Resumo: O presente artigo tem por finalidade dar uma nova interpretação ao parágrafo segundo do artigo 193 da Consolidação das Leis Trabalhistas, e demonstrar que o impedimento de cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade não pode prosperar em razão do ordenamento jurídico vigente no Brasil.
1.Introdução.
Este trabalho tem por finalidade tentar corrigir entendimento equivocado sobre a impossibilidade de cumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade.
Infelizmente hoje o entendimento é pacifico, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, com relação à impossibilidade de recebimento, pelo trabalhador, dos referidos adicionais de forma cumulada, embora este entendimento seja carente de uma fundamentação lógica jurídica.
Com sinceridade, procurei uma justificativa plausível para tentar entender o motivo da doutrina e jurisprudência se posicionarem desfavoravelmente à classe operária, que trabalha sob condições insalubres e perigosas, tendo prejudicado a sua saúde e sua vida, mas nada de coerente me foi transmitido a não ser justificativas vazias embasadas em interpretações equivocadas que quase que concluíam com um "porque sim", típico daqueles que repetem o que foi dito, mas sem saber o porquê, pois sua argumentação não tem lógica.
Por este inconformismo tentarei, humildemente, nas seguintes linhas, demonstrar que qualquer interpretação que se faça proibindo a acumulação destes adicionais é inconstitucional e deve ser revista com a maior brevidade possível sob pena de perpetuarmos prejuízos irreparáveis à classe trabalhadora.
2.Fundamentação.
Em primeiro lugar, cabe definir o que seja insalubridade e periculosidade, o que faremos citando o texto da Lei.
Diz o artigo 189 da CLT que:
"Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os empregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão na natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos."
Já o artigo 192 do diploma trabalhista aponta o percentual a ser pago conforme o grau de nocividade, nos seguintes termos:
"O exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo."
Com relação ao adicional de periculosidade, o artigo 193 revela que:
"São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado."
"§ 1º - O trabalho em condições de periculosidade assegura ao empregado um adicional de 30% (trinta por cento) sobre o salário sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa."
"§ 2º - O empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido."
Com relação a este último parágrafo, a NR 16 repete a mesma idéia, de que, sendo constatada, também, a presença de agentes perigosos, o trabalhador "poderá optar" pelo adicional de insalubridade caso lhe seja devido, nos seguintes termos:
"16.2.1 O empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido."
Assim temos que referidos adicionais são devidos quando a atividade exercida pelo trabalhador contiver agentes nocivos à sua saúde, acima dos limites de tolerância fixados, ou a atividade seja exercida em local que tenha a presença de inflamáveis, eletricidade ou explosivos, que coloque a vida do operário em risco.
Aponta o Juiz do Trabalho Nelson Hamilton Leiria, na revista LTR, que:
"O respeito à vida tornou-se monetizado. Era mais fácil (e barato) comprar a saúde do trabalhador pelo pagamento do adicional de suicídio, como diz Camille Simonin (Grott: 2003, 135) que eliminar os agentes insalubres." [01]
O mesmo deve ser dito com relação ao adicional de periculosidade, só que em vez da saúde, o risco se refere à vida do trabalhador.
Nesse passo, e com base nas normas já citadas, a doutrina e a jurisprudência caminharam no sentido de interpretar que o termo "poderá optar" tem o sentido de "deve optar", em que o empregado deve fazer a opção de um dos adicionais, em caso de constatação da presença dos dois, pela impossibilidade de recebimento dos dois de forma simultânea.
Assim se posicionou o Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região:
"EMENTA: ADICIONAL DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE. INACUMULABILIDADE. A lei proíbe a acumulação dos adicionais pagos pelo trabalho desenvolvido em ambiente insalubre ou perigoso, sendo que "O empregado poderá optar pelo adicional (...) que porventura lhe seja devido". Inteligência do art.193, § 2º da CLT.
... . Segundo a r. sentença, o autor deverá apontar o adicional a ser executado, se de insalubridade, ou periculosidade, uma vez verificadas ambas condições adversas ao trabalho, considerando os termos do art. 193, § 2º da CLT, como já decidiu este E. Tribunal:"Adicional de insalubridade e/ou periculosidade. Opção/trânsito em julgado. A existência de trabalho perigoso e insalubre em concomitância, em face da proibição da cumulatividade, obriga o empregado a fazer a opção por um desses adicionais após o trânsito em julgado da decisão, pois nesta fase processual é que se materializa efetivamente o direito do trabalhador. ..."(RO, Ac. 20090367310, proc. 00326200725602009, Rel. Des. VALDIR FLORINDO, 6ª T., j. 12.05.09, DOE 22.05.09)."
O entendimento acima citado é um resumo do entendimento dos Tribunais Regionais de todo o País e da Corte Especializada.
A doutrina, aqui representada por Valentin Carrion, in Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho aponta que:
"A lei impede a acumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade; a escolha de um dos dois pertence ao empregado (art. 193, § 2º), após o trânsito em julgado da sentença, no processo de conhecimento. Tal opção, pela sistemática processual e economia de provas, deverá ser feita na petição inicial ou, se o juiz sanear o processo, no início. ..." [03]
Como se verifica, nem no acórdão e nem na citação doutrinária há a fundamentação lógica e coerente de quais os motivos levaram a concluir que não se pode acumular os dois adicionais.
3.Desenvolvimento da Posição
Para demonstrar o grande erro cometido pelos operadores do direito na interpretação dada ao § 2º do artigo 193 da CLT, é importante citar o princípio fundamental sobre o direito do trabalho, com base no qual toda criação legislativa e interpretação das normas postas devem ter como ponto de partida, que é o caput do artigo 7º da Constituição da República Federativa do Brasil que diz:
"Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:"
A partir deste princípio passamos a desenvolver, o que entendemos, ser a correta interpretação sobre a possibilidade de acumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade.
Por ordem, primeiro temos que discutir a viabilidade da norma em comento ser interpretada gramaticamente.
Conforme o dicionário eletrônico Mini Aurélio, a palavra "poderá" citada no § 2º do artigo 193 da CLT., na língua portuguesa tem o seguinte significado:
"Verbo transitivo direto. 1.Ter a faculdade, ou o direito, de. 2.Ter força, ou energia, ou calma, ou paciência, para. 3.Ter possibilidade de, ou autorização para."
Assim, a partir da apresentação do significada da palavra "poderá", não podemos dizer que a doutrina e jusrisprudência tenham se utilizado da interpretação literal ou gramatical, já que, como já apontado, o seu significado aponta para uma faculdade de opção, e, se é desta forma, não poderia ser dado o caráter de obrigatoriedade de opção se a lei, literalmente, não impôs tal obrigação.
Desta forma, não haveria obrigatoriedade de opção pelo trabalhador de escolher entre um e outro adicional, pois a faculdade é sua de escolher, se não quiser escolher, deverá receber os dois.
Mas, poderia o trabalhador escolher um dentre os dois adicionais e abrir mão do outro, que nitidamente tem caráter salarial e conseqüentemente natureza alimentar?
Assim, esta norma perderia sua validade em razão de afrontamento a princípio trabalhista, qual seja, da indisponibilidade das verbas de natureza salarial.
Então qual seria o sentido desta norma?
Entendo que o sentido desta norma deve seguir os mesmos princípios das normas em geral de ordem trabalhista, quero dizer, o operário só poderia de fato optar por um ou outro adicional no caso de negociação coletiva, como no caso de redução de salários e compensação de jornada de trabalho, e aí sim, teríamos um sentido lógico de interpretação para esta norma, pois, em troca de outro benefício, poderia o trabalhador, através de sindicato de sua categoria, negociar e optar entre um e outro adicional.
Apontaria um exemplo acadêmico, como no caso da negociação em que se estipule um adicional de 50% (cinqüenta por cento) para o adicional de periculosidade, caso a categoria abrisse mão do adicional de insalubridade em grau médio.
Com esta interpretação, cuja aplicação seria condicionada à negociação coletiva, consideraria valida esta norma, caso contrário não poderia ser considerada válida e eficaz, embora existente juridicamente.
Entretanto, entendêssemos de forma diversa, tal preceito legal esbarraria em diversos princípios e regras referentes ao direito do trabalho, principalmente estabelecidos pela Constituição Federal, que a macularia de norma não recepcionada, como passamos a expor e ponderar.
Como já argumentado, qualquer criação legislativa ou interpretação de norma trabalhista deve ter por norte a melhoria da condição social dos trabalhadores.
Além da melhoria da condição social do trabalhador, deve ser respeitada a dignidade da pessoa humana deste trabalhador, o valor social do trabalho e o meio ambiente do trabalho, princípios que por si sós já impediriam a existência de agentes nocivos à saúde e vida do trabalhador em seu ambiente de trabalho, ou garantida a sua contraprestação ampla e irrestrita, em caso de impossibilidade de eliminação destes riscos.
Ora, sendo assim, evidentemente a interpretação dada ao § 2º do artigo 193 da CLT esbarraria nestes princípios positivados, já que a regra é aplicada contra a melhoria da condição social do trabalhador, que prevê trabalho em condição especial sem o respectivo pagamento.
Embora haja a discussão sobre a natureza jurídica destes adicionais, sem dúvida nenhuma, para mim, eles tem natureza salarial, já que é contraprestação de trabalho prestado em condição especial, sendo a insalubridade em ambiente nocivo à saúde, e a periculosidade em ambiente de risco à vida, assim como o adicional de hora extra se deve pelo trabalho em sobrejornada e o adicional noturno, pelo trabalho em período noturno que é mais desgastante.
Entendêssemos como indenização, no caso de sinistro, não seria possível uma nova indenização, já que reparada ao longo do contrato de trabalho, sendo princípio geral de direito a proibição de duas penalidades da mesma natureza decorrentes do mesmo fato (non bis in idem).
Assim, irrecusável a natureza salarial e caráter alimentício destes adicionais.
Partimos então para os métodos de interpretação utilizados para defender a possibilidade de cumulação destes dois adicionais.
Utilizamos no presente trabalho o método sistemático, que tem por objetivo, dar unidade ao ordenamento jurídico. O direito está na norma que convive harmonicamente com o todo.
Utilizamos, também, o método teleológico, que visa descobrir a finalidade da norma.. A finalidade pode evoluir sem que ocorra alteração no texto legal.
Assim, como a finalidade da norma deve ser a melhoria da condição social do trabalhador, sua dignidade e proteção ao meio ambiente do trabalho, devemos confrontar o § 2º do artigo 193 da CLT. com o sistema normativo hierarquicamente organizado, e percebemos que a proibição de acumulação dos adicionais de insalubridade e periculosidade esbarra no artigo 7º, inciso V da CF/88, que aponta que o valor do salário deve ser proporcional à extensão e complexidade do trabalho.
Assim está disposto o artigo 7º, inciso V da CF/88:
"V - piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho;"
Embora este dispositivo se refira a piso salarial, o que de imediato nos dá a entender que se refere a piso de categoria, esta regra deve ser interpretada em sentido extensivo, como sendo o valor mínimo a ser pago como salário em retribuição ao trabalho, entendido este em sentido amplo, que deve ser proporcional à extensão e complexidade do trabalho.
Sendo assim, estando o trabalhador submetido a trabalho com maior extensão e complexidade, como é o caso dos trabalhadores que exercem suas atividades em locais insalubres e perigosos, devem receber o seu pagamento de acordo com a extensão e complexidade deste trabalho, sob pena de ferimento do princípio da isonomia, pois não podemos aceitar que se trabalhe isoladamente em uma destas condições e se receba o adicional respectivo, e trabalhando sob as duas condições, tenha-se que escolher qual o adicional receber, estando com a saúde e vida em risco.
Já dizia um dos maiores doutrinadores do direito do trabalho, Mozart Victor Russomano, que:
"Quando alguém pegar com suas mãos o texto das leis trabalhistas de um país, saiba que ali estão séculos de sofrimentos calados ou de revoltas e que aquelas páginas, nas entrelinhas da composição em linotipo, foram escritas a sangue e fogo, porque, até hoje, infelizmente, nenhuma classe dominante abriu mão de seus privilégios apenas por idéias de fraternidade ou por espírito de amor aos homens." [04]
4.Conclusão.
Por tudo o que foi exposto, não podemos aceitar que o trabalhador seja reiteradamente lesado por conta de interpretações feitas em normas que deveriam ter como finalidade a melhoria de sua condição social e a proteção da dignidade da pessoa humana, mas, em decorrência de interesses patronais force-se o trabalhador exercer suas atividades em condições de agressividade à saúde e perigo à vida, e, ainda, trabalhando nestas duas condições, tenha que optar, obrigatoriamente, por um dos adicionais, mesmo estando sujeitos a estes dois riscos.
A imposição de opção fere todos os princípios do direito do trabalho, e esta agressão não pode continuar, pois, neste sentido, o § 2º do artigo 193 não foi recepcionado pela nova ordem constitucional.
5.Referências Bibliográficas
RUSSOMANO, Mozart Victor. O Empregado e o Empregador No Direito Brasileiro. 7ª edição, editora Forense. 1984.
Revista LTR 113/08, ANO 44, p. 563, Juiz Nelson Hamilton Leiria
CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. Editora Saraiva, ed. 33ª edição, 2008.
BUCK, Regina Célia, Cumulatividade Dos Adicionais De Insalubridade E Periculosidade, Editora LTR, Edição 2001.
Dicionário Eletrônico Da Língua Portuguesa Mini Aurélio.
Notas
- LTR 113/08, ANO 44, p. 563, Juiz Nelson Hamilton Leiria.
- Tribunal Regional do Trabalho – 2ª Região, Desembargador Relator Sérgio Winnik, processo 01236200838402006, ACÓRDÃO Nº: 20100007478, 4ª Turma.
- CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. Editora Saraiva, ed. 33ª edição, 2008, p.189.
- RUSSOMANO, Mozart Victor. O Empregado e o Empregador No Direito Brasileiro. 7ª edição, editora Forense. 1984. p.11.