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A aposentadoria especial do servidor público e a Proposta de Súmula Vinculante nº 45

Agenda 27/09/2010 às 06:22

A regra geral a ser aplicada em matéria de aposentadoria dos servidores públicos consiste na igualdade dos requisitos e critérios a serem observados pelo servidor. Trata-se, na verdade, de obediência ao princípio da impessoalidade na Administração Pública.

Todavia, há algumas situações que, por sua natureza e peculiaridades, merecem tratamento diferenciado, permitindo que tais requisitos e critérios refujam aos parâmetros estabelecidos na regra geral. Tais situações, como regra, dão ensejo à redução do tempo para aposentadoria, mas não necessariamente. Pode haver atenuação em outros aspectos, como, por exemplo, a redução de idade, o cumprimento do tempo de serviço público ou do tempo de exercício em cargo público. Estes são, em linhas bastante gerais, os contornos do instituto da aposentadoria especial.

A Constituição vigente, originariamente, previa a edição de lei complementar para estabelecer exceções no caso de atividades penosas, insalubres ou perigosas (art. 40, § 1º). Posteriormente, em virtude de alteração introduzida pela EC nº 20/98, o dispositivo passou a figurar no art. 40, § 4º, da CF, e nele se previu a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a aposentadoria de servidores no caso de "atividades exercidas exclusivamente sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física", conforme viesse a dispor lei complementar.

A Emenda Constitucional nº 47, de 05 de julho de 2005, deu nova redação ao art. 40, § 4º, da Carta da República, para o fim de admitir que, mediante lei complementar, sejam estabelecidos critérios e requisitos diferenciados para a concessão de aposentadoria, nos casos de servidores: portadores de deficiência; que exerçam atividades de risco; cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física.

Na clássica classificação das normas constitucionais do Professor José Afonso da Silva, o dispositivo em análise consubstancia norma de eficácia limitada, ou seja, sua eficácia depende da edição de lei complementar.

Desta feita, a aplicabilidade plena dessa norma depende de normatividade futura, com base na qual o legislador infraconstitucional, integrando-lhe a eficácia, confira-lhe capacidade de execução daqueles interesses visados.

Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Brito alcunham esse tipo de norma de "normas de integração", e pontuam que:

"têm por traço distintivo a abertura de espaço entre o seu desiderato e o efetivo desencadear dos seus efeitos. No seu interior existe permanente tensão entre a predisposição para incidir e a efetiva concreção. Padecem de visceral imprecisão, ou deficiência instrumental, e se tornam, por si mesmas, inexeqüíveis em toda a sua potencialidade. Daí porque se coloca, entre elas e a sua real aplicação, outra norma integradora de sentido, de modo a surgir uma unidade de conteúdo entre as duas espécies normativas." [01]

Ancorado na doutrina tradicional referente ao tema, o Supremo Tribunal Federal entendera, em passado não muito distante, que o artigo 40, § 4º, na medida em que depende de lei regulamentadora, não poderia ser aplicado, deixando assentado que:

"Servidor público do Distrito Federal: inexistência de direito à aposentadoria especial, no caso de atividades perigosas, insalubres ou penosas. O Supremo Tribunal, no julgamento do MI 444-QO, Sydney Sanches, RTJ 158/6, assentou que a norma inscrita no art. 40, § 1º (atual § 4º), da Constituição Federal, não conferiu originariamente a nenhum servidor público o direito à obtenção de aposentadoria especial pelo exercício de atividades perigosas, insalubres ou penosas; o mencionado preceito constitucional apenas faculta ao legislador, mediante lei complementar, instituir outras hipóteses de aposentadoria especial, no caso do exercício dessas atividades, faculdade ainda não exercitada." (RE 428.511-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 17/03/06)

Percebe-se que, àquela altura, predominava no Pretório Excelso a tese segundo a qual o mandado de injunção serviria apenas para produzir uma declaração de inconstitucionalidade por omissão, da qual deveria ser dado conhecimento ao órgão competente para a adoção das providências cabíveis. Luís Roberto Barroso chegou, não sem ironia, a afirmar que, "consoante essa orientação do Supremo tribunal, a Constituição consagrou dois remédios constitucionais para que seja dada ciência da omissão ao órgão inerte, e nenhum para que se componha, em via judicial, a violação do direito constitucional pleiteado." [02]

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No entanto, na medida em que se firmou a dogmática constitucional centrada na efetividade da Constituição e nos direitos fundamentais, passou-se a defender que todas as normas constitucionais – sejam de eficácia plena, contida ou limitada – exatamente por serem eficazes, podem ser diretamente aplicadas pela via judicial. Assim, de acordo com a lição de Dirley da Cunha Júnior, "ainda que carente de legislação, nada impede, antes se impõe, que o juiz aplique diretamente uma norma de eficácia limitada, seja ela uma regra ou um princípio, quando se configure a situação correspondente ao seu relato." [03]

A Corte, então, avançou, paulatinamente, na percepção do mandado de injunção, e passou a conferir-lhe eficácia mandamental, produzindo a norma a ser aplicada ao caso concreto, garantindo, assim, a efetividade de direitos fundamentais carentes de regulamentação.

No caso da aposentadoria especial, típico exemplo de direito constitucionalmente estabelecido que padece da inércia legislativa, já que, passadas duas décadas, a norma constitucional que garante aos servidores públicos sujeitos a condições especiais de trabalho o direito à aposentadoria segundo regras e critérios diferenciados ainda não foi regulamentada, o STF passou a conceder a ordem em sede mandado de injunção para suprir, e não apenas para declarar, a omissão legislativa.

Em nítida contraposição ao julgamento prolatado no MI 444, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no bojo do MI 721, sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, julgou parcialmente procedente o mandado de injunção impetrado por servidora pública ocupante do cargo de auxiliar de enfermagem, que pleiteava a integração da lacuna legislativa para que pudesse ver reconhecido o seu direito à aposentadoria especial decorrente de trabalho prestado há mais de 25 anos em ambiente insalubre. Determinou, pois, o Pretório Excelso, como forma de suprir a omissão legislativa, que fosse aplicada à servidora pública impetrante a disciplina do Regime Geral de Previdência Social referente ao tema, inserta no art. 57 da Lei 8.213/91.

Seguiram-se ao julgamento referido, uma série de outros julgados na mesma direção, firmando a Corte entendimento no sentido de que, enquanto não for editada a lei complementar regulamentadora da norma constitucional em comento, devem ser aplicados aos servidores públicos os critérios e requisitos da aposentadoria especial constantes do Regime Geral de Previdência Social. Inclusive, em sede de questão de ordem suscitada pelo Ministro Joaquim Barbosa no julgamento do MI 797, o Plenário autorizou que os Ministros passassem a julgar monocraticamente os casos idênticos.

Assim, tendo em vista a reiterada jurisprudência do STF sobre a matéria, bem como a indiscutível potencialidade de surgimento de demandas similares, pretende o Pretório Excelso, no bojo da PSV nº 45, editar enunciado vinculante com o seguinte conteúdo:

Enquanto inexistente a disciplina específica sobre aposentadoria especial do servidor público, nos termos do artigo 40, § 4º da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional n. 47/2005, impõe-se a adoção daquela própria aos trabalhadores em geral (artigo 57, § 1º da Lei n. 8.213/91).

Trata-se de medida extremamente salutar, considerando, especialmente, a inadmissível mora legislativa, assim como a necessidade de se conferir eficácia geral à jurisprudência pacificada da Corte Suprema.

Ocorre, todavia, que há especificidades no serviço público e no regime próprio de previdência dos servidores públicos que merecem ser consideradas e cuidadosamente ponderadas.

Importante destacar que a incidência das regras do regime geral não pode se dar à míngua da observância de delineamentos típicos do regime próprio de aposentadoria dos servidores públicos. Daí a necessidade de se observar, por exemplo, a exigência de que o servidor, para fazer jus às regras da aposentadoria especial, possua, no mínimo, 10 anos de efetivo exercício no serviço público, e 5 anos no cargo em que se dará a aposentadoria. Da mesma forma que no regime geral são exigidos períodos de carência para concessão dos benefícios, o regime próprio impõe certos limites temporais, tendo em vista o modelo de pagamento dos proventos, dentre outros aspectos.

Assim, é fundamental que a louvável aplicação analógica das regras e critérios do regime geral de previdência social não finde por afastar a incidência de normas específicas do regime de aposentadoria dos servidores públicos, recheado, como se sabe, de peculiaridades.

Além disso, há outro ponto que merece ser considerado, evitando-se, assim, que o enunciado seja editado de forma demasiadamente ampla e acabe por não refletir aquilo que efetivamente se consolidou na jurisprudência da Corte.

Inquestionavelmente, as hipóteses em que o servidor público poderá se aposentar de acordo com critérios diferenciados são estabelecidas, expressamente, na Constituição Federal, em seu artigo 40, § 4º. Assim, o espaço deixado pelo constituinte concerne tão somente aos critérios e requisitos para a obtenção do benefício.

Curial notar, pois, neste passo, que o âmbito de incidência do instituto da aposentadoria especial no serviço público é bem maior que aquele afeto aos trabalhadores em geral, conforme se depreende da análise comparativa entre o art. 40, § 4º da Carta Magna e o art. 57 da Lei 8.213/91. Passemos, pois, a compará-los.

O comando constitucional assevera que:

"§ 4º. É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados, nos termos definidos em leis complementares, os casos de servidores:

I – portadores de deficiência;

II – que exerçam atividade de risco;

III – cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física."

Por sua vez, a legislação do Regime Geral de Previdência Social dispõe que:

"Art. 57. A aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta Lei, ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei."

Como se vê claramente, os critérios e requisitos definidos na legislação previdenciária dizem respeito tão somente aos trabalhadores que trabalharem em condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, coincidindo, portanto, com a situação descrita no inciso III da norma constitucional transcrita acima.

Constata-se, destarte, sem maiores esforços, que as hipóteses descritas nos incisos I e II do art. 40, § 4º, da Constituição Federal, quais sejam, a dos servidores portadores de deficiência, e a dos servidores que exerçam atividade de risco, são peculiares aos servidores públicos.

Note-se que a própria escala temporal estabelecida na lei é graduada em função da nocividade dos agentes físicos, químicos ou biológicos a que se encontrar exposto o trabalhador, não possuindo referida lei normatividade atinente a portadores de deficiência ou trabalhadores que exerçam atividades de risco.

Nessa linha de raciocínio, parece-nos inadequada a edição de súmula vinculante em termos tão amplos quanto os que foram propostos, por simplesmente não haver na disciplina invocada para suprir a omissão legislativa regras e critérios concernentes aos portadores de deficiência e àqueles que exerçam atividade de risco.

Curial perceber, ainda, que a própria jurisprudência do Supremo, que se pretende cristalizar no enunciado vinculante em debate, não trata, em nenhum dos precedentes, de servidores portadores de deficiência ou de servidores que exerçam atividades de risco. Embora alguns dos julgados versem sobre agentes policiais, as atividades descritas pelos impetrantes envolviam situações de insalubridade, e não apenas de periculosidade, o que viabilizou que a Corte determinasse a aplicação das regras do regime geral de previdência social.

Nada impede que o Pretório Excelso venha a dizer, também em sede de mandado de injunção, quais regras e critérios devem ser aplicados às hipóteses referidas, densificando, assim, a norma constitucional cuja falta de regulamentação tem impedido sua plena aplicabilidade. O que não se pode admitir é a edição de súmula vinculante em termos tão amplos, abrangendo todas as situações descritas na norma constitucional, sem que a legislação invocada para suprir a omissão veicule regras específicas sobre as situações mencionadas, e sem que os precedentes que justificarão a existência do enunciado tenham enfrentado a questão.

Trago, abaixo transcrita, a título de sugestão, redação que me parece mais apropriado ao caso:

"Enquanto inexistente a disciplina específica sobre aposentadoria especial do servidor público, nos termos do artigo 40, § 4º da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional n. 47/2005, impõe-se a adoção daquela própria aos trabalhadores em geral (artigo 57, § 1º da Lei n. 8.213/91)."

Os termos propostos para a súmula podem gerar sérios problemas, especialmente em razão do fato de seu caráter vinculante alcançar a própria Administração Pública, que poderá ser instada a aplicar o entendimento sumulado a essas hipóteses não descritas na legislação previdenciária, o que certamente gerará enorme celeuma.

Eventuais controvérsias que venham a surgir no âmbito administrativo devem restringir-se à comprovação do preenchimento dos requisitos, especificamente no que tange ao tempo de exposição a fatores que prejudiquem a saúde ou a integridade física, bem como à natureza em si das atividades, motivo pelo qual entendemos que a súmula deveria ser editada em termos mais restritos.


Notas

  1. BASTOS, Celso Ribeiro e BRITO, Carlos Ayres de. Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais, p. 48.
  2. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira, p. 257.
  3. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional, p. 176.
Sobre o autor
Gustavo Leonardo Maia Pereira

Procurador Federal em exercício na Coordenação de Tribunais Superiores da Procuradoria-Geral Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará e Especialista em Direito Processual Civil. Ex-Procurador do Estado de Goiás. Ex-Coordenador de Tribunais Superiores da PGF/AGU. Ex-Assessor Legislativo da Secretaria-Geral da Presidência da República. Ex-Chefe Adjunto da Assessoria Jurídica junto à Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Gustavo Leonardo Maia. A aposentadoria especial do servidor público e a Proposta de Súmula Vinculante nº 45. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2644, 27 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17487. Acesso em: 22 nov. 2024.

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