim, por ocasião no julgamento do Recurso Extraordinário 163231-3, originário de São Paulo, restou assentado no Supremo Tribunal Federal o entendimento segundo o qual a disponibilidade dos direitos individuais homogêneos não é óbice à atuação ministerial, vez que, inegavelmente, o aumento indevido de mensalidades escolares – discussão central do aludido recurso excepcional – afeta não apenas o patrimônio dos pais de alunos, mas também o direito à educação, havendo portanto interesses transindividuais relevantes socialmente, a ensejar a atuação do órgão ministerial nos termos do texto constitucional.

Dado o relevo constitucional do direito à educação, a Suprema Corte entendeu ser legítima a atuação do parquet por meio de ação civil publica, em especial "quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em conteúdo de extrema delicadeza e significado social". (grifamos).

A decisão restou assim fundamentada:

Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, strictu sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas". "As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos". "Cuidando-se do tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido de capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em conteúdo de extrema delicadeza e significado social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal. [56]

Nota-se que o legislador conferiu legitimidade in thesis ao parquet para a defesa dos interesses supraindividuais, sendo, pois, vedado ao intérprete e ao legislador infraconstitucional questionar a presença do interesse social legitimador de sua intervenção, posto que este interesse já se encontra presumido pela própria norma, podendo-se compreender que o Código de Defesa do Consumidor apenas consagrou a permissão ao Ministério Publico para o ajuizamento de ação civil publica para resguardar direitos e interesses inerentes coletivos, difusos ou individuais homogêneos, não apenas em matérias relativas às relações consumidor-fornecedor, mas a qualquer seara jurídica afeta a interesses supraindividuais. [57]

Constata-se, enfim, que o Ministério Público, assim considerado o órgão incumbido da missão de ser o guardião do Estado Democrático de Direito, detém legitimidade decorrente do texto constitucional para proteger interesses metaindividuais mesmo que disponíveis, posto que a defesa ou não destes, ainda que integrem a esfera de disponibilidade dos cidadãos, importam muitas das vezes em intensa repercussão social.

A observância de princípios constitucionais atinentes aos tributos, tais como a legalidade, a progressividade sobre a propriedade territorial urbana ou rural, a não-cumulatividade, o não-confisco e a não-surpresa, dentre tantos outros, irradiam efeitos em toda a coletividade. Neste ponto reside a controvérsia acerca da possibilidade de se manejar ação civil pública para discutir questões afetas à seara tributária.

Com efeito, as regras constitucionais que limitam o poder de tributar consubstanciam-se em verdadeiro feixe de direitos fundamentais dos cidadãos, vez que tratam desde questões relativas à imposição tributária pelo Estado até os poderes tributárias e as consequentes garantias dos cidadãos-contribuintes perante estes poderes.

Importa destacar as limitações constitucionalmente insculpidas, em especial nos arts. 150 e 151 da Constituição Federal:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

III - cobrar tributos:

a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;

b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;

c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;

IV - utilizar tributo com efeito de confisco;

V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público;

VI - instituir impostos sobre:

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;

b) templos de qualquer culto;

c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;

d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.

Art. 151. É vedado à União:

I - instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de outro, admitida a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento sócio-econômico entre as diferentes regiões do País;

II - tributar a renda das obrigações da dívida pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como a remuneração e os proventos dos respectivos agentes públicos, em níveis superiores aos que fixar para suas obrigações e para seus agentes;

III - instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.

Assim, a título exemplificativo, consideremos a hipótese de determinado Estado aumentar tributo de sua competência, tal como o de circulação de mercadorias, de forma ilícita, em ofensa ao princípio da anterioridade. Tome-se ainda como exemplo situação em que determinado Município exija imposto de sua competência sobre templos de determinado culto.

Inevitavelmente a adoção de medidas contrárias à lei afetaria não somente os indivíduos diretamente atingidos, tais como as empresas sediadas no território do Estado, no primeiro caso, e os frequentadores de determinado culto religioso.

A lesão ou a ameaça a lesão afetaria indistintamente a todos os consumidores de artefatos produzidos no determinado Estado, posto que a medida elevaria abruptamente os preços de produtos ali confeccionados e consumidos. A própria liberdade de culto, na segunda hipótese, seria o interesse vilipendiado pelo ato de âmbito municipal, a interferir indistintamente nos interesses supraindividuais da comunidade ali localizada.

Sobre o autor
Julian Henrique Dias Rodrigues

Advogado em exercício no Brasil, em Portugal e na União Europeia. Licenciado pela Faculdade de Direito de Curitiba desde 2008, é pós-graduado em Direito Constitucional pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná, em Direito do Desporto pela Universidade Castelo Branco, e em Direito da Medicina pela Universidade de Lisboa. Mestrando em Direito pela Universidade Nova de Lisboa. Integrou a Comissão de Direito do Desporto da Ordem dos Advogados do Brasil (PR), e diversos Tribunais de Justiça Desportiva. Atuou como assessor de magistrado junto ao Tribunal de Justiça do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Julian Henrique Dias. A legitimidade do Ministério Público para a instauração de ação civil pública em matéria tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2636, 19 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17436. Acesso em: 22 nov. 2024.

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